A explosão do Terceiro Mundo

Por Laura Clemesha Coggiola

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10 min readDec 11, 2018

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Resumo

O filme O Bandido da Luz Vermelha antecede em 11 dias a promulgação do Ato Institucional 5. O horizonte democrático se fechava, com o AI5 buscando silenciar a expressão livre e o pensamento crítico. O Bandido da Luz Vermelha teve uma trajetória peculiar para esse momento, escapando da censura e alcançando sucesso de bilheteria. Um pouco pelo fato de Sganzerla ser um diretor novo, que ainda não era visado pelos militares, um pouco pelo filme ser uma ruptura com o cinema político de então, o Cinema Novo. Ele propõe um certo esgotamento de sentido de seu discurso político militante e das formas de fazer política na cultura — que precisa se reinventar com o AI5. O Bandido é uma resposta a esse novo momento político. Ele tem uma comicidade e uma estranheza que brinca com o espectador e com a situação tensa do país. Engana, disfarçando ali uma gama de aflições. É um filme forte e crítico, mas que causa gargalhadas. Sempre causou, dizia Helena Ignez na conversa pós exibição do filme na 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Sua ironia, infelizmente, tem ficado cada vez mais melancólica, culpa de um embrutecimento da nossa realidade, com a qual ele continua dialogando terrivelmente bem.

Rogério Sganzerla, inicia sua carreira como crítico cinematográfico para o Suplemento Literário. É filho inspirado do Cinema Novo e por isso mesmo necessariamente briga com seu pai no percurso de atingir sua maioridade. O exercício da crítica será uma escola de formação para o jovem cineasta. Irá desenvolver suas ideias para posteriormente criar seu próprio cinema, autoral, afiliado ao Cinema Novo enquanto técnica e linguagem, porém inovador enquanto discurso e estilo. Essa conexão entre escrita e prática do cinema é uma marca da época, sendo comum também a muitos de seus autores de referência na Nouvelle Vague, em uma geração marcada pelo afã de criação, pela escrita e exercício da crítica e pela precocidade.

Sganzerla estréia com Documentário (1966) um curta-metragem sobre dois jovens que vagam pela cidade de São Paulo, pretendendo ir ao cinema. Dois anos depois lança O Bandido da Luz Vermelha, seu primeiro longa-metragem. O filme tem a característica de ser antropofágico ao citar, incorporando e justapondo, as referências múltiplas do autor. Sganzerla faz um cinema destemido ao usufruir da liberdade de copiar assumidamente obras desde a Nouvelle Vague até o mais trash do cinema americano. Ele renega, assim, um certo lugar maior que a arte pretende ocupar, que os diretores buscam com seus filmes.

O Bandido da Luz Vermelha tem como referência direta um personagem verdadeiro da crônica policial brasileira. Um misterioso mascarado que fazia roubos em São Paulo e vivia ostensivamente em Santos: João Acácio Pereira da Costa. Esse bandido foi preso em 1967, e a história de sua perseguição rendeu muitos detalhes de inspiração para o jovem Rogério Sganzerla.

Porém, o bandido do filme não tem pretensão alguma de ser biográfico. Sganzerla apenas enxergou naquela história um espaço fértil para fazer nascer sua narrativa, que tem como questão central a crise de identidade deste sujeito que é um marginal perdido em meio a maré de caos do o Terceiro Mundo, subdesenvolvido e capitalista. O ambiente é a Boca do Lixo, como era conhecida uma região do centro de São Paulo. No filme este é o covil e também o local de perseguição do Bandido, que o diretor estende usando imagens desde a Avenida São João até o MASP. O protagonista, interpretado por Paulo Villaça, é um bandido misterioso que ganha fama por sua maneira impiedosa de matar, estuprar, roubar.

