E-Participação no Legislativo: idealizando o futuro com o que já existe (e enxergando os desafios)

Uma análise comparativa entre a Câmara dos Deputados e legislativos mundo afora nos permite enxergar melhor o cenário ideal de uso das ferramentas digitais de participação? E algumas das (principais) questões que nos impedem de chegar lá.

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8 min readMay 16, 2022

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As grandes possibilidades da tecnologia têm inspirado gerações de autores e roteiristas a imaginarem os cenários mais espetaculares para o futuro. Otimistas ou distópicos, esses cenários muitas vezes não se confirmaram — convertendo-se em uma espécie de “futuro do passado”. Outros, tornaram-se realidade, ainda que de forma diferente da ficção. E há aqueles que ainda podem se confirmar — quem sabe? — mas nunca na rapidez sonhada.

De forma análoga, conceitos de Democracia Digital alimentam a promessa — ou o desejo — de que as tecnologias poderiam revolucionar completamente nossas instituições e nossa forma de fazer política. Haveria flexibilidade e inovação suficiente mundo afora para que surgissem ferramentas digitais que criariam novas formas de se fazer a democracia representativa, participativa e — nos círculos mais ciberotimistas — uma democracia direta.

Afinal, se estamos cada vez mais fazendo tudo com poucos cliques no celular, também não deveríamos poder votar, nos posicionar sem barreiras? A ideia é sedutora, mas é um erro tratar uma ferramenta digital como uma solução “mágica” para problemas inerentes a cada sistema político e às particularidades sócio-histórico-culturais de cada país. Toda democracia convive com acalorados debates, crises e reformas ao longo de sua história, o que evidencia ser a construção das instituições e processos políticos algo complexo, com contínuas idas e vindas, reinterpretações de experiências pregressas.

Imagem: Adobe Stock

Se a Democracia é, ao mesmo tempo, um acúmulo de experiências e uma reformulação permanente, então podemos entender melhor o desafio de implementação das ferramentas digitais de participação popular — ou e-Participação. Por mais que tecnologias pareçam disruptivas, elas não existem no vácuo, sem estar claramente associadas a oportunidades e problemas concretos. O desenho de uma forma ideal, produtiva e eficaz de participação social dentro de uma instituição é algo que envolve muitas variáveis e desafia respostas prontas, assim como qual a forma e o papel a ser desempenhado pela tecnologia.

Justamente por não haver respostas prontas e sem a pretensão de oferecer neste texto certezas, podemos especular sobre um futuro possível da e-Participação nos parlamentos Diferentemente da ficção, no entanto, podemos imaginar esse futuro a partir do que já existe e reconhecendo alguns dos principais desafios para chegarmos lá.

Há vários experimentos envolvendo legislativos pelo mundo com o intuito de propiciar uma maior participação popular pelo meio digital — incluindo a Câmara dos Deputados. Todas essas iniciativas enfrentam dificuldades na sua implementação, mas oferecem aspectos interessantes para serem analisados de forma comparativa e (tentarmos) responder a pergunta: o que é (ou deveria ser) a e-Participação no Legislativo?

Primeiramente, o que entendemos como ferramentas de e-Participação no Legislativo? A diferença entre o engajamento e participação no meio digital.

Frequentemente, a participação popular digital no Legislativo pode ser entendida em um sentido amplo, como todas as formas digitais usadas com vistas a influenciar o trabalho parlamentar. Essa concepção ampla englobaria de sites de abaixo-assinado a, inclusive, redes sociais.

Um dos motivos para esse entendimento são os grandes números mostrados por essas ferramentas. Não raro, uma petição pode atingir milhões de assinaturas. E, no caso das mídias sociais, há métricas que podem dar maior ou menor peso na hora de uma mensagem influenciar os parlamentares, a exemplo do número de seguidores e o engajamento obtido.“É onde o povo está” diriam alguns ao falar dessas ferramentas privadas, principalmente tratando-se de redes sociais.

