2021 chegando… Vamos voltar a falar de participação social?

Simone Ravazzolli
LABHacker
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9 min readDec 7, 2020

(Ou como nasceu o Pauta Participativa)

Uma das maiores dificuldades do atual momento de polarização e disseminação de fake news é conseguir consenso de um grupo maior de pessoas. Mas se há uma ideia com a qual todos concordamos é que 2020 não foi fácil para ninguém, e por inúmeras razões. No Legislativo, as casas federais tiveram que implementar, pela primeira vez e em uma velocidade incrível, um sistema para votação remota da pauta do plenário. Essa mudança era fundamental para que os parlamentares continuassem a decidir, com segurança e agilidade, sobre os grandes temas nacionais, principalmente os mais urgentes, relacionados à pandemia.

Felizmente a correria deu certo! A experiência da Câmara foi reconhecida, em março, como o caso mundial de maior número de parlamentares reunidos em uma mesma sessão virtual. Várias instituições entraram em contato para receber informações sobre como replicar o modelo, como a União Interparlamentar, Parlamento Europeu, Parlamento Pan-Africano, Senado da Itália, Câmara dos Deputados e Senado da Espanha e Parlamentos do Canadá, Áustria, Noruega, Hungria, Finlândia, Estônia, Israel, Ucrânia, Chile, Peru, África do Sul….Ufa!

Fotomontagem

É claro que nem tudo são flores. Vencida essa questão de manter os legislativos funcionando, a preocupação voltou-se para a dificuldade de participação social no processo. Várias entidades da sociedade civil encaminharam críticas e sugestões durante o ano, como o caso de 83 organizações que apresentaram, no final de março, um manifesto pedindo para que fossem garantidas a transparência e a participação social nas deliberações durante o período. A pauta do plenário foi, naturalmente, voltada a ações para minorar os problemas gerados pela pandemia e muitos outros projetos de interesse da população acabaram tendo que esperar até serem resolvidas essas decisões mais urgentes.

Com a chegada de 2021, e a esperança de vida normal voltando com a vacina, os defensores da participação social já se preparam para retomar essa defesa, pedindo que a pauta esteja mais alinhada aos interesses da sociedade. E você sabe que, falando em aumentar a participação, a gente fica animadíssima/o por aqui no LAB. Hora de limpar as gavetas!

Um dos nossos projetos queridinhos que está aguardando a oportunidade certa é o Pauta Participativa. Ele já nasceu com o peso de ser considerado o primeiro experimento desse tipo entre os parlamentos do mundo (pensa na responsabilidade!). Mas vale todo o esforço da disrupção, e é tão especial que exige esse amadurecimento geral nosso, da instituição, dos parlamentares e até mesmo dos cidadãos envolvidos. A primeira versão da ferramenta foi testada pelo LAB em 2017 e, se você tiver um tempinho aí, pega um café ou uma água que eu vou contar essa experiência…

A ferramenta em si não tinha nada de inovadora em questões tecnológicas, a carinha dela é até bem simples. O ineditismo estava na ideia de possibilitar que cidadãos escolhessem, por meio do voto, os projetos de seu interesse para serem analisados pelos deputados em plenário. Não como uma democracia direta, mas indicando os projetos com maior consenso para entrar em pauta, independentemente do resultado da votação posterior pelos parlamentares. Em outras palavras, democracia participativa aprimorando a representativa, de forma a aumentar a conexão existente entre a instituição e a sociedade.

Nesse primeiro teste, que a gente colocou no ar em menos de um mês aproveitando uma janela de receptividade da Presidência da Casa, a ferramenta foi incluída no portal e-Democracia (https://edemocracia.camara.leg.br/pautaparticipativa/pauta/1) e ficou disponível para votação pelo público em geral pelo período de duas semanas, de 12 a 27 de setembro.

Foram oferecidas 16 proposições de três eixos temáticos: saúde, segurança e política. Dentro de cada tema, os participantes eram orientados a votar favoravelmente em dois projetos e rejeitar um, seguindo uma metodologia conhecida como Democracia 2.1 (D21), do matemático Karel Janecek. De acordo com o método, considerado inovador, um processo de votação deve dar aos participantes a oportunidade de escolher múltiplas opções. Se o propósito é ter um vencedor ⎼ no caso do Pauta Participativa um projeto por eixo temático para ser incluído na pauta do Plenário ⎼ deve possibilitar que os participantes escolham pelo menos duas alternativas. Assim, pela metodologia, as segundas opções registradas pelos participantes tenderiam a ser mais consensuais dentro do grupo, enquanto as primeiras tenderiam a ser mais particulares a cada indivíduo.

