AINDA HÁ LUZ

LabJor assistiu às versões original e brasileira do polêmico ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu'. Leia a crítica da peça

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6 min readMar 23, 2020

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Atriz brasileira Renata Carvalho, no palco do Centro Cultural São Paulo. Foto: Reprodução Facebook Renata Carvalho

pedro a duArte

O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (Título original: “The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven) é um monólogo da atriz e dramaturga escocesa Jo Clifford. Sua premissa é simples e parte de uma pergunta: Como seria se Jesus voltasse hoje como uma mulher transgênero? No Brasil, o monólogo foi interpretado pela primeira vez em 2016 pela atriz Renata Carvalho. E, nos dias 6, 7 e 8 de março de 2020, tanto a versão original quanto a brasileira foram encenadas na Mostra Internacional de Teatro (MITsp), no Centro Cultural São Paulo (CCSP).

Na performance de Jo Clifford, parte da plateia se senta com ela perto de uma mesa comprida. É uma montagem mais intimista, em que a atriz conta parábolas relacionadas à experiência de mulher trans, após um sermão no qual diz jamais ter proferido qualquer coisa contra a população LGBTI+, de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais. Aos poucos, a plateia vai se familiarizando com uma nova versão de Jesus, mas percebe que a essência é a mesma: os espectadores têm diante de si uma pessoa bondosa e amorosa que quer apenas que as pessoas vivam bem ao lado do próximo. No fim, a artista consegue fazer com que as mais de 300 pessoas do teatro compartilhem o mesmo pão e deem as mãos para rezar pelo bem do outro.

Atriz escocesa Jo Clifford interpreta Jesus, com espectadores da plateia à mesa. Foto: Nereu Jr/ MITsp/ CCSP

Já na versão brasileira não é possível se sentar à mesa com Renata Carvalho — na verdade, a atriz passa a peça inteira em pé. Se por um lado a versão de Clifford é mais introspectiva, a de Carvalho convida a plateia para a ação, por meio de uma fala eloquente e contagiosa, com pitadas de pajubá — dialeto de origem africana adotado pela população LGBTI+ brasileira — e que remete também à celebração e à diversão.

A versão de Renata coloca Jesus na rotina da travesti brasileira de rua, que passa a noite fora tentando ganhar a vida. No fim do espetáculo, saímos do teatro com a certeza de que há algo que nos une e por isso devemos fazer um esforço para exercitar a empatia com o próximo.

Renata Carvalho durante encenação da peça em São Paulo. Foto: Luciane Pires Ferreira

Em ambas temos a noção do Teatro, tanto do ambiente quanto do espetáculo, como algo sagrado e do sagrado. E os corpos das atrizes que apresentam a peça, mesmo que fujam à norma cisgênero (de indivíduos que se identificam com seu sexo biológico), também são sagrados e merecem amor e respeito. Nesse sentido, as duas versões da peça não deixam de ser manifestos pró-trans (e, por consequência, pró-LGBTI+s).

É triste que as duas peças tenham causado a mesma reação na estreia: tanto na Escócia quanto no Brasil o monólogo foi massacrado por setores cristãos. Jo Clifford contou que há dez anos, quando estreou a peça em um teatro para 30 pessoas em uma temporada de apenas quatro dias, deparou-se com evangélicos com cartazes do tipo “Meu Deus diz: ‘Meu filho não é um pervertido’” e católicos rezando para uma imagem de Maria. Apenas 120 pessoas viram a primeira montagem da peça, mas muita gente dizia que a odiava. Jo conta que, exatamente por causa disso, teve a certeza de que precisava continuar fazendo o espetáculo. E seu ativismo acabou influenciando outros artistas: se há uma década ela era a única performer abertamente trans do Reino Unido, hoje existem muitas outras.

O mesmo ocorreu na estreia da montagem brasileira: protestos, ameaças à vida de Renata Carvalho, tentativas de censura. Mesmo assim o monólogo foi montado e abriu portas para a atriz, que participou de vários festivais pelo Brasil e aproveitou para falar da falta de artistas transgêneros e travestis em cena. Hoje a carreira de Renata continua prosperando e, nos dias em que as duas versões da peça foram apresentadas, em vez de protestos na porta, o teatro do CCSP recebeu 900 espectadores (300 em cada noite) de diferentes classes sociais, gêneros, orientações sexual-afetivas e idades, mas todos ansiosos para ver a peça.

Jo Clifford em cena, com Renata Carvalho a seu lado na mesa. Foto: Nereu Jr/ MITsp/CCSP

No fim da apresentação de Renata, uma senhora foi abraçá-la e disse que queria apenas lhe dar amor depois de tanto ódio que a artista tinha sofrido. Também choveram depoimentos de pessoas comovidas com a peça: uma mulher na plateia mencionou que o texto tem um imenso poder de cura — afinal, em uma só noite, Renata conseguiu fazer 300 pessoas estranhas comungarem com amor.

Jo Clifford defende que, a despeito do que dizem os críticos, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha dos Céus é uma peça cristã, já que prega os ideais de Cristo de não julgar os outros, e sim amá-los. No fim das contas tudo pode ser resumido a uma fala de Jesus reproduzida no começo da peça:

“Não importa o quanto há de escuridão no mundo ao nosso redor, não importa quanta escuridão há em nossas vidas, a Luz ainda está entre nós, dentro de nossos corações. E nosso trabalho é trazê-la para fora e fazê-la brilhar.”

GLOSSÁRIO DE TERMOS DA COMUNIDADE LGBTI:

- IDENTIDADE DE GÊNERO: Refere-se ao gênero com o qual a pessoa se identifica e pelo qual quer ser vista pela sociedade. Pode ser masculino, feminino, não-binário ou agênero. Nem sempre a identidade de gênero da pessoa é compatível com gênero que lhe foi designado ao nascer. Se estiver em dúvida sobre a identidade de gênero de alguém, pergunte com que pronome a pessoa prefere ser tratada.

- CISGÊNERO: Quem se identifica com a identidade de gênero que lhe foi atribuída ao nascer. Exemplo: uma pessoa identificada como mulher ao nascer e que, ao longo da vida, continua se identificando como mulher.

- AGÊNERO: Pessoa que não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino.

- NÃO-BINÁRIO: Pessoa que vai além do gênero que lhe foi designado ao nascer e pode se identificar tanto com o masculino quanto com o feminino, com nenhum dos dois ou com uma releitura pessoal dos dois gêneros.

- INTERSEXUAL: Pessoa com variação de anatomia sexual ou reprodutiva, com componentes biológicos tanto masculinos quanto femininos.

- PAJUBÁ: Dialeto popular de matriz africana. Originalmente usado em terreiros de candomblé, passou a ser usado como código entre as travestis e foi posteriormente adotado pelo restante da comunidade LGBTI+ brasileira.

- LGBTI+: Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Travestis, e Intersexuais. O + se refere a todas as outras letras que representam orientações sexuais e de gênero que ficaram de fora da sigla. Adota-se também LGBTQ+, onde Q significa Queer — termo em inglês para identidades fora do padrão heterossexual ou cisgênero — e LGBT, a primeira versão da sigla.

- TRANSGÊNERO: Quem não se identifica com a identidade de gênero que lhe foi atribuída ao nascer.

- TRAVESTI: Pessoa identificada como homem ao nascer, mas que vivencia papéis do gênero feminino. Em alguns casos, a travesti não se reconhece completamente nem como homem nem como mulher; em outros, pode se reconhecer como mulher.

Formado em cinema, pedro a duArte é aluno de jornalismo na FAAP

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