Quem cobre América Latina no Brasil? Conheça o Giro Latino

Júlia Ennes
LabCon / UFMG
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6 min readJul 5, 2022

Projeto busca suprir falta de cobertura jornalística sobre América Latina em território brasileiro

Por: Júlia Ennes, Ellen Morais, Gabriela Matina e Luigy Bittencourt*

Giro Latino | Reprodução

Um compilado semanal de tudo de mais importante que está acontecendo na América Latina: essa é a missão jornalística do Giro Latino. A iniciativa multiplataforma de notícias idealizada pelo jornalista Lucas Berti vem crescendo desde 2019, em uma parceria com o Estúdio Fronteira, de Porto Alegre.

Além de Berti, hoje a equipe do Giro é formada por Juan Ortiz, Maurício Brum e Karla Burgoa. O projeto tem como principal produto uma newsletter recebida semanalmente pelos inscritos, que hoje já passa da sua 135º edição.

Trazendo as principais notícias de país a país, o Giro também está presente nas redes sociais Twitter, Instagram, Telegram e TikTok, além de um podcast nos principais tocadores de áudio e de vídeos no YouTube, incluindo uma série em parceria com o The Intercept Brasil.

O jornalista Juan Ortiz, editor do projeto, conta que desde que surgiu essa parceria, a ideia era criar uma newsletter focada na América Latina para contar tudo que acontece de mais importante nos países latino-americanos.

“A ideia do Giro surgiu de uma premissa muito básica que é: quem está falando de América Latina hoje no Brasil? Porque às vezes se têm notícias, nos próprios jornais, coisas que vêm de agências, ou até correspondentes de grandes veículos, mas não é algo sistemático. Não se tem um lugar único onde se concentram as informações sobre a América Latina”, explica.

Em 2021, Ortiz, junto com Maurício Brum e Lucas Berti entrevistaram o ex-presidente peruano Ollanta Humala, pouco antes das eleições no Peru, em uma live em parceria com o The Intercept Brasil.

“A gente começou o projeto basicamente no amor”

O Giro Latino nasceu como “Girão da América”, em um formato muito mais simples, em threads (ou fios) no Twitter, ainda em 2018. Na época, Berti começou a condensar, semanalmente, todo o conteúdo de notícias referentes à América Latina através da rede social, para seus mais de 40 mil seguidores. O formato durou mais de um ano.

Uma das edições do “Girão”, no Twitter do Lucas Berti.

Juan conta que, hoje, o processo de construção da newsletter funciona com uma espécie de “curadoria ativa de conteúdos". A equipe tem uma série de veículos e listas já mapeadas para ficarem de olhos nos assuntos que estão em alta nos países vizinhos. Além disso, os jornalistas usam suas próprias raízes na produção. Isso porque Karla é boliviana-brasileira e Juan, colombo-brasileiro.

O Giro se mantém financeiramente apenas por doações e apoios obtidos por meio de um financiamento coletivo. O editor do projeto expõe a dificuldade que é manter um projeto independente. “A gente começou o projeto basicamente no amor, né?”, brinca Juan.

Edição 138º do Giro Latino, enviada no dia 2 de julho de 2022.

Segundo ele, a equipe estuda a possibilidade de, ao associar o projeto a uma plataforma, introduzir um modelo de financiamento por assinatura. Assim, as pessoas interessadas em acompanhar o conteúdo o fariam mediante contribuição.

“Não existe uma fórmula mágica para financiamento de jornalismo, ainda mais para o jornalismo independente. A regra principal é: onde tiver dinheiro e gente disposta a financiar jornalismo, é aí que a gente tem que ir”, afirma.

A equipe percebe o grande público que é engajado pelo veículo e por isso acredita que, com o auxílio de mais pessoas e um financiamento que permita desenvolver mais projetos, é possível convencer ainda mais pessoas a apoiarem o Giro e manter um ciclo mais intenso de produção.

Quem cobre América Latina

Historicamente, há uma tendência em reduzir a representação da América Latina nos noticiários brasileiros. Enquanto, por outro lado, existe um grande destaque de questões relacionadas à Europa e aos Estados Unidos.

Hoje, no Brasil, temos uma ausência de cobertura e da presença de correspondentes, que excluem os países hermanos da agenda midiática.

A professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ângela Carrato, destaca que o conceito de América Latina começou a ser usado tardiamente no Brasil.

