Tendências globais de inovação governamental: responsabilidade, equidade, empatia e proatividade

Simone Ravazzolli
LABHacker
Published in
10 min readMay 19, 2023

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou, nesta semana, o relatório “Global Trends in Government Innovation 2023”, que apresenta as experiências de destaque em inovação no enfrentamento de desafios e as relações entre poder público e cidadãos em todo o mundo.

O relatório foi elaborado a partir de uma ampla pesquisa em busca das principais tendências de inovação do setor público. A esse trabalho foram incorporados estudos de caso enviados do mundo inteiro, o “Call for Innovations”, tornando o relatório um modelo de inteligência coletiva que conta histórias de experiências de sucesso em inovação. Mais do que iniciativas, são modelos que estão derrubando formatos, regras e maneiras de “como sempre foi feito no serviço público”. O tipo de coisa que a gente aqui do LAB gosta, e aposto que você aí também! ;-)

O relatório Global Trends in Government Innovation 2023 apresentou as quatro tendências mundiais em inovação no governo e associou a essas tendências 10 estudos de caso de vários países, um deles do Brasil

Dado o contexto, vamos aos destaques que nos interessam…

Primeiro ponto: Brasil fez bonito! Foram analisadas mais de 1 mil inovações de quase 100 países. Para ser mais precisa, foram 1.084 inovações de 94 governos diferentes. A participação brasileira chamou a atenção dos responsáveis pela análise, ao destacarem os “surpreendentes” 112 casos enviados pelos inovadores brazucas; seguidos pela Grécia, com 53 casos. Isso já dá uma ideia de que, quando o assunto é inovação, estamos com o pé no acelerador… Desse total, 36 exemplos brasileiros foram inseridos na pesquisa e um estudo de caso foi aprofundado, o da população indígena Maxakali, e tornou-se destaque entre os 10 projetos de inovação associados às tendências mundiais de 2023.

Nesse universo, os pesquisadores identificaram para este ano quatro principais tendências de inovação relacionadas a sociedades resilientes e preparadas para o futuro: responsabilidade, equidade, empatia e proatividade. Aí vem o segundo ponto importante: onde estão os conceitos disruptivos? Lembre-se que, no contexto global, várias das iniciativas são respostas do poder público para reestruturação e recuperação em momento de pandemia. Assim, conforme o próprio relatório explica, em vez da introdução de conceitos radicalmente novos, as tendências identificadas representam uma “evolução sistêmica e maturidade das prioridades e fluxos de trabalho do governo já em andamento”. É a inovação gerando valor público de dar estabilidade em tempos difíceis.

A essas quatro tendências governamentais foram associados 10 estudos de caso de projetos de inovação aprofundados, além de dezenas de outros exemplos. Esses modelos, inclusive os que não fizeram parte do relatório, são incorporados a uma biblioteca de estudos para compartilhamento mundial das boas ideias. No mesmo link, os interessados também podem apresentar um novo projeto.

Principais Tendências de 2023

1 — Novas formas de responsabilidade para uma nova era de governo: tendência governamental de incorporar a Inteligência Artificial no desenho e na entrega de políticas e serviços e garantir responsabilidade algorítmica. Para esta análise, foi apresentado um estudo de caso do Reino Unido (Algorithmic Transparency Recording Standard). Esta primeira tendência inclui também novos aspectos de transparência, em que foi associado o exemplo da Holanda (Sensor Register). Na sequência do texto, falamos mais sobre essa tendência e seus dois estudos de caso.

2 — Novas abordagens de cuidado: esta tem relação com a pandemia de COVID-19 e engloba respostas adequadas aos novos desafios da saúde, que incluem serviços integrados, com caso da Colômbia (Bogotá’s Care Blocks); atenção especial à saúde mental, com modelo da Austrália (Mental Health Café); e as inovações tecnológicas que revolucionam o setor, com a AI Nurse Tucuvi, da Espanha.

3 — Novos métodos para preservar identidades e fortalecer a equidade: esta tendência está relacionada aos esforços governamentais para enfrentamento de desigualdades e fortalecimento de comunidades, em especial as sociedades indígenas, assim como reconhecer e proteger os valores culturais. Como casos de sucesso, foram apresentados os modelos do Brasil, com o projeto Democracia, Cidadania e Justiça ao Povo Maxakali, iniciativa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; de Bolonha, na Itália, com o combate à criação de uma subclasse de trabalhadores sem qualquer acordo formal de emprego, a cooperativa de plataforma de entregas Consegne Etiche; e de Singapura, com o Empowered Families Initiative, um projeto inovador para investimento e apoio às famílias.

4 — Novas formas de engajar cidadãos e residentes: A quarta tendência identificada pelo estudo trata das novas formas de engajamento da sociedade, com governos mais abertos e a preocupação de tornar a tomada de decisão mais participativa, inclusiva e democrática. Aqui são duas linhas, basicamente: aprimorando vozes, com a descentralização do poder público, e reimaginando comunidades, para propostas relacionadas a novas comunidades físicas e virtuais. Os estudos de caso associados são da Bélgica, com os comitês deliberativos, e da Serra Leoa, com o #FreetownTheTreeTown, iniciativa para resolver problemas climáticos com tecnologia digital e inovadora.

