A representação feminina no cinema revolucionário.

Por Rafaela Franco Pereira

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10 min readDec 6, 2018

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RESUMO

Partindo de uma reflexão histórica sobre a revolução feminina, este artigo tem como objetivo refletir sobre a representação da mulher na sétima arte e questionar a maneira que o cinema revolucionário utiliza dela. Para isso, analisa a personagem Sara, do filme Terra em Transe de Glauber Rocha, comparando-a com as outras personagens do mesmo filme. Também recorda o importante papel da cineasta Tereza Trautman em seu caráter revolucionário e libertador da vontade feminina. Seu filme Os homens que tive é um exemplo pioneiro da cinematografia feminista no Brasil.

A ditadura militar brasileira foi iniciada em 1964, a partir de um golpe de Estado. Entretanto, foi no governo de Costa e Silva, em 68, que ela se tornou mais violenta, com o Ato Institucional 5. Durante os quase vinte anos de regime, ficou evidente a repressão governamental em relação à classe artística nacional. Todavia, esta não foi suficiente para impedir a realização das produções, causando, assim, uma reação extremamente revolucionária.

Este momento nacional foi — e até hoje é — um dos grandes marcos cinematográficos do país, tanto em temática, quanto em forma. Devido à pausa informacional nacional, criou-se a necessidade de uma documentação efetiva sobre aquela ocasião histórica. Quando observam-se filmes feitos durante a ditadura, na maioria das vezes, os grandes protagonistas — e heróis — das tramas são apresentados na figura masculina. Porém, mesmo que em segundo plano, a representação feminina evidentemente também teve um papel essencial no desenvolvimento da revolução contra o governo antidemocrático. A partir disso, este artigo tem como principal objetivo avaliar a construção da personagem feminina no cinema nacional durante este momento delicado do cinema brasileiro, usando como objeto de estudo o filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha e, consequentemente, a narrativa de Sara neste filme.

Sara é uma personagem fora do comum, tendo em vista o contexto em que a obra está inserida. Nos anos 60, era comum representar a mulher como um artifício de interesse masculino, sendo, na maioria das vezes, construída de maneira caricata em duas personas opostas: a mulher bonita e sexual, que tinha como função principal a satisfação dos desejos carnais masculinos, e a personagem sofrida, mais velha, e de aparência fora do padrão, também secundária.

Para compreender a representação da mulher no cinema revolucionário, é necessário discorrer sobre a real atuação delas nos movimentos contra a anti-democracias, para depois, então, ser analisado o papel delas no cinema nacional.

A MULHER BRASILEIRA E A REVOLUÇÃO

A militância feminina durante a ditadura militar ocorreu por dois motivos: contra a violência do regime ditatorial e também a favor da igualdade entre homens e mulheres. As militantes rompiam duplamente com o status quo delegado a elas. Influenciadas pela ascensão do movimentos feministas no mundo e pela industrialização e urbanização das cidades, as brasileiras dessa época iniciaram uma organização de gênero mais consciente do que as suas antepassadas. Embora a participação de homens tenha tido maior visibilidade nos movimentos de resistência, as mulheres tiveram uma importância ativa na revolução. Ao se obrigarem a sair de casa e adentrarem partidos, debates e manifestações, desafiaram o papel predisposto de donas de casas passivas. Sendo a maioria jovens, saíram às ruas e tomaram posições na luta armada. Com isso, em diversos casos, sofreram torturas e mortes.

Todavia, mesmo dentro dos movimentos, as mulheres se depararam com muitas dificuldades. Vale lembrar que o movimento feminista tinha acabado de chegar ao Brasil e que a cultura do machismo estava espalhada por todas as partes. Era extremamente raro encontrar uma mulher comandando os movimentos políticos, mesmo estes sendo de caráter libertário.

Mal acostumados com essa nova mulher, os comandantes, quando as capturavam, eram duplamente duros, como uma tentativa de retorná-las à estrutura clássica patriarcal. Além disso, utilizavam da repressão sexual como uma maneira de “lição”, estuprando-as ou fazendo violências diretas aos seus órgãos sexuais.

Apesar de inicialmente terem sido em menor quantidade, as manifestações de mulheres de classes populares também ocorreram de maneira ativa. As exigências destas estavam completamente ligadas a condições de vida, como moradia e educação. Porém, abordavam também uma temática doméstica, contra a agressão domiciliar, por exemplo. Em questão de valores morais, elas apresentavam um olhar um pouco mais conservador, tendo em vista a grande ligação com a religiosidade.

