A Rússia também tem cinema (bobo)

LabJor
LabJor
Published in
5 min readJun 11, 2018

Você já pensou em ver um “Vingadores” com heróis da antiga União Soviética? Isso existe, mas o caminho até chegar lá foi bem longo e árduo

Por Thiago Costa

A Rússia parece tão longe, que mesmo com a internet a gente aqui no Brasil não consegue saber muito sobre o que se passa por lá, mesmo no que diz respeito à cultura pop, que se espalha como vírus pelo mundo todo.

Evidente que hoje se produz muita coisa daqueles lados. Só que essas ideias precisam se contextualizadas. É preciso saber, por exemplo, que, antes da queda da cortina de ferro, a vida era dura para quem queria curtir o pop em terras soviéticas. Nos anos 1950, quando o Rock explodiu para o mundo, Kruschev dizia que se tratava de um estilo “decadente”.

Mas isso impedia a juventude? Claro que não. Naquele tempo, para conseguir ouvir as músicas vindas do Ocidente, a técnica usada era a do roentgenizdat que, em tradução livre, significa “música nos ossos”.

Já que o vinil, matéria-prima dos “bolachões”, não era algo fácil de se conseguir e as capas dos discos não passariam nunca pela alfândega, produtores piratas prensavam os discos em chapas usadas de raio-x (“ossos”, entendeu?). Cortava-se no formato de disco e o centro era feito queimando o furo com um cigarro.

Esse tipo de disco só poderia ser usado em antigos gramofones ou por quem tivesse uma habilidade extra com as agulhas das vitrolas. E também não durava muito.

Foto: Rainy Streets — Wikity

A música foi sempre a porta de entrada do Pop pelas frestas do Muro de Berlim. Mesmo que fosse só de zoeira, como quando Lennon e McCartney escreveram “Back in the U.S.S.R”, criando uma canção de contraponto a “Back in the USA” de Chuck Berry e com um coral que lembrava claramente os americaníssimos Beach Boys. E diz a canção:

Flew in from Miami Beach BOAC

Didn’t get to bed last night

On the way the paper bag was on my knee

Man, I had a dreadful flight

I’m back in the USSR

Traduzindo, a letra conta que um voo britânico saiu de Miami e foi muito turbulento, deixando o saquinho de papel nos joelhos do protagonista, que agora está de volta à União Soviética (URSS).

Em outro trecho, reforça o quanto as garotas da Ucrânia mexiam consigo e que “aquela Geórgia” estava sempre em sua mente, brincando de novo com os EUA, e a tradicional canção “Georgia on my mind”. Geórgia sendo um estado norte-americano e também o nome de uma nação da URSS.

Era tudo uma brincadeira. Nos EUA, levaram na boa. Mas Paul McCartney só tocou essa canção em território russo em 2003. Nos anos 1980, quando muita gente já estava aproveitando a Glasnost, os Beatles ainda eram banidos pelo regime.

Aliás, os anos 1980, em específico 1989, com um festival chamado “Música pela Paz” em Moscou, são um capítulo à parte nessa história.

Reunindo a nata do chamado “Metal Farofa” ou “Poodle Rock”, em referência aos cabelos dos cantores, que mais pareciam a pelagem dos cachorrinhos dessa raça, o “Música pela Paz” aconteceu no Estádio Central Lenin, em Moscou, nos dias 12 e 13 de agosto de 1989. Ali, Skid Row, Cinderella, Bon Jovi, Scorpions, Mötley Crüe, os locais do Gorky Park e até o Príncipe das Trevas, Ozzy Osborne, cantaram para uma multidão enlouquecida, que nunca havia visto um evento daquele tipo antes.

Há quem diga que foi esse evento e um subsequente “Monsters of Rock”, com a presença de Metallica, AC/DC e Pantera, que colocaram o prego final no caixão do antigo império comunista. Talvez seja confiar muito no poder do pop. Mas que as coisas se movimentaram depois disso, realmente é inegável.

Toda essa energia foi registrada numa das mais clássicas canções do Scorpions, “Wind of Changes”, de 1990, que em seu primeiro verso diz:

I follow the Moskva

Down to Gorky Park

Listening to the wind of change

An August summer night

Soldiers passing by

Listening to the wind of change

É direto e objetivo: “Eu sigo o Moskva (rio Moscou) descendo até o Parque Gorky, ouvindo o vento da mudança. Soldados passam, ouvindo o vento da mudança”. Estava nascendo ali o que se consolidaria em 1991, com o fim do regime e a definitiva queda da URSS.

новые времена (Novos Tempos)

Com o novo vento soprando, a ânsia da população era por tomar contato com tudo aquilo que, culturalmente, lhe havia sido negado por tantos anos. Era natural, portanto, que depois de uma avalanche de conteúdo, começasse a nascer o pop russo, recriando e reescrevendo, a partir de suas próprias referências, o que absorveu do Ocidente.

E aí o cinema é o destaque. Nomes como o do diretor Timur Bekmambetov, ganham notoriedade em sua terra natal, com filmes que dialogam com a estética de Hollywood. Bekmambetov dirigiu os interessantíssimos filmes de vampiro “Guardiões da Noite” e sua sequência “Guardiões do Dia”.

Lançados nos EUA (e também aqui no Brasil), resultaram no convite para que dirigisse “O Procurado”, uma adaptação de quadrinhos com nomes como Angelina Jolie e Morgan Freeman no elenco.

E o que está fazendo sucesso na Rússia de hoje, como em quase todo lugar do mundo, aliás, são os filmes de ação e de super-heróis. Tem sempre uma produção de artes marciais, guerra, ou perseguição automobilística rolando. E com efeitos especiais que são, no mínimo, um charme.

O melhor exemplo disso é — o hoje considerado cult por nerds do mundo inteiro — “Os Guardiões”. Uma espécie de “Vingadores” da Rússia, o filme tem a seguinte sinopse:

“Em plena Guerra Fria, uma organização secreta chamada ‘Patriota’ recrutou um grupo de super-heróis russos, modificando o DNA de quatro indivíduos, com o objetivo de defender o país de ameaças sobrenaturais. Arsus, Khan, Ler e Xenia representam os diferentes povos que compõem a União Soviética, e mantêm suas identidades bem guardadas para, também, não expor aqueles que têm a missão de proteger”.

O roteiro é tosco, as atuações são bisonhas, mas é daqueles filmes que de tão ruim fica bom. E é isso que o pop é. Entretenimento sem pretensões maiores.

Óbvio que há criações intelectualmente mais elevadas. Mas essas são uma outra história. Por enquanto, dá para tomar uma vodka e assistir um filminho bobo. Dizem que o álcool ajuda a deixar melhor. Mas pode ser só intriga da oposição. Ou não.

*Thiago Costa é um nerd inveterado, apaixonado por filmes ruins e música boa. É jornalista, especialista em Marketing e mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. É professor na Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, onde coordena a pós-graduação em Comunicação e Marketing Digital. Também mantém a plataforma de conteúdos nerds Armazém Pop, onde fala sobre séries, HQs, filmes e games.

--

--

LabJor
LabJor
Editor for

Um laboratório de informação: Descobrimos e contamos histórias que dão sentido ao presente.