Pronto! Temos aí a base das quatro tendências de inovação para este ano. Como o material é muito extenso e o tempo, hoje em dia, é um ativo escasso, minha proposta aqui neste texto é olhar um pouco mais para a primeira e a última tendência. Isso porque estão relacionadas a novas tecnologias, transparência, governo aberto e participação social, que são os principais pontos focais do LABHacker. Mas quem tiver com um tempinho pode conferir cada um dos estudos de caso (links acima), pois vale a pena saber o que anda chamando a atenção em inovação governamental.

Sessão Plenária dos Comitês Deliberativos (comissions délibératives) da Bélgica: estudo de caso que virou destaque no relatório da OCDE. (Fonte: OPSI)

IA veio com tudo

Voltando, então, à primeira tendência, os pesquisadores destacaram os esforços de vários governos para a incorporação da inteligência artificial na concepção e entrega de políticas e serviços públicos e para seu uso ético. Esse ponto implica a responsabilização de algoritmos (garantir que os que constroem, adquirem e usam algoritmos sejam eventualmente responsáveis ​​por seus impactos) e o reforço da transparência e da construção de confiança entre o poder público e os cidadãos.

Mais de 60 países já têm estratégias e políticas de IA em vigor. Os benefícios da inteligência artificial no setor público são reconhecidos, significativos e recebem atenção, mas a OCDE demonstra preocupação com pontos como curva de aprendizado íngreme, ausência de auditorias, e algoritmos e dados de governo vulneráveis a vieses, como em casos de avaliação de risco criminal ou status sócio-econômico, além do reconhecimento facial, é claro. O relatório destaca ainda a importância do papel de entidades de supervisão independentes, que fariam uma espécie de auditoria do uso de algoritmos no setor público. Um exemplo seria o Conselho de Transparência do Chile, que desenvolve um projeto aberto e participativo para a criação de uma “Instrução Geral sobre Transparência Algorítmica”, obrigatória para entidades públicas, com consulta pública prevista para este ano ainda.

Como estudo de caso e inspiração para outros países, foi destaque o Algorithmic Transparency Recording Standard (ATRS), do Reino Unido, que ajuda os órgãos públicos a divulgar abertamente informações claras sobre as ferramentas algorítmicas que usam e por quê.

Junto com a responsabilidade algorítmica, há uma preocupação em ampliar a visão de governo aberto, com uma abordagem mais radical sobre transparência e construção de confiança entre o poder público e os cidadãos. Um dos temas de destaque avaliados no relatório são questões de privacidade relacionadas à Internet das Coisas em cidades inteligentes (principalmente com a incorporação de sensores).

Como estudo de caso, o Sensor Register, de Amsterdã, ferramenta desenvolvida após um regulamento inovador que obriga o registro de todos os sensores existentes em espaços públicos da cidade.

Sensor Register: na capital da Holanda, dados sobre sensores em espaços públicos são coletados e compartilhados de forma transparente

Adendo: Com relação à responsabilização de algoritmos e regulação da inteligência artificial, é importante lembrar que o Brasil também está alinhado à tendência. Agora em maio, foi protocolado no Senado o PL2338/23, que cria um marco regulatório da inteligência artificial no país. Escrito por juristas e especialistas, o texto prevê responsabilização, além de 12 princípios como participação humana no ciclo da inteligência artificial e supervisão humana efetiva; não discriminação; justiça, equidade e inclusão; transparência, explicabilidade, inteligibilidade e auditabilidade; entre outros.

Engajamento no mundo

A quarta tendência é sempre um grande desafio pra gente que gosta de democracia participativa e governos abertos. Isso porque, sabemos, há um problema mundial de confiabilidade dos cidadãos em relação a representantes, políticas e serviços públicos. Desta forma, pensar em soluções e técnicas para melhorar essa conexão entre o poder público e os cidadãos é, cada vez mais, necessário. Quais seriam essas abordagens inovadoras para engajar novos públicos e reconstruir a confiança necessária? Aí entram vários resultados de pesquisas anteriores da OCDE, que valem a pena a gente sempre manter no radar.

Em 2021, uma das conclusões nesse sentido foi de que o percentual de satisfação dos cidadãos aumentava à medida que os governos ampliavam a participação de interessados. É o nosso conhecido “se o outro está realmente comprometido com o projeto, ele tende a ser um advogado que vai defendê-lo”. Em 2020, na mesma linha, outro insight importante que resultou da análise dos dados da pesquisa da OCDE foi que jovens que estão mais envolvidos no ciclo político tendem a expressar uma maior satisfação com o desempenho do poder público (aqui na Câmara a gente acompanha isso com o resultado das pesquisas realizadas com os jovens que participam de programas institucionais para conhecer o trabalho legislativo). Na mesma linha, a insatisfação de cidadãos por não ser uma voz para os governos também aparece nos resultados. Por isso, no final do ano passado, 42 países adotaram o plano de ação da OCDE para melhorar a representação e a participação, com a Declaração sobre Construir a Confiança e Reforçar a Democracia (criar oportunidades para participação e deliberação pública inclusiva e fortalecer a representação democrática).