Além de posições armadas e das lideranças sociais de esquerda, a mulher brasileira protagonizou outras funções dos movimentos revolucionários: companheiras de luta, responsáveis pelas buscas de pessoas desaparecidas e foram fundamentais para o desenvolvimento dos movimentos pró anistia. Portanto, fica evidente que as mulheres tomaram posições de inovação. Ocuparam um território violento, antes extremamente masculino, para atingirem o seu objetivo: obter seus direitos perante uma democracia justa e igualitária.

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO CINEMA REVOLUCIONÁRIO

Terra em Transe, filme dirigido por Glauber Rocha em 1967, é um filme cheio de críticas ácidas ao governo vigente da época. Neste, há a criação de um país com problemas governamentais, cheio de políticos corruptos dominando o governo. Em um contexto dividido entre extremistas de direita e de esquerda, o povo se vê confuso e alienado. Com a chegada de um novo líder populista, as pessoas acreditam na solução de todos os problemas, desde a fome até a falta de moradia. Com isso, Terra em Transe comporta-se como uma alegoria política da realidade brasileira de então. O filme caracteriza sua narrativa de maneira que esta encaixa-se como uma metáfora dos problemas nacionais. A partir disso, o diretor deixa evidente sua opinião: quanto mais os indivíduos sobem ao poder, mais seus padrões de justiça e moral decaem.

Dentro dessa narrativa, é possível encontrar a figura de Sara, par de Paulo Martins. Embora a narrativa fique ao redor de um protagonista masculino, a persona de Sara caracteriza-se como uma figura feminina extremamente fora do padrão representado nos filmes da mesma época.

No início do filme, Sara se comporta de maneira um pouco retraída, com medo dos movimentos revolucionários. Isso fica explicitado na cena inicial, em que Paulo e ela estão no carro, e ele coloca-se de maneira ativa, exigindo uma resistência. Ela, ao contrário, é cautelosa, com medo das mortes. O arco da personagem desenvolve-se conforme o andamento da narrativa. Após ser negligenciada do papel de mãe e esposa padrão da época, teve que abrir mão de suas ambições iniciais de vida e, diante do contexto político, ir às ruas protestar, vendo amigos e familiares morrerem. Foi torturada e afastada da vida civil e, em um diálogo com Paulo, diz: “mesmo assim eu levei meu segundo e terceiro cartazes e panfletos. E não por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lógica dos meus sentimentos. E se foram as ambições normais de uma mulher normal”. Com essa fala, ela dá uma aula de luta e resistência a Paulo, que, durante a narrativa, vai diminuindo cada vez mais seu viés revolucionário.

Isso fica mais evidente quando, nas cenas finais do filme, após a frustração da coroação, Sara continua a correr, com esperança na luta e na revolução e abandona Paulo, já cansado. Ela faz isso não porque deixou de amá-lo, mas sim porque, provavelmente, tem mais amor a si própria. Ela precisa acreditar em algo maior, necessita seguir em frente. Ação oposta acontece em Deus e Diabo na Terra do Sol (1964), do mesmo diretor. Maria e Manuel, ao serem perseguidos por Antônio das Mortes, correm sertão adentro para fugir dos tiros. Todavia, Maria é acertada pela bala e logo cai, estagnada, enquanto Corisco corre com a esperança de um futuro melhor. Mesmo com os tropeços e quedas, ele ainda continua sempre em frente e, por fim, observa-se a cena do mar, com a significância de uma esperança de que “o sertão vai virar mar”. Portanto, é possível diferenciar a postura de Sara e de Maria. A primeira sempre se posicionou como um ser autônomo e pensante, na narrativa de Terra em Transe. É o retrato da mulher revolucionária dos anos 60/70.

Ademais, a própria representação de Sara no filme é diferente da representação de outras mulheres no mesmo. Ela é desde o início colocada como uma personagem importante, entre outros diversos homens, trabalhando dentro de um meio majoritariamente masculino. Representações como essas são raras no cinema nacional da época. Ela está inserida não como um objeto sexual dos homens, mas como um ser em destaque, que utiliza da razão para seguir em frente. Isso é perceptível inclusive na vestimenta das personagens.

Figuras 1 e 2 — cena do filme “Terra em Transe”, 1967, de Glauber Rocha (115 min)

Nas figura 1 e 2, observa-se Sara, com vestimentas rígidas e alinhadas, sem objetificação corporal. Durante o filme inteiro ela é apresentada dessa maneira, de modo profissional, e mesmo em momentos de afeto entre ela e Paulo, mantém essa atitude racional.