Esse método também previa, adicionalmente, que os participantes indicassem a matéria de maior rejeição. Logo, para ter direito a rejeitar um item por tema, o usuário da ferramenta deveria necessariamente apoiar pelo menos dois outros itens. As opções vencedoras no final do processo são aquelas que apresentam melhor saldo de votos (você tem mais detalhes sobre essa metodologia aqui: bit.ly/metodologiad21).

Entre as cinco propostas escolhidas para o tema Política (imagem abaixo), estava o Projeto de Resolução da Câmara (PRC) 235/2017, sobre iniciativa popular digital; os projetos de lei 7574/2017, para simplificar as consultas populares (petições on-line); e 1202/2007, sobre a regulamentação do lobby; e os projetos de lei complementar (PLP) 381/2017, sobre transição de governos; e 375/2017, de desincompatibilização de cargos.

A proposta vencedora tanto em número de votos positivos quanto no saldo de votos foi a que facilita a participação dos cidadãos em projetos de lei de iniciativa popular, possibilitando que as assinaturas sejam recolhidas pela internet (PRC 235/2017). Com um saldo de 3.534 votos, esta aprovação significaria o fim daquela via crucis de recebimento do projeto de iniciativa popular com suas milhares de assinaturas necessárias e que exigem conferência, o que na prática se torna impossível.

Entrega do Projeto de Lei da Ficha Limpa em setembro de 2009.
Foto: Rodolfo Stuckert (Câmara dos Deputados)

A proposta que prevê a aceitação, pela Câmara, de petições on-line (PL 7574/2017) aparece em segundo lugar no ranking, também com a segunda menor taxa de rejeição e um saldo de votos de 2.898. É importante destacar que o objetivo das duas propostas mais votadas pelos internautas nesse tema é aprimorar a participação dos cidadãos no processo legislativo.

Já no tema Segurança (imagem abaixo), foi oferecido o maior número de opções, com seis projetos de lei. Após a votação, o ranking desse tópico ficou assim, já em ordem por total e também saldo de votos: o PL 3722/2012, considerado o mais polêmico desta primeira versão da ferramenta, que propõe a revisão do Estatuto do Desarmamento; o PL 6717/2016, sobre a liberação de arma de fogo na área rural; o 5825/2016, conhecido como Lei Antiterrorismo; o 6662/2016, que trata da Lei Orgânica da Segurança Pública; o 1530/2015, sobre repressão ao contrabando; e ainda o PL 1820/2015, que trata do termo circunstanciado de ocorrência, para dar mais celeridade aos processos dos juizados especiais criminais.

O tema Saúde (imagem abaixo) apresentou outros cinco projetos de lei, já em ordem de saldo de votos: o PL 4067/2015, que institui o exame que reconhece diplomas de médicos brasileiros formados no exterior ou de estrangeiros que querem trabalhar no Brasil (Revalida); o PL 7797 /2010, que trata de dispensa de carência para benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a portadores de lúpus ou epilepsia; o 7419/2006, que propõe mudanças nos planos de saúde privados; o PL 1019/2011, que criminaliza pais que não tratarem doença prejudicial ao feto; e ainda o PL 1755/2007, que proíbe a venda de refrigerantes em escolas de educação básica.

No final de todo o processo, o resultado do Pauta Participativa acabou não sendo encaminhado à análise do Plenário por decisão dos parlamentares.

Num desses casos em que a gente não tem o mínimo controle, a reforma política ganhou força e os projetos que tratavam desse tema foram incluídos na pauta de setembro. Devido à importância, passaram a receber total atenção dos parlamentares.

Os ventos mudaram e o momento não era mais apropriado para a inclusão de projetos diferentes em votação, mas já havíamos dado um grande passo com um processo novo e sabíamos que era só uma questão de timing e amadurecimento para retomar essa ideia.

Por se tratar de um experimento diferente e importante, era fundamental que mais gente conhecedora do assunto acompanhasse todas as etapas. Para isso, o Laboratório Hacker convidou três especialistas reconhecidos — dois do meio acadêmico e um da sociedade civil organizada — para fazerem a análise do processo como observadores. Incluímos também, no final da experiência, um formulário de participação para avaliação dos usuários. O objetivo era receber o maior volume possível de insumos para que, numa experiência seguinte, fosse apresentada uma nova versão sem os limitadores identificados na primeira. Como consultores, participaram do processo Fabiano Angélico, da ONG Transparência Internacional; a professora Marisa von Büllow, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília; e o professor Rafael Cardoso Sampaio, do Instituto de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná.