O filme tem uma genialidade na construção semântica. Já nos primeiros dois planos somos apresentados a todo o grande drama que se desenvolverá. “Um gênio ou uma besta” é isso que diz o letreiro luminoso do primeiro plano do filme. Segundo plano, uma capa de gibi com uma esfinge deitada e os dizeres “O destino do homem” e, ao mesmo tempo, ouvimos Paulo Vilaça indagar “Quem sou eu?”. Aí está posto o filme: uma grande perseguição para compreender uma identidade fugidia. Pela opinião pública, expressa pelos luminosos nesse momento e logo em seguida pelos radialistas, e também o próprio Bandido que busca compreender sua individualidade incerta, em crise, que se auto-afirma fracassada. É no limite indefinido entre o eu e o mundo que se estabelece a individualidade desse sujeito sem limites que se recusa a se definir; o mundo se recusa de parar de atravessá-lo violentamente. Se sua persona é uma incógnita, seu objetivo também é. O que sabemos é que um dia ele pretendera “ser grande”, mas o filme começa com ele já admitindo o fracasso. Essa derrota lhe confere liberdade; sem ter mais pra onde ir, ele pode avacalhar. Imaginar um horizonte, para o protagonista, é esse exercício de lidar com a esfinge de ponta cabeça.

A ditadura militar transparece sem ser propriamente nomeada. O Bandido da Luz Vermelha será um dos primeiros filmes a deslocar a narrativa do campo a cidade. Mostra o kitsch, o cafajestismo, o gestual cafona, para representar um Brasil incomum de se ver nas telas. Isso por que esse momento é marcado pelo sentimento romântico de brasilidade revolucionária. O Cinema Novo busca fazer um gênero brasileiro, com o homem brasileiro, o original, como personagem central e a fome, o grande problema nacional, como tema. Sganzerla quebra com essa lógica de buscar o Brasil nas origens. Deixa de lado também a busca pela verdade, pelo discurso autoritário. O diretor enxerga a graça do que seria renegado pela tradição do “filme de arte”, assume-se no pleonasmo de “filme de cinema de Rogério Sganzerla”, que mais do que uma repetição de uma obviedade, é a exclusão do possível adereço: “de arte”. Desta maneira, o filme O Bandido da Luz Vermelha assume-se livre, faz parte da ordem das coisas menores da vida, não tem compromissos com a arte, com a verdade. É justamente na genialidade de se libertar do que se esperava de um cineasta, naquele momento em que imperava o Cinema Novo, que Sganzerla faz a sua grande obra.

Sob o império da liberdade, a experimentação e o aparente “descaso” com a narrativa tornam-se agentes construtivos do filme. É dada autonomia a imagem e aos atores. O jeito de Sganzerla de construir é copiando e colando diferentes referências explícitas, e assumindo a cópia. Há uma entrevista interessantíssima para o Pasquim, em 1970, intitulada “Helena — a mulher de todos — e seu homem”, o diretor assume que faz cópias, mas não imitações. Em um tom um tanto pejorativo, aponta como outros diretores do Cinema Novo buscam referências no exterior para imitar, “tropicalizar”, disfarçando o subdesenvolvimento do cinema brasileiro, as tendências que chegam sempre um pouco depois do que na Europa. Além das citações diretas, a imagem é trabalhada, agrega signos, e nisso consegue bastar por si para criar a narrativa. Conhecemos os personagens pelo que nos mostram diante da câmera, não é uma transcendência da alma, sua psique, que explica o sentido e discurso ao filme. Afinal, qual seria a alma, ou formação psicológica de uma personagem como Janete Jane? Ela é tão livre e autônoma quanto seu criador, sua intérprete e o público a permitem ser. Se suas ações causam impacto no espectador, não é por que Sganzerla se demorou em adentrar o universo da vingativa amante, suas mágoas e anseios. Tem mais a ver com os signos que carrega, com a intensidade de seus gestos, que acessam em algum lugar da mente do espectador um reconhecimento com o mundo real, ou, causam uma quebra de paradigma.