Figuras 3, 4 e 5— cenas de “Terra em Transe”, 1967, de Glauber Rocha

Em oposto a isso, nas figuras 3, 4 e 5 vemos diversas mulheres em uma espécie de festa. Diversos homens as beijam e as acariciam, quase como numa referência a festas de saudação a Baco, o deus do vinho. Nesta cena é evidente o papel da mulher: servir única e exclusivamente ao homem. Para isso, utilizou-se de tecidos leves, que deixam mais evidentes os corpos nus das mulheres, e fazem-se insinuações a relações lésbicas, como uma maneira de sedução ao macho.

Apesar de Sara ser uma personagem extremamente importante, que age e se apresenta sem relação alguma com seu gênero, vale ressaltar que ela não é o suficiente. Ainda sim, os grandes protagonistas são todos masculinos, e são representados como os únicos guerreiros e heróis das histórias. Tendo isso em vista, vale questionar: como um cinema que se coloca e se constrói como revolucionário, pode utilizar da imagem da mulher como um objeto secundário e — em alguns casos — meramente sexual? Como se luta contra a opressão oprimindo a minoria?

No contexto social dos anos 60, em que o movimento feminista tinha acabado de entrar em fronteiras nacionais e o acesso à informação era extremamente menor do que em nossos dias, é possível compreender que a emancipação da mulher não era uma pauta vista como importante ou necessária. Portanto, precisamos levar isso como uma lição para não cometermos o mesmo erro duas vezes: a revolução precisa ser feminista e as mulheres precisam produzir. Um exemplo disso é Tereza Trautman. Ela dirigiu o filme Os homens que tive durante a ditadura militar e em sua narrativa desenvolveu assuntos como a liberdade feminina e a sua sexualidade. Feito em 1973, o filme de Trautman discorre sobre as escolhas sexuais de Pity e o amor que a personagem tinha por dois homens. Embora tenha cenas de nudez, elas são feitas em função do protagonismo feminino. Pity é uma mulher bem resolvida, que tem relações amorosas com dois homens por escolha própria.

Com esse filme, Tereza vai contra a moral pré-estabelecida socialmente. Em pleno AI-5, a cineasta teve sua atuação profissional e pessoal interferida pela censura, fazendo com que o filme saísse de exibição após seu primeiro mês de estréia. A justificativa do governo era a de que o filme desrespeitava a figura da mulher brasileira “de bem”. O que se mostra-se completamente contraditório, pois durante a mesma época, o governo nacional continuou a financiar pornochanchadas, filmes conhecidos pelo uso do sexo e nudez feminina para atrair espectadores. A única diferença é a quem o sexo beneficia, ou seja, filmes sexuais eram permitidos somente quando mantivessem a figura do homem no patamar de protagonista e a mulher como objeto para o seu gozo. O homem era servido pelas mulheres, seja este como personagem ou como espectador.

Não é difícil imaginar a mobilização social gerada a partir de “Os homens que tive”, visto que mostra o sexo e a mulher por uma perspectiva totalmente diferente das anteriores: liberta da moral e dos tabus vigentes nos ideais tidos como corretos durante a ditadura. A partir desse cenário, pode-se concluir que a figura feminina foi e é essencial para o cinema revolucionário, seja como personagem ou como produtora do conteúdo. Infelizmente, foram em pequeno número as oportunidades de ascensão de mulheres no meio cinematográfico durante a ditadura, porém as poucas que houveram deixaram suas marcas. Como Sara declara, “Me libertaram com as marcas”, quase como um prelúdio de sua importância.

Rafaela Franco Pereira, 21, cursa comunicação social com bacharel em cinema na Faculdade Armando Alvares Penteado.

BIBLIOGRAFIA

MERLINO, Tatiana (2010). Direito à memória e à verdade : Luta, substantivo feminino — São Paulo : Editora Caros Amigos.

FILMOGRAFIA:

Terra em Transe. Direção: Glauber Rocha. Produção: Zelito Viana. Intérpretes: Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Glauce Rocha, Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Jofre Soares, Modesto de Souza. Roteiro: Glauber Rocha. Música: Sergio Ricardo. Brasil. 1967. DCP. Preto e Branco.

Deus e o Diabo na Terra do Sol. Direção: Glauber Rocha. Produção: Jarbas Barbosa. Intérpretes: Geraldo del Rey, Yoná Magalhaes, Othon Bastos, Mauricio do Valle. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. Música: Sergio Ricardo. Brasil. 1964. DCP. Preto e Branco.

Os homens que tive. Direção: Tereza Trautman. Produção: Herbert Richards. Intérpretes: Darlene Gloria, MIlton Moraes, Arduino Corlasanti, Gracindo Jr. Roteiro: Tereza Trautman. Música: Diógenes Burani, Rodolpho Grani Jr., Amíseo Issa. Brasil. 1973. DCP.

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