Uma manhã com as babás da Praça da Liberdade

Conversas e minúcias de uma profissão marcada pelo carinho

Dayanne Sperle
LabCon / UFMG
13 min readNov 27, 2015

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Por Dayanne Sperle, Julia Brito, Lana Kantor e Nadine Alves

Fotos: Nadine Alves

Belo Horizonte, terça feira, 08h da manhã. Entre carros, ônibus e motos que intensificam o tráfego em torno da Praça da Liberdade (ponto de encontro dos bairros nobres da região Centro Sul) figuram meios mais simpáticos de transporte, que escapam ao caos da cidade e inauguram uma manhã mais doce: carrinhos coloridos de bebê, veículos de plástico sem motor, o colo de alguém e as mãos dadas.

É o passeio matinal que marca uma relação delicada: babás e crianças. Próximas do coreto, em um canto da Praça onde o sol aparece na medida certa e árvores verdes garantem o frescor, as cuidadoras chegam pouco a pouco, contatam as colegas pelo celular e formam um ponto de encontro. As roupas coloridas e temáticas dos pequenos, constantemente ajeitadas, contrastam com a da maioria das profissionais, que trajam alguma peça branca ou até mesmo jaleco, e dedicam toda a atenção às crianças, que exploram parte da sua infância em meio à Praça.

Se pararmos para pensar sobre essa profissão, percebemos que as babás estão por toda parte. Preservadas as devidas proporções e diferenças socioeconômicas entre bairros e regiões, encontramos essas mulheres de branco em praças, parques, shoppings, clubes e escolas. Elas são fundamentais no desenvolvimento das primeiras habilidades cognitivas das crianças, como falar e andar.

Apesar da profissão de babá não exigir graduação específica para atuação na área, alguns pais dão preferência para aquelas que têm formação em Enfermagem, Primeiros Socorros, Pedagogia ou até Psicologia. Mas essa não é a realidade da maioria das profissionais que se dedicam a cuidar de crianças, enquadradas na mesma categoria e regulamentação de serviços não-lucrativos prestados a terceiros, como empregadas domésticas, jardineiros e motoristas.

Na mídia, as babás são constantemente reduzidas à sua profissão. Quando retratadas, comumente são identificadas apenas como “babás” — pouco importa suas identidades ou histórias. Um caso recente envolvendo uma família rica e famosa evidenciou esse tratamento: Luciano Hulk, Angélica, seus filhos e alguns funcionários sofreram um acidente de avião. Nas manchetes, as babás das crianças apareciam somente como as “duas babás” acompanhantes, sem nome nem rosto. Enquanto uma cobertura intensa e detalhada era feita sobre os outros envolvidos no acidente, a família Hulk. Marcileia e Francisca, cujos nomes foram revelados após as críticas, não foram ouvidas ou nomeadas, nem mesmo na entrevista do casal ao Jornal Nacional.

Mas onde estão essas babás sem rosto, nome e narrativa apresentadas sempre sob o olhar dos patrões? Como é a vida das profissionais que dedicam suas vidas a cuidar dos filhos de outras pessoas? Sendo babás, do que essas mulheres estão abrindo mão: de dormir na própria cama? De educar, cuidar e dar carinho aos seus próprios filhos? Para conhecer mais tal realidade nos aproximamos de um grupo de mulheres que exercem essa profissão. Mesmo dentro de um recorte específico e que pode não representar o todo, as babás da Praça da Liberdade falaram sobre si e ajudaram a esclarecer e revelar pormenores da atividade.

Entre brinquedos, sucos e histórias

Em um banco discreto na Praça da Liberdade e cercada por árvores e brinquedos, encontramos a babá Camila. Cristina e Rosa chegaram depois, uma a uma, trazendo as crianças com seus carrinhos e lanches- biscoitos, sucos e frutas. A entrevista foi mais natural do que imaginávamos; quando percebemos, estávamos todas — entrevistadoras, fotógrafas, entrevistadas e crianças — conversando como em um bate-papo informal. Em meio a barulhos de ônibus, buzinas e livros infantis, conhecemos parte da trajetória dessas mulheres, seus cotidianos e laços com a profissão.

Os pequenos puxavam o jaleco das babás, pedindo atenção o tempo todo enquanto nós fazíamos as perguntas. Sempre educados pelas profissionais, que diziam às crianças para falar “por favor” e “obrigada” e nos mandar beijos com as mãos. Ao mesmo tempo em que se dedicavam a nos atender, as babás ficavam atentas, pois um minuto de desatenção poderia lhes custar o emprego. Joelhos ralados, alguns tombos e lágrimas geram certo desconforto, colocam a competência em cheque e relativizam o que pode ser um acidente da infância ou descuido durante o expediente.