Porém, cabe aqui uma série de perguntas: A participação deve ser medida apenas por uma questão de audiência? Temos a devida transparência nos algoritmos dessas ferramentas privadas para avaliar a forma como essas discussões são impulsionadas? Podemos delegar a elas os espaços de discussão política ou enxergá-las como a opção possível de participação digital no sistema político?

A resposta para todas essas questões parece ser não. E ainda que seja inevitável reconhecer um papel dessas tecnologias privadas — seja este positivo ou negativo — dentro do cenário de debate político, é de se questionar sua caracterização como ferramentas de participação. Adotaremos, portanto, um sentido mais restrito de e-Participação. Como não parece haver um consenso ou uma tendência clara na literatura especializada, vamos adotar neste texto uma distinção entre os termos engajamento e participação, com respectivas diferenças nas ferramentas digitais.

Engajamento refere-se a todas as formas de mobilização de cidadãos que visam influenciar o Poder Público e inclui todas atividades fora das instituições e espaços formais — como, por exemplo, manifestações, coleta de assinaturas, campanhas cívicas. As ferramentas digitais utilizadas para engajamento cívico são geridas por entes privados, organizações ou empresas, muitas vezes com fins lucrativos e não foram concebidas, necessariamente, para auxiliar o desafio do debate político e a construção de consenso, pois são permeadas por uma lógica de audiência, de publicidade ou de grandes números para exercer pressão. Exemplos são os sites de abaixo assinado — como Avaaz e Change — e redes sociais.

Participação, por sua vez, abrange todas as ações ou contribuições de cidadãos no processo político, dentro de espaços formalmente constituídos e com previsão legal — a exemplo do voto em eleições, plebiscitos e referendos, ou participação em audiências públicas. As ferramentas digitais de participação são geridas pelo Poder Público, intencionadas para dialogar com as regras formais das instituições, em níveis variados de maturidade. Os números de participação podem ser menores ou maiores e sua eficácia dentro do processo legislativo está sujeita ao debate, mas têm o objetivo de trazer alguma forma de abertura/facilitação no processo legislativo. É o caso das ferramentas de petições eletrônicas, consultas públicas online ou ainda de audiências públicas virtuais.

Engajamento e participação, ainda que entendidos aqui como distintos, também podem se inter-relacionar. Parlamentos têm criado “canais institucionais” também nas redes sociais, o que faz com que o Poder Público marque presença também nesses espaços. As estratégias de engajamento podem ser utilizadas por entes privados, pessoas e pelos próprios órgãos públicos para mobilizar a participação dentro dos espaços, das oportunidades formais de participação. Em outras palavras, o engajamento por meio de ferramentas privadas pode ser utilizado como uma forma de alavancar ou estimular a participação dentro das ferramentas geridas pelo Poder Público.

O engajamento cívico pode acontecer à margem de espaços institucionais de participação, mas também pode acontecer em inter-relação com os espaços formais de participação constituídos nos parlamentos.

Oportunidades de e-Participação em diferentes etapas do processo legislativo

Os caminhos que um projeto de lei pode, ou não, percorrer variam muito em parlamentos dependendo da leitura que se é feita dos regimentos — com suas possíveis alterações — e pelas forças políticas em curso. Existem vários graus de maior ou menor institucionalização da participação nesse caminho de uma proposta legislativa nos diversos parlamentos.

Observando-se diferentes casos de e-Participação, é possível se perguntar: a oportunidade de e-Participação deveria acontecer em uma comissão específica? Ou deveria acontecer em mais de uma comissão? Em um sistema bicameral — como o caso brasileiro — deveria haver oportunidades de participação em ambas as casas? Em que momento seria melhor?

O processo legislativo tem muitas etapas de discussão e a participação social em uma casa legislativa geralmente não é aproveitada quando o projeto aprovado vai para a outra casa.