O relatório destaca que um dos formatos que mais têm sido escolha dos governantes é em direção a formas permanentes de democracia deliberativa, que criam espaços para que os cidadãos possam exercer seus direitos e deveres além do voto. Uma espécie de conselho de cidadãos que trabalham em paralelo e colaborativamente ao Parlamento, não como substitutos, mas como complementares a essa estrutura, e aí com vários modelos possíveis.

Outro modelo mais aberto, e que você já conhece, é a entrada das GovTechs (LegisTechs, JusTechs… considere toda a família) no processo de transparência governamental e empoderamento dos cidadãos para a participação política, gerando mais conexão e o aumento da confiança. É mais um caminho para o que os pesquisadores chamam de tecnologia democrática (DemTech), criando, de maneira contínua, uma relação entre os cidadãos e as políticas.

Para que essas mudanças sobre engajamento ocorram em mais países, a OCDE dá o spoiler e promete divulgar, no ano que vem, o Plano de Ação sobre Democracia Digital, que servirá para embasar ações concretas. Também indicou que, para o próximo relatório, vai trabalhar na questão da capacidade de resposta do setor público, que apareceu nos dados até agora como um fator que pode ser mais forte para a criação da confiança do que propriamente a participação. Se você também se preocupa com esses pontos, fique de olho!

Colaboração para problemas reais

Engajar também pressupõe repensar e reconstruir as comunidades em seus espaços físicos e virtuais. Essa linha tem influência do contexto atual de guerra entre Rússia e Ucrânia e também pós-pandemia, e traz ideias como a criação de um laboratório nacional na Alemanha para, junto com cidadãos e parceiros, repensar o futuro. Outra é a experiência de Bogotá, com seus processos de codesign mútuo de bairros públicos e espaços físicos. Em comum, processos colaborativos para ajudar a resolver os problemas reais dos cidadãos.

Como estudo de caso, foi apresentado o modelo da Bélgica dos comitês deliberativos. Já inseridas no regimento do Parlamento de Bruxelas, essas comissões, compostas por 15 membros eleitos e 45 cidadãos escolhidos por sorteio, são responsáveis pela elaboração de recomendações sobre temas, às quais o Parlamento deve responder. Olha só como o processo funciona:

Processo dos comitês deliberativos, em funcionamento em Bruxelas desde 2021 (Fonte: Relatório OCDE)

O estudo de caso da Serra Leoa #FreetownTheTreeTown também foi destaque da tendência sobre engajamento dos cidadãos. No modelo, a capital Freetown convoca seus cidadãos para ajudar com um sério problema na área de meio ambiente. Trabalho colaborativo e tecnologia digital a serviço de todos.

Tendências secundárias, sim, temos!

Ainda com fôlego? Então vamos passar rapidinho aqui mais quatro tendências que foram encontradas pelos pesquisadores e citadas no relatório da OCDE. Não tiveram o destaque que as prioritárias receberam nas participações dos países, mas pra gente que se interessa por inovação no poder público vale a pena botar no radar.

Transformação da administração pública: iniciativas relacionadas à medição da inovação e mudanças para melhorar processos básicos, como aquisições e qualificação de servidores;

Foco nos jovens: ideias que dão voz à juventude nas políticas públicas e mostram preocupação em desenvolver soluções adaptadas a esse público;

Sustentabilidade: abordagens sustentáveis e criativas para reduzir as emissões de carbono; e

Fortalecimento do ecossistema GovTech: propostas que reforçam a importância da parceria e apoio a startups e vão além do setor público em busca de agilidade e soluções inovadoras.

Aqui no LAB, temos acompanhado que propostas relacionadas à primeira e à última dessas tendências têm aparecido com mais freqüência. Movimento que começou no home-office durante a pandemia, muitos laboratórios de inovação têm pensado e debatido sobre medição e formatos de avaliação desse trabalho que é diferente e, muitas vezes, ainda não compreendido pela administração pública. Afinal, é fundamental ter “resultados”, seja para justificar sua existência, conquistar o patrocinador interno do projeto, estimular outros servidores e cidadãos a inovar, ou mesmo para a gente se sentir feliz e útil no que faz.

A outra é o estímulo ao ecossistema GovTech e o trabalho em conjunto com startups inovadoras e o empreendedorismo cívico. Editais nesse sentido têm sido divulgados toda semana, alternando temáticas, modelos de fomento e patrocinadores. Para quem gosta desse assunto, vale a pena dar uma olhada no Programa CitzTech, que realizamos no ano passado com a Meta e a Fundação Certi e contou com cerca de 250 inscritos de todo o país. Pra este ano vem mais novidades aí!

E vocês? Quais das tendências prioritárias ou secundárias vocês identificam no órgão ou setor onde trabalham? Está aí um bom debate pra gente fazer… topam?

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Simone Ravazzolli
LABHacker

Jornalista em constante aprendizado, entusiasta da Democracia e da participação social.