Em todo caso, é bom levar joelheiras — que muitas crianças parecem usar, especialmente quando estão aprendendo a andar- para prevenir e contar com a parceria entre babás, tão carinhosas e cuidadosas com os seus pequenos quanto com os das colegas. Surgem algumas repreensões brandas, enquanto ensinam a criança a falar e como se comportar. “É bonito ficar com a saia levantada?” ou “É trouxe, e não ‘trusse’” — são algumas frases recorrentes.

A fala solta de Camila

Camila, 27 anos, foi o nosso primeiro contato. Muito falante, desde a primeira visita à Praça até nas conversas por WhatsApp, Camila se mostrou muito aberta e disposta a contar seu percurso de seis anos na profissão.

Enquanto ajeita o vestido da boneca Elsa, do filme Frozen, que a menina de 2 anos e meio de quem cuida insiste em desarrumar, ela nos contou detalhes da sua rotina. Moradora da região de Venda Nova, Camila pega um ônibus às 5h30 da manhã, desce no centro de Belo Horizonte e vai a pé até a casa onde trabalha, no Lourdes. Em uma caminhada rápida de cinco minutos, uns 500 metros, chega ao serviço, perto da Praça da Liberdade, quinze para as sete.

A rotina de Camila com a criança é “tranquila” e se repete de segunda a sexta-feira. Ela trabalha oito horas por dia, totalmente dedicada aos cuidados da menina. Assim que chega, a babá arruma a bolsa da pequena e vai para a Praça. Chegando lá, a criança lancha e brinca. Quando voltam para casa, é hora do cochilo. Na parte da tarde, a menina vai para a escola enquanto Camila organiza seus brinquedos e roupas. Às vezes ela limpa a cozinha ou faz algum outro serviço doméstico que sinta necessidade, mas nada por determinação explícita dos empregadores. No fim da tarde, quando o relógio marca 15:30, ela vai embora. Os pais buscam a menina na escola e passam o resto do dia com ela.

Para descansar melhor, muitas vezes Camila prefere dormir no trabalho ao invés de voltar para casa. A babá conta que começou na profissão dando plantões, mas logo foi efetivada — a partir daí, só trabalhou com carteira assinada. Hoje em dia, ela só dá plantões aos fins de semana, tanto no seu trabalho fixo como em outras casas que a procuram por indicação.

Antes de começar na profissão, a jovem fez curso superior em Enfermagem, mas conta que achava a rotina dos hospitais muito pesada, chorava junto com os pacientes e logo desistiu da área, antes de terminar o curso. Ela conta das amigas que terminaram o curso e se formaram e que, depois de quatro anos de estudo, trabalham e ganham R$ 1200 reais por mês, valor inferior — muito inferior, como fez questão de ressaltar — ao seu salário atual, cuja cifra não foi revelada por escolha da profissional. Atualmente, sua jornada de trabalho é mais tranquila e ela faz o que realmente gosta.

Quando questionada sobre o que mais aprecia na profissão, Camila é enfática:

“Eu gosto de brincar, de cuidar, eu gosto de estar perto. Parece que é instinto, sabe?”

Ela vai à Praça todos os dias com a criança. Gosta de ler, visitar a avó, que sempre cobra a visita, e sair com as amigas nas horas vagas para ir ao cinema ou balada — programas comuns de uma jovem solteira da sua idade.

Os sorrisos tímidos de Cristina

Cristina tem 36 anos e cuida de um bebê de 1 ano e 2 meses. Vestindo uma blusa amarela (foto), começou a entrevista tímida e teve que se dividir entre responder às perguntas e dar suco de laranja para a criança, que estava em seu colo.

Moradora do bairro Tupis, Cristina sai de casa às 7h10 e chega no trabalho, uma casa bem perto da Praça da Liberdade, quase ao lado da lanchonete Xodó, tradicional da capital mineira, por volta das 8h50. Ela trabalha nas segundas, terças e sextas-feiras até às 17 horas. Além de cuidar do bebê, Cristina faz todos os serviços da casa como lavar roupa, fazer almoço, limpar a casa, porque esse foi o combinado com os patrões.