“O próprio conceito de América Latina só começou a ser utilizado no Brasil nos anos 1930, quando já era largamente empregado nos Estados Unidos. Foi necessária a vitória da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas iniciou a fundação do estado moderno brasileiro”, explica. “Há ainda, por parte da classe dominante brasileira, um enorme preconceito contra índios e negros — que constituem a maioria da nossa população e da população latino-americana. Esses senhores [da classe dominante] acreditam e agem como se fossem arianos”.

A situação aponta para um silenciamento destes países. O pequeno espaço ocupado pela América Latina na cobertura da imprensa reforça estereótipos negativos como o da violência e do subdesenvolvimento, enquanto a complexidade histórica e cultural é invisibilizada. A generalização dos temas e a sub-representação se mostram como barreiras na construção de uma identidade latina.

Gráfico: quantidade de notícias veiculadas sobre cada país latino-americano na newsletter.

Para a professora, iniciativas como a do Giro Latino lutam para combater essa realidade e contribuem para suprir esse vazio de informações. “Acho a iniciativa da maior importância. Ela vem contribuir para suprir um vazio de informação e notícia sobre a América Latina”, avalia.

Além da língua: Brasil tem dificuldade de se ver como latino-americano

Para Ortiz, uma das principais dificuldades de se cobrir a América Latina no Brasil é a barreira linguística. Devido às raízes da colonização, o Brasil é o único país da América Latina que não tem como idioma oficial o espanhol.

“Pensando em termos jornalísticos, às vezes é complicado reaproveitar materiais sobre algo que acontece, por exemplo, no Chile, em Honduras, ou na Nicarágua, sem ter que fazer uma tradução”, explica Juan. “Se a gente fala de cobertura de telejornalismo, de rádio, até de jornalismo impresso, sempre precisa de uma tradução desses conteúdos, precisa conhecer mais sobre outros países”.

Porém, tanto Juan quanto Ângela apontam para uma outra razão pela qual é difícil cobrir América Latina no Brasil: os brasileiros não se enxergam como latino-americanos. A razão disso estaria em quem são as classes dominantes do país.

Para Ortiz, essa parcela da população, formada por descendentes de europeus, com seus sobrenomes italianos, alemães, portugueses e espanhóis, contribuem para que exista essa ideia de que o Brasil é muito mais próximo culturalmente da Europa ou, às vezes, até dos Estados Unidos, do que de uma identidade criolla.

“O que acontece é que o brasileiro se considera primeiro como brasileiro, depois como descendente de alguma coisa que veio da Europa”, afirma o jornalista

Carrato destaca ainda o papel da mídia comercial na formação desse cenário. “Os donos da mídia corporativa brasileira são milionários que integram a classe dominante, historicamente, ligada aos interesses da Europa e dos Estados Unidos”, afirma.

A professora explica que a partir de 1930, os brasileiros começaram a se dar conta de que eram latino-americanos, porém, com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, a situação mudou devido à influência dos EUA sob o Brasil.

“A classe dominante brasileira nunca aceitou que o Brasil fizesse parte da América Latina. O brasileiro médio está mergulhado na cultura anglo-saxônica e pensa que faz parte dela. Coisa que não acontece com o habitante médio dos demais países da América Latina”, afirma.

Presença nas redes

A iniciativa que surgiu em uma rede social não poderia ficar longe delas. Até o momento da redação desta reportagem, o perfil do Giro Latino no Instagram tinha mais de sete mil seguidores. No Twitter, rede onde a ideia surgiu, o veículo já passa dos 54 mil seguidores.

O público das redes, no entanto, nem sempre lê o produto principal do Giro — o compilado de notícias que chega todo sábado nas caixas de e-mail. Ortiz conta que muitos dos seguidores das redes sociais não conhecem a newsletter e vêem o Giro como “uma espécie de página sobre América Latina”.

“A gente percebe de alguma forma que existem públicos diferentes em cada rede social. Por exemplo, as pessoas que consomem conteúdo no Instagram não são necessariamente as mesmas pessoas que consomem conteúdo no Twitter e não são necessariamente as pessoas que leem a nossa newsletter todo sábado de manhã. Mas isso também não é uma coisa ruim, porque a gente tem um fluxo considerável para a newsletter. Apenas são públicos um pouco diferentes”, analisa.

A novidade mais recente é o perfil do TikTok (@curiosidadelatinadodia), onde Berti tenta conquistar a Geração Z com vídeos curtos de curiosidades de países da América Latina.

Divulgação do TikTok de curiosidades sobre América Latina.

*Estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Matéria desenvolvida como atividade para a disciplina de Projetos, sob orientação da professora Vanessa Brandão.

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Júlia Ennes
LabCon / UFMG

Estudante de Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é estagiária do programa Coletânea, da Rede Minas