A necessidade de (continuar a) defender o óbvio

Por Edilamar Galvão e Luciana Garbin

LabJor
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4 min readJun 7, 2022

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“Nós jornalistas manifestamos nossa disposição de lutar contra a censura e todas as formas de restrição à liberdade de expressão e informação; e firmamos nossa posição, contrária à manutenção dos atos de exceção que impedem o livre exercício da nossa profissão e, com isso, sufocam o debate e a participação consciente da população.”

Assim começava o manifesto publicado em 7 de junho de 1977 em plena ditadura militar. Quase dois anos antes, em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog, que foi professor do curso de Jornalismo da FAAP, havia sido assassinado nos porões do temido DOI-CODI. O Destacamento de Operações e Informações — Centro de Operações e Defesa Interna foi um “órgão de repressão política criado por diretrizes internas do Exército assinadas pelo presidente da República Emílio Médici em 1970, com o objetivo de combater as organizações de esquerda. Foi extinto através de portaria reservada do ministro do Exército, general Valter Pires, no final do governo do general João Batista Figueiredo (1979–1985)” , segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas.

Capa e página 12 da edição do Boletim ABI, que traz o manifesto de jornalistas assinado em 7 de junho de 1977. Reprodução/ABI

Para homenagear a coragem dos jornalistas naquele 7 de junho diante da ditadura feroz que atravessava o País, a data foi estabelecida como o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. Pois, apesar de alguns veículos de comunicação terem sucumbido ao discurso de uma suposta ameaça comunista e manifestado equívocos apoios ao golpe militar em 1964, praticamente toda a imprensa não tardou a dar-se conta do logro e do erro histórico e exercer papel central na luta contra o regime militar e na defesa do Estado Democrático de Direito.

Diante de tanta história, deveria parecer anacrônico fazer o óbvio: defender a importância da imprensa profissional e da liberdade de imprensa para a garantia da democracia. Defender o que foi estabelecido no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.

O DOI-CODI foi extinto, a censura e a ditadura chegaram ao fim, mas a jovem democracia brasileira ainda vive assombrada por um passado que, apesar dos esforços da Comissão Nacional da Verdade, não concedeu todo o devido reconhecimento às suas vítimas. Além disso, vozes autoritárias não cessam de vociferar contra o jornalismo e os ataques ao trabalho da imprensa profissional e livre praticamente se normalizaram do Brasil de hoje.

O País ocupa o 110º lugar no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2022 . Produzido pela ONG Repórteres sem Fronteiras, ele avalia as condições para o exercício da profissão em 180 países e territórios no mundo. Sobre o Brasil, o relatório avalia que “as relações entre o governo e a imprensa se deterioraram significativamente desde a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro, que ataca regularmente jornalistas e a mídia em seus discursos”. “A violência estrutural contra jornalistas, um cenário midiático marcado pela alta concentração privada e o peso da desinformação representam desafios significativos para o avanço da liberdade de imprensa no País.”

Diante dessa conjuntura, a imprensa brasileira não se intimidou e no dia 8 de junho 2020, para contornar o que chamou de “apagão de dados” — a atitude deliberada do governo Bolsonaro de dificultar o acesso aos dados da pandemia, — G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL criaram o Consórcio de Imprensa para trabalharem de modo colaborativo e buscarem informações sobre as infecções e mortes diárias causadas pela covid-19, bem como as medidas que (não) estavam sendo tomadas para combatê-la. A iniciativa inédita recebeu, ao lado do projeto Comprova, o Prêmio de Liberdade de Imprensa 2021 da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Hoje, o mesmo consórcio lança nacionalmente uma campanha em defesa do jornalismo profissional e da integridade dos jornalistas.

Se por um lado — por causa de tanta história — pode nos parecer anacrônico ainda precisar defender o óbvio, é a história mesma que nos ensina que, quando se trata de liberdade, o óbvio precisa ser defendido todos os dias. Pois, como já disse Hannah Arendt no ensaio Que é liberdade,

“a liberdade não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente — em épocas de crise ou revolução — se torna o alvo direto da política, é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d’etre (razão de ser) da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação”.

Edilamar Galvão é coordenadora do curso de Jornalismo da FAAP; Luciana Garbin é coordenadora do LabJor FAAP e editora executiva do ‘Estadão’

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