Ela entrou na profissão há oito anos atrás, depois passou a ser diarista e só voltou a ser babá há um ano, quando começou a cuidar da criança atual. Casada e mãe de três filhas, de 4, 10 e 18 anos, ela diz que não tem problemas em conciliar a família e a profissão, já que as meninas mais velhas cuidam da mais nova quando o pai precisa trabalhar e os parentes também ajudam. De expressão complacente, mas um pouco retraída, não revelou muito sobre as implicações da profissão na sua rotina, mas quando insistimos, ela confessa que a filha mais nova sente ciúmes da mãe com criança que cuida e conta sorrindo que está gostando de ser babá novamente.

“Eu quero continuar. Eu falo para o meu marido que estou gostando. A minha relação com a mãe da criança, com a família, no geral, é muito boa. Não tem aquela cobrança de ser de tal jeito, é bem tranquilo.”

A babá que também é mãe: Rosa Ednéia

“Você que adora tirar foto e sair no jornal, vem cá!” — e foi assim que as babás nos apresentaram Rosa Ednéia( à esquerda da foto) a mais experiente entre elas. Rosa já está na profissão há duas décadas e antes disso já trabalhava em creches como cozinheira e instrutora.

Mãe de três filhos já adultos, Rosa, de sorriso largo e óculos (que tirou para ser fotografada) diz não ter do que reclamar no seu trabalho como babá. No entanto, já passou por algumas situações desagradáveis, como uma viagem que fez com a família da criança que cuidava há alguns anos. Muito pequena, a menina não queria dormir à noite, só chorava incessantemente. Com isso, a mãe precisou intervir, e a criança se acalmou apenas quando foi dormir com os pais. No dia seguinte, a patroa chamou Rosa para uma conversa séria, e lhe disse que sua função na viagem era tomar conta da sua filha, e não dormir. A babá ficou magoada e nunca mais viajou a trabalho com ninguém.

Rosa contou, ainda, orgulhosa, que ensinou a criança que cuida atualmente a falar, e afirma que educa e instrui.

“Babá é mãe, né? É cansativo mas é bom. Ver que os meninos cresceram e que gostam de você. Eu adoro.”

Rosa chegou e foi embora muito rápido, empurrando o carrinho rosa pilotado pela menina de quem cuida. Não tivemos tempo de conseguir mais detalhes da sua vida e rotina, mas com seus vinte anos de experiência e com suas frases de efeito, seria impraticável deixá-la de fora da reportagem.

Camila, Cristina e Rosa estão em pontos diferentes da profissão — afinal, contam com diferentes tempos de serviço e de experiência profissional, além de apresentarem vários motivos para ter chegado e se manterem nesse universo.

Mesmo assim, um ponto parece as unir. Se existe algo em comum entre essas três babás é o amor pela profissão e o carinho que envolve a função. Enquanto conversávamos, os olhos não saíam dos pequenos: ofereciam sucos e frutas, sempre alertas para possíveis tombos dos andares desequilibrados dos pequenos, ou para os impedí-los de caminhar sem rumo pela Praça ou em direção à rua.

Mais do que participar da primeira infância, as babás agregam pessoas, momentos e experiências à essa fase. Afinal, para aquelas crianças, visitar a Praça é parte importante da rotina. Se deixam de ir por algum motivo ou demoram, a própria criança reclama e sente falta.

Essa rotina também virou conexão. Com isso, diariamente as babás se encontram, trocam mensagens no celular e as crianças brincam juntas, dentro de suas limitações, diferenças de idade e regras estabelecidos com carinho pelas babás.

Com essa interação, todo mundo sai ganhando. As babás batem papo, contam casos e se divertem enquanto olham, em conjunto, a criançada. Em um momento, Camila começou a falar de como a menina que é cuidada por Arlete, outra babá que frequenta da Praça, havia crescido e se desenvolvido nesse tempo que elas se conhecem, e de como essa era uma das melhores partes desses encontros na Praça, ver as crianças crescendo juntas.

As crianças, por sua vez, parecem ter se adaptado à essa convivência da melhor forma possível. Elas brincam juntas, dividem brinquedos e livros e ficam entusiasmadas sempre que chega um novo amigo num carrinho reluzente cheio de buzinas e apetrechos.

