Do que eu falo quando falo de Linguagem Simples

Patricia Roedel
LABHacker
Published in
6 min readDec 8, 2023

Falo de um requisito básico para a transparência: conseguirmos entender informações e serviços públicos sem ajuda.

Ilustração de duas cabeças posicionadas frente a frente, conectadas por um fio. Dentro da cabeça à esquerda, o fio está embolado. Dentro da cabeça à direita, o fio está enrolado ordenadamente.
Imagem retirada do site Plain Language Association International. Autor não identificado.

Conheci a Linguagem Simples trafegando por outra via: a da experiência do usuário. Em 2018, eu gerenciava um projeto ambicioso da Câmara dos Deputados para alterar as principais páginas de seu portal na Internet com o objetivo de fazer com que o cidadão não especialista conseguisse navegar e entender os conteúdos com mais facilidade.

O projeto envolveu extensa equipe multidisciplinar, que partiu de um diagnóstico robusto do antigo portal. Foram feitos testes de usabilidade com cidadãos de todo o País; entrevistas com usuários frequentes do portal; e questionário online.

Eu estava certa de que o fluxo de navegação ruim, a poluição visual, a falta de hierarquia de informação e outras dificuldades relacionadas a consistência e usabilidade eram os principais entraves para a população usar o portal.

O acesso às respostas e aos resultados dos testes acendeu outra luz vermelha, tão brilhante quanto as demais: a linguagem. As pessoas não sabiam, por exemplo, o que significa “nota taquigráfica”. Imagine os termos legislativos.

Esse era um entrave gigantesco.

PODER DE CASTAS

Embora, tecnicamente falando, a linguagem seja o aspecto mais fácil de ser mudado, é o mais difícil na prática.

Linguagem é poder.

Não só o poder intelectual ou de nicho, mas também de identidade profissional. O uso de jargões e termos técnicos une categorias de pessoas que têm afinidade entre si. É quase uma seita na qual só os escolhidos podem entrar.

ILUSÃO DE TRANSPARÊNCIA

Existe outra esfera desse poder, além da sensação psicológica de engrandecimento dos que “entendem”: a de esconder veladamente, à guisa de estar sendo transparente. Explico.

É curioso, por exemplo, que a transparência cobrada do Poder Legislativo pelos auditores diga respeito apenas a ter as informações publicadas. E mais: refiro-me às informações de interesse da auditoria, obrigatórias por lei.

As informações necessárias para a sociedade exercer sua cidadania podem passar ao largo dessa cobrança. Não a publicação em si, que pode ou não ser exigida; mas a facilidade de encontrá-las e de entendê-las.

No caso do Poder Legislativo, cabe perguntar:

  • o cidadão consegue achar e entender em qual comissão um projeto de lei está e qual versão do texto está valendo?
  • consegue entender os motivos das faltas dos parlamentares às sessões?
  • consegue entender os gastos de um parlamentar?
  • consegue entender como um parlamentar votou em determinada proposta?

Esses exemplos explicitam a miopia da nossa transparência. Enquanto essas perguntas não são feitas e, principalmente, suas respostas aferidas, publicamos, com orgulho de um trabalho bem feito, “o rol de responsáveis pela gestão”.

Curioso notar que nosso índice de transparência à época do diagnóstico do portal obteve nota 8,5, que ostentávamos com satisfação. Paralelamente, ZERO — isso mesmo, zero pessoa entre as testadas conseguiu responder onde estava um projeto de lei e qual sua última versão. E mais:

  • 95% não souberam dizer como uma deputada votou em determinada proposta.
  • 95% não souberam dizer quanto uma deputada gastou em seu mandato.

Isso é esconder veladamente a informação.

Antes que aventem a baixa escolaridade dos cidadãos, todas as pessoas testadas tinham ensino médio completo, a maioria com curso universitário.

Não conseguimos mudar os critérios de aferição de transparência para outros que incluíssem também a encontrabilidade e compreensibilidade da informação. (Parlamentos que queiram conhecer a metodologia proposta, após trabalho de um ano desenvolvido em conjunto pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, podem acessá-la aqui).

Linguagem Simples é irmã siamesa da transparência.

MAS AFINAL, O QUE É LINGUAGEM SIMPLES?

É um conjunto de técnicas de comunicação que permite que as pessoas encontrem, entendam e consigam usar as informações públicas sem precisar ler duas vezes nem pedir explicação a um especialista.

Parte do princípio de que os cidadãos têm o direito de entender a informação pública.