Nisso, o uso do humor é importantíssimo. O deboche subverte; através do humor pode-se copiar e mudar completamente o sentido. Seu caráter transformador é perigoso aos mantenedores da ordem. O bandido é irônico e ninguém sai ileso.

Apesar de perigoso há um sentimento angustiante de impotência, que é geral nessa jovem geração reprimida pela ditadura, e transparece na narrativa do Bandido. A saída pela violência parece ser a maneira de obter maior expressividade em meio ao caos social. A inexistência de um projeto de futuro está traduzida na frase quase mantra do personagem nBandido, “um cara assim só tinha que avacalhar”. Esse cara é um sujeito saído da favela do Tatuapé, “com uma tachinha entalhada no pé”. A morte não é uma surpresa, é prevista desde início do filme, o Bandido não relata seus atos heróicos de subversão, mas sim toda sua trajetória em queda livre. A morte é iminente, o suicídio é irônico, retratado de maneira que chega a ser cômica. Sucede contra seu perseguidor após ter matado a si, e ainda, no anonimato. Nada dá pé, é um fracasso desde antes do nascimento, uma tentativa falha de aborto, como ele conta sobre sua mãe. Mas tampouco sobre isso podemos ter alguma certeza; Luz, ou Jorginho, é esse sujeito sem forma definida, que agrega tantos rótulos que se anulam ou são impossíveis.

Essa crise do sujeito que aparece no filme é um novo campo de discurso e reflexão no cinema brasileiro. Um antecessor com quem O bandido da luz vermelha dialoga diretamente é Terra em transe de Glauber Rocha, lançado um ano antes. Várias rupturas estéticas com o Cinema Novo são propostas a partir desse filme. Com o deslocamento do cenário rural para urbano, com a apresentação de protagonistas que exteriorizam a crise do diretor, não se busca mais atingir com um discurso didático representantes da massa trabalhadora. O próprio protagonista esta em crise, se sente um fracasso frente ao que esperava como trajetória de vida. Porém, Paulo Martins, o protagonista de Terra em transe, aparece como alegoria clara para uma camada intelectual de esquerda, com um discurso de esperança através da resistência armada. Mas o filme de Sganzerla não podem conter nada disso. Foi lançado apenas um ano depois, mas uma desilusão e perda de perspectiva de futuro entre os jovens esmaga qualquer tentativa de discurso propositivo.

Em 1968 iniciaram-se os anos de ferro da ditadura. A perseguição, o medo da tortura, o silenciamento. A vida na cidade era marcada pela chegada de produtos culturais norte-americanos, pela violência e pelo lixo. O mundo inteiro está em efervescência: maio de 68, a guerra do Vietnã, a América Latina em resistência. A juventude brasileira de classe média que vivia esse contexto tinha apenas dois caminhos a seguir: o conformismo alienado ou, se escolhesse a insubordinação, a morte. A perspectiva da morte, a violência e a iminência do abuso e do dilaceramento físico, impedem que se enxerguem saídas revolucionárias para a política brasileira.

Não há bases para estabelecer um diálogo racional. A vida urbana é solitária, cada um por si. Falta uma coalizão de interesses das classes populares e médias, o individualismo cresce, ainda por cima em um momento em que a indústria cultural de nichos se desenvolve fortemente. Sganzerla coloca na imagem do bandido sua crise interna de jovem que vive a repressão da ditadura e a caótica vida na metrópole paulistana. A ideia de marginalidade ganha um novo tom nesse momento político. Rogério Sganzerla era um jovem, estudante, crítico cinematográfico reconhecido. O bandido, o marginal, exprime sua sensação de estar contra. De se rebelar sem heroísmo. A maneira de ser político nesse momento em que nada é permitido, é ir contra o sistema, como der. O termo marginal sofre um deslocamento de valor do pejorativo ao positivo. Não é a toa que é do mesmo ano a bandeira “Seja marginal, seja herói” de Hélio Oiticica. O bandido é a avacalhação e a esculhambação. É a busca de um gozo em meio ao caos social. Ele também é um termômetro da efervescência que se sentia em 1968; ao longo do filme ecoa a frase “O terceiro mundo vai explodir, quem estiver de sapato não sobra” dita por diferentes vozes, alguns sujeitos indeterminados que parecem trazê-la como premonição. Uma revolução social há de vir. Difícil era enxergar de onde. Talvez uma invasão alienígena, que traz fogo e Jimi Hendrix para sambar em cima do candomblé, música tema de Terra em transe, fosse tão crível quanto acreditar em uma mobilização civil brasileira.