As babás nos contam que sempre fazem piqueniques e incentivam os pequenos a dividir alimentos e interagir, pois, segundo elas, isso é importante para que não fiquem “enjoadas” ou “egoístas”. O hábito está tão enraizado que até aniversários infantis já foram feitos na Praça. Em outubro, um bebê de quase dois anos comemorou com os amigos da Praça seu aniversário. Todos, babás e bebês, foram convidados a prestigiar o aniversariante, que se fantasiou de Peter Pan. Os pais se encarregaram do bolo, dos salgadinhos e até da decoração, com direito a chapéu, balões e lembrancinhas.

Os laços com os empregadores

Quando a manhã vai acabando e o sol das 11 vem surgindo, as babás seguem a rotina familiar, levam as crianças de volta para casa — os que já estão na idade escolar preparam-se para sair novamente, tirando um cochilo e tomando banho, e os mais novos descansam da manhã acelerada. Algumas babás fazem almoço ou colaboram nas demais funções da casa, como limpeza e organização da residência. Não há um padrão na quantidade de serviço doméstico nem na necessidade de fazê-los: algumas ajudam porque querem, outras foram contratadas como babás e como empregadas domésticas ou auxiliam as colegas nessas funções, enquanto outras simplesmente não aceitam a vinculação das duas funções.

No caso das nossas entrevistadas, Camila, Rosa e Cristina, tudo é combinado previamente com os patrões, com alguma consciência das definições que existem na lei que regulamenta a profissão, sendo que alguma alteração na rotina, como viagens, são sempre avisadas de antemão.

Para Camila, o patrão ideal seria algo bem próximo dos seus atuais empregadores, que são “muito tranquilos”. Camila parecia satisfeita com a profissão, com suas funções e seu salário — sua fala denotava uma relação transparente com os pais, que sempre conversavam sobre os hábitos da criança, alguma nova mania ou algo aprontado na escola. A infância da criança é um projeto coletivo e colaborativo entre os três: pai, mãe e babá. Além disso, ela foi a única das profissionais que não se posicionou contra viajar com a família. “Eu adoro!”, disse entusiasmada.

Já as outras babás não tinham como algo concretizado a definição do patrão ideal, limitando-se, muitas vezes, a dizer “Eu me dou bem com os meus” — o que não respondia diretamente à nossa pergunta, mas revelava uma relação em que não era confortável ou apropriado criticar o regime de trabalho.

As babás ainda esperam melhores benefícios na profissão. Reclamam, por exemplo, sobre a falta de flexibilidade no horário de trabalho e da necessidade de trabalhar em datas comemorativas, como Reveillón, Natal ou algum feriado. Com a regulamentação da Lei das Domésticas, elas esperam igualdade nos direitos que já são garantidos a tantas profissões: “Agora com essa nova lei de carteira assinada, aí tem que fazer, tem que assinar a carteira mesmo, não adianta.”, disse Camila, com satisfação e orgulho no olhar.

Nos relatos, observamos que as mães são as grandes responsáveis por ditar o tom da rotina da criança, e, claro, da babá. São elas as encarregadas por todo o processo de entrevista, contratação e estabelecimento das regras do trabalho e acompanhamento das funções da profissional.

Por padrão, a maioria das babás possui contrato inicial com vigência de apenas três meses. O período é apenas de adaptação da criança com babá e vice-versa — tudo precisa se encaixar. Para garantir o emprego, essas mulheres se dedicam às suas funções e precisam se mostrar capazes de cuidar e educar.

As babás da Praça da Liberdade e suas narrativas são como um microcosmos para falar do todo, das condições e relações que perpassam essa atividade. Mesmo dentro de uma realidade muito específica e que pode ser mais adocicada do que o panorama geral da profissão, elas falaram por si mesmas e aproveitaram a visibilidade para relatar camadas mais profundas do que é ser babá, como o orgulho de ver o desenvolvimento da criança ou a falta de respeito e abuso de alguns patrões.

Fato indiscutível é que a profissão depende, acima de tudo, do poder de relacionamento do ser humano. Mas, vale dizer, ser babá não é simplesmente sobre gostar de crianças, mas sobre dedicação e participação em um cotidiano muito íntimo, que ultrapassa uma relação formal de prestação de serviços, cria conexões e adiciona novos pontos aos laços de família.

Os contratos vêm e vão, e com o inevitável crescimento das crianças as babás se veem obrigadas a procurar novos empregos, famílias e rotinas de trabalho. É uma profissão que exige constante adaptação a outras pessoas e cotidianos. Acompanhar o desenvolvimento dos pequenos e a proximidade com esse universo deixa marcas afetivas, e para muitas na profissão, saudades.

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