Os três observadores consideraram a iniciativa da Câmara importante, com impacto real para ampliar a participação da sociedade no processo legislativo. Entre as críticas em comum, destacaram a seleção prévia das propostas incluídas no Pauta Participativa associada à metodologia D21, limitando a participação; a existência de projetos de uma mesma linha ideológica (como a revisão do Estatuto do Desarmamento e a proposta de liberação de arma de fogo na área rural); e ainda a dificuldade para uma ampla divulgação da nova ferramenta aos brasileiros, para que pudesse haver uma participação mais representativa.

Como recomendações para melhorar o processo, os convidados sugeriram, entre outras: mais transparência na seleção das propostas que foram incluídas na ferramenta; mais projetos por tema; que os projetos fossem informados antes de se precisar fazer o cadastro na ferramenta; e que esse cadastro exigisse mais alguns dados dos interessados (UF, escolaridade, gênero), em busca de uma melhor representatividade.

“Sem dúvida, para mim o mais importante é a questão da seleção prévia de projetos nos quais é possível votar. Essa seleção prévia, associada à metodologia do voto, afunila e limita de forma importante as possibilidades de expressão dos participantes” Marisa von Büllow

O resultado da pesquisa realizada diretamente com os participantes foi bem positivo. Recebemos 184 respostas, cerca de 2,4% do total de usuários que testaram o Pauta Participativa. A maioria (85%) informou que não teve dificuldade para votar na ferramenta, enquanto 11% ainda elogiaram a iniciativa da Câmara. Com relação às principais críticas, 12% reclamaram da metodologia adotada (e da obrigação de votar duas vezes para usar o voto “negativo”), e 8% pediram mais divulgação da ferramenta, dois pontos que também tinham sido destacados pelos observadores.

Havia ainda três perguntas específicas para avaliação dos participantes, com notas em uma escala de 5 (excelente) a 1 (ruim). A pergunta mais bem avaliada foi “Como foi a sua experiência”, com 89% das notas entre excelente (115) e muito bom (48). “O que achou da metodologia?” foi a segunda mais bem avaliada, com 77% das notas entre excelente (95) e muito bom (47). Em terceiro lugar, ficou a pergunta “O que achou das opções de projetos?”, com 61% das avaliações entre excelente (49) e muito bom (64).

Após o encerramento do processo de participação, uma coalizão da sociedade civil organizada, formada por 21 entidades, manifestou-se, em nota pública, pela necessidade de maior transparência do Pauta Participativa. Para isso, recomendou a adoção de cinco mecanismos voltados ao fortalecimento da transparência e do accountability da ferramenta. Entre as sugestões, aparece novamente a necessidade de transparência dos critérios e do processo de escolha dos projetos de lei apresentados ao usuário (etapas e atores envolvidos); além de melhor comunicação sobre a metodologia de construção de consenso adotada (mais material informativo sobre o D21); adoção de mecanismos para prestação de contas e denúncia de mau uso (possibilidade de auditoria pública dos algoritmos usados no programa e de verificação dos votos); redução do perigo de distorções e manipulação dos votos on-line (evitar sistemas de identificação de participação fracos, como login de Facebook ou Google); e definição de um patamar mínimo de participação (para dar representatividade).

No fim desse processo, houve nova imersão do LAB com relação a esse experimento para amadurecimento e análise de todas as sugestões encaminhadas. Sabíamos que o Pauta podia ser um desses instrumentos inovadores que despertam o interesse da sociedade, aumentam a compreensão sobre o processo legislativo e, ao mesmo tempo, aproximam as esferas civil e decisória, gerando melhores leis. A gente só tinha que compreender direito as porções e expectativas necessárias nessa receita, para atingir o resultado esperado no final…

Em 2019, já estávamos pronta/os e animada/os para um segundo teste. É, a gente é brasileira/o e vocês sabem como é o ditado… ;-) Colocamos a proposta embaixo do braço e fomos à luta dentro da Câmara.

Mas aí já é uma outra história….

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Simone Ravazzolli
LABHacker

Jornalista em constante aprendizado, entusiasta da Democracia e da participação social.