É difícil dizer em que momento seria melhor haver uma possibilidade de participação digital. De novo, muitas variáveis influenciam e os modelos de institucionalização da participação digital precisam ser implementados e testados para percebermos se foram mais ou menos úteis para a discussão legislativa. Não há uma certeza líquida e cristalina de como avaliar a qualidade de uma contribuição da participação e nem qual a chance de ela ser incorporada ou não no processo. O processo legislativo tem um tempo com percalços variáveis, em que não há clareza de haver um melhor momento em que um processo participativo seria mais benéfico.

Primeiramente, assumamos que ter diferentes oportunidades de participação é apropriado para aumentar a quantidade e o interesse de participação. Pois nem todas as pessoas participarão do mesmo jeito e em todo o tempo durante o processo legislativo de uma mesma proposição.

As diferentes etapas do processo legislativo representam distintas possibilidades de participação. De uma maneira mais simplificada e clara, seguiremos a descrição do Parlamericas que em seu toolkit descreve as seguintes etapas: Estabelecimento da agenda, Desenvolvimento de conteúdo do projeto de lei, Elaboração do projeto de lei, Revisão do projeto de lei e Fiscalização.

Fonte: PARLAMERICAS. Kit de ferramentas — Participação Cidadã no Parlamento.

A proposta do esquema pode dar a ideia de que o processo ideal de participação seria sequencial. Porém, é preciso que fique claro que ele pode acontecer de forma sequencial, se houver mais de uma ferramenta de participação digital disponível. Dada uma certa complexidade do processo legislativo, seria impossível — ou até indesejável, mesmo em um cenário ideal — esperar que as propostas com participação popular seguissem necessariamente todas essas etapas. Como os parlamentares têm a prerrogativa de apresentar um projeto de lei — algumas vezes atendendo a demandas mais ou menos urgentes ou de segmentos específicos da sociedade — este não seria apresentado necessariamente por meio de uma fase de estabelecimento de agenda. O que não impediria que, no trâmite legislativo, essa mesma proposta pudesse contar com outras formas de participação.

Os exemplos de plataformas de e-Participação existentes apresentam um bom potencial de complementação, de sinergia entre elas, para que possam ter um ciclo “completo”. Ou melhor dizendo, que uma mesma proposta possa, potencialmente, passar por várias etapas de participação. As ferramentas, neste caso, têm em comum o fato de não possuírem um caráter vinculativo, ou seja, os parlamentares não são obrigados a seguir o resultado de votações ou acatar as sugestões. A depender, pode existir uma normativa que obrigue alguma resposta, algum feedback na apreciação do processo legislativo, sem a obrigação que esta seja favorável à demanda.

Mas veremos em detalhes cada um desses exemplos de parlamentos mundo afora na continuação desta postagem. Até lá!

Texto escrito pelo hacker Diego Cunha.

PARA SABER MAIS:

PARLAMERICAS. Kit de Ferramentas Participação Cidadã no Processo Legislativo. Toolkit. Disponível em: https://parlamericas.org/uploads/documents/Kit%20de%20ferramentas_Participa%C3%A7%C3%A3o%20Cidad%C3%A3%20no%20Processo%20Legislativo.pdf

THE GOV LAB. “4. Crowdlaw | Framework for institutional public engagement in lawmaking”. Site. Disponível: https://crowd.law/crowdlaw-model-legislation-annotated-30f864593e2

INSTITUTO CIDADE DEMOCRÁTICA. Pistas da travessia para a democracia em rede. Blog. Disponível em: medium.com/cidades-democr%C3%A1ticas/pistas-para-a-travessia-da-democracia-em-rede-d508db75f15d

INSTITUTO CIDADE DEMOCRÁTICA. Participação Social no Brasil — Lições Aprendidas. Blog. Disponível em: https://medium.com/cidades-democr%C3%A1ticas/participa%C3%A7%C3%A3o-social-no-brasil-li%C3%A7%C3%B5es-aprendidas-c693e9a0a32a

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