Helena Ignez como Janete Jane, “O bandido da luz vermelha”, 1968. Reprodução, DVD.

Este ano completa-se cinquenta anos da estreia do nosso emblemático filme, praticamente contemporâneo do AI-5, um dos momentos mais conturbados para se realizar cinema da história do Brasil. Isso se expressa em sua narrativa enigmática, ao revés de esfinge, que muitas e nenhuma resposta nos dará quanto a identidade dos personagens, diegese dramática e discurso alegórico. O filme é explosivo, representa o caos político e a instabilidade, numa sociedade em que tudo é possível, e no filme também. Explodir a qualquer momento é apenas mais uma das possibilidades narrativas, sendo a única certeza o caos. O suicídio não é ato heróico, e não determina um fim nessa narrativa de tempo abstrato, pois, como o próprio Bandido afirma, “vem outro aí” e a narrativa social do caos e desordem seguirá evoluindo, ou apenas seguirá.

E segue. As coisas mudaram mas nem tanto. Personagens como JB não deixaram de aparecer na nossa história, e apesar de termos dificuldade de nos reconhecermos no Bandido Luz por sua imoralidade, conseguimos enxergar muito bem qual é sua crise de identidade, e sua busca eufórica pelo gozo sem limites. A bomba atômica não caiu no Brasil, nem os alienígenas atacaram a Amazônia, mas o caldeirão caótico, berço desses personagens boçais, continua borbulhando. O bandido da luz vermelha não envelhece pois é terceiro mundista, subdesenvolvido e jovem da cabeça aos pés e por isso o compreendemos. Mas é também estranhíssimo, com uma atualidade e um vigor que não se altera.

Laura Clemesha Coggiola, 20, é estudante de Cinema pela FAAP e Ciências Sociais pela USP.

Bibliografia

BERNARDET, Jean-Claude. 1990. O vôo dos anjos: Bressane, Sganzerla. São Paulo: Brasiliense

RAMOS, Fernão. 1987. Cinema Marginal (1968/1973). A representação em seu limite, São Paulo: Brasiliense.

RIDENTI, Marcelo. 2004. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. São Paulo: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1

Helena — A Mulher de Todos — E seu Homem . Entrevista com Rogério Sganzerla e Helena Ignez, O Pasquim, n.33, 5–11 de fevereiro de 1970

Filmografia

O bandido da luz vermelha: Direção: Rogério Sganzerla. Produção: Rogério Sganzerla; José da Costa Cordeiro; josé Alberto dos Reis; Flávio Sganzerla. Intérpretes: Paulo Villaça; Helena Ignez; Pagano Sobrinho; Roberto Luna; Luiz Linhares; Sérgio Mamberti e outros. Roteiro: Rogério Sganzerla. .Direção musical: Rogério Sganzerla. 1968. DVD (92 min), preto e branco.

Terra em transe: Direção: Glauber Rocha. Produção: Glauber Rocha; Luís Carlos Barreto; Cacá Diegues; Zelito Viana; Raimundo Wanderley. Intérpretes:Jardel Filho; Paulo Autran; José Lewgoy ; Glauce Rocha; Paulo Gracindo e outros. Roteiro: Glauber Rocha. Música: Sérgio Ricardo. 1967. DVD (128 min), preto e branco.

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