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Anorexia é tema do primeiro longa-metragem de Moara Passoni

Diretora fala pela primeira vez a um veículo brasileiro sobre seu filme ‘Êxtase’

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Ariane Carvalho e Luis Miguel Marquina*

Presente na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o filme Êxtase (2020) é um dos indicados à Competição de Novos Diretores e está também na categoria Mostra Brasil. Mesclando ficção e documentário, o longa-metragem questiona o papel da verdade no cinema contemporâneo e conta a história de Clara, uma adolescente que enfrenta o drama da anorexia e seus dilemas físicos e existenciais.

Cartaz de divulgação do filme no streaming da Mostra. Foto: Divulgação

Com produção de Sara Dosa e Petra Costa, diretora do aclamado e polêmico Democracia em Vertigem (2019), o longa é fruto de uma extensa pesquisa feita pela diretora Moara Passoni, a partir da própria convivência com a anorexia na adolescência. E tem acumulado prêmios pelos festivais por onde passa com sua mistura de documentário e ficção — formato cada vez mais popular nas plataformas de streaming.

A 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo exibe Êxtase com exclusividade até o dia 4 de novembro na plataforma Mostra Play, dedicada à apresentação dos filmes selecionados no festival. Abaixo, em entrevista exclusiva ao LabJor FAAP, Moara fala pela primeira vez a um veículo brasileiro sobre sua carreira, os sete anos de sua experiência com a anorexia e a parceria com Petra Costa.

Você já morou fora do Brasil por alguns anos. Como a experiência internacional moldou sua estética atual, presente em ‘Êxtase’?

Sou uma pessoa muito curiosa e mergulho nas experiências e nas artes. Realmente tento fazer isso no cinema e imprimir isso em Êxtase.

O quanto existe da Moara em ‘Êxtase’? E o quanto de ficção entrou na releitura da anorexia em sua visão de adulta?

Em relação a quanto tem de mim na Clara, acho que tudo e nada. Toda biografia ou autobiografia é um exercício de “ficcionalizar”. Afinal, a memória é algo que se ressignifica por excelência e é ela que está sendo transformada em história. Muitas experiências da anorexia que estão no filme vieram da minha vida, mas outras vieram de relatos de outras meninas, com os quais me identifiquei muito rapidamente. Quando a pessoa me contava, eu só conseguia pensar: ‘Caramba, eu poderia ter feito isso!’. Porque é um sentimento que faz parte da minha experiência. A classificação dos alimentos, por exemplo, era algo que eu fazia direto. No filme, levamos isso até as últimas consequências. Algumas mulheres levam isso a lugares extremos, porque a anorexia é capaz de inventar linguagem. Vivi essa experiência dos 11 aos 18 anos, então ela me marcou de um jeito forte. Esse projeto é resultado do que vivi, da minha subjetividade, de como vejo mundo, mas também do diálogo com quem está ao meu redor.

O que seria a linguagem da anorexia?

Um momento significativo na minha vida e no filme a respeito da linguagem da anorexia ocorre quando começo a classificar alimentos por números. Isso chega a tal ponto que eu comia números. Só importava o quanto aquele alimento tinha de valor nutricional. Eu sabia tudo de cor, obsessivamente. O alimento virava uma coisa abstrata. A anorexia nos permite filosofar. É quase como se, a partir dos alimentos, eu inventasse outra linguagem para habitar o mundo. Esse mundo é tão hostil para Clara como talvez tenha sido para mim. Eu não cabia no corpo que estava disponível e tinha a necessidade de inventar um novo corpo. Nesse sentido, é fundamental conversar com as pessoas que sofrem dessa doença para compreender a anorexia, por não ser uma questão resolvida apenas dizendo: ‘Se você não comer, você vai morrer’. Quem passa por ela sabe do risco de morte, mas o prazer de fazer aquilo (não comer) é muito maior e mais intenso do que o corpo físico. Por isso, é essencial compreender primeiro o que uma pessoa que enfrenta anorexia está passando. Só assim se pode ajudá-la a enfrentar a doença. Só consegui sair (curar-me) depois que compreendi essa dimensão.

Diretora Moara Passoni, durante entrevista ao LabJor FAAP. Foto: Luis Miguel Marquina

Há momentos em ‘Êxtase’ em que a linguagem do corpo fala mais do que a narração verbal. Você estudou Dança na PUC. Como o estudo do corpo te ajudou na construção imagética e sensível do filme?

A dança no filme tem uma dupla dimensão. A primeira delas está em mim como artista, pois houve uma época na minha vida em que quis ser uma bailarina clássica. Foi a primeira linguagem artística que aprendi. Isso impactou a forma como construo as narrativas e as imagens. Para mim, a dança acontece antes das palavras porque o entendimento dela não é algo racional e lógico. O fascinante nela é essa potência que é ritmo e ocupação dos espaços que conheço no meu próprio corpo. Outra dimensão é em relação ao balé como prática direta de controle e transcendência. Em sua origem há toda uma significação da conexão com Deus. Tanto que a ponta dos pés e os movimentos para o alto são muito presentes para se chegar a esse lugar inatingível do céu. Essa última dimensão conecta a busca da personagem Clara a esse lugar de transcendência, ao mesmo tempo em que faz com que ela pense que pode viver sem ninguém — e talvez seja isso a maior cilada para ela. O balé vai construindo o corpo dela para ser leve e atingir a solitude. O interessante é que a ideia de corpo no filme foi sendo construída aos poucos com fatos da minha biografia e da de outras meninas justamente pelo lado dúbio da anorexia: ela é abstrata e delirante, mas é concreta por ocorrer no corpo. Isso a torna insustentável por tensionar a pessoa ao limite do que ela consegue suportar, que nada mais é do que a morte do corpo.

‘Êxtase’ nasceu como projeto ficcional e acabou virando um documentário longa-metragem. A que se deve essa mudança? Busca por liberdade narrativa ou outro fator? Você vê isso como tendência?

Acho que é uma tendência porque vivemos em um mundo cada vez mais virtual. Com isso, os limites entre o real e o que não é realidade se confundem. Essa complexidade ajudou as pessoas a misturar não só ficção e documentário, mas também a misturar gêneros. Em relação a Êxtase, eu tinha a necessidade de contar uma história além de mim mesma. No começo, até pensei: ‘Nossa, por que vou falar de uma coisa tão íntima? O que isso tem a ver com o nosso mundo?’. O que a ficção me proporcionaria seria o distanciamento da minha própria experiência. Mas há também a capacidade que o documentário tem de trazer o público para o ponto de vista da personagem. Eu não fiz