E têm mesmo. Além da Constituição Federal, que em seu artigo 5º garante o acesso à informação a todas as pessoas, diversas leis já determinam que o Poder Público ofereça a informação em uma linguagem que as pessoas entendam:

  • Lei de Acesso à Informação
  • Lei dos Direitos do(a) Usuário(a) do Serviço Público
  • Lei Brasileira de Inclusão
  • Lei Geral de Proteção de Dados
  • Lei do Governo Digital

Mas esse movimento não é brasileiro. Já existe há 80 anos, em mais de 50 países, muitos deles com leis próprias publicadas. Existe até uma norma ISO (internacional) de Linguagem Simples, que está sendo adaptada no Brasil pela ABNT.

Fonte: Red Lenguage Claro Colombia

Portanto, não estamos falando simplesmente de “escrever intuitivamente de um jeito que o outro entenda”. Estamos falando de técnicas amparadas por estudos da psicolinguística, neurolinguística e design da informação.

A Linguagem Simples vai muito além de trocar palavras difíceis por palavras fáceis. Por isso, para denotar a técnica prefiro termos como os consagrados nos países de língua inglesa, espanhola ou em Portugal: plain language, lenguaje claro ou linguagem clara. Têm um significado mais preciso para o que queremos dizer.

MEIO E MENSAGEM, FORMA E FUNÇÃO

Na minha missão profissional anterior, em que olhava para usabilidade e leiaute, deparei-me com o desafio da linguagem. Em um dos papéis que exerço hoje, o de instrutora e consultora de Linguagem Simples, o desafio é o oposto: mostrar aos alunos que a plataforma, a diagramação e as escolhas de design da informação fazem parte da Linguagem Simples.

A forma tem função. O meio é parte da mensagem.

Assim, a escolha de fontes, de cores, o espaço em branco entre parágrafos, os intertítulos, a informação gráfica, o uso de esquemas, listas e tabelas, tudo faz parte da Linguagem Simples: afinal, o objetivo não é apenas entender a informação, mas também encontrar e usar.

As pessoas que buscam uma informação ou serviço escaneiam o texto com o olhar. Não leem palavra por palavra, frase por frase. Pulam partes, lendo em F, em Z e em outros formatos muito bem documentados pelos estudiosos de usabilidade. E a técnica de redação precisa levar esse comportamento em conta. (Não estamos falando aqui de textos acadêmicos, textos de estudo, de Literatura ou deste artigo).

Outro aspecto do meio a se considerar é a plataforma: 98,9% dos acessos à Internet (2022) são por celular. A tela pequena muda a experiência do usuário. Ele está, muitas vezes, em uma segunda tela; está com a atenção dispersa, dividida entre mensagens que pulam na frente e o conteúdo que você escreveu.

Conteúdos planejados para o formato desktop — com esquemas e infografias horizontais, imagens com textos inseridos, colunas laterais para explicar conteúdos — perdem o sentido no celular e dificultam o uso da informação.

Página na tela de computador:

Mesma página no celular:

Os governos, ainda alheios e com grande atraso em relação a essa realidade, projetam páginas que causam grandes transtornos ao usuário e dificultam a compreensibilidade da informação.

USABILIDADE E DESIGN THINKING: OUTRAS IRMÃS

Linguagem Simples também é uma área irmã da usabilidade e do design thinking: as três são abordagem de solução de problemas centradas no usuário. Unem o princípio do design de se chegar à melhor forma para determinada função.

O fiel da balança — que mostra que está bom, que deu para entender, que deu para completar a tarefa — é o usuário, leitor, ouvinte ou espectador. Não é seu colega de sala nem o especialista no assunto.

Linguagem Simples é difícil. É complexo. É resultado de equipe multidisciplinar. Não é um saber intuitivo. Precisa ser testada e validada pelo público final, com testes de leiturabilidade ou de usabilidade, dependendo do contexto. Aí a gente, que jurava que estava escrevendo de forma compreensível, quebra a cara e começa tudo de novo. Não tem problema.

Linguagem Simples é um valor fundamental em um mundo de hiperestímulos neuronais, de chuva de informações, de burocracia versus tempo escasso. É um serviço público, na acepção mais literal e filosófica do termo. Ou, como diz a principal expoente da linguagem Simples no Brasil, Heloísa Fischer: “é um ato de misericórdia com o tempo do leitor”.

Pelo direito de entender.

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Patricia Roedel
LABHacker

Jornalista, instrutora e consultora de Linguagem Simples, ativista da transparência e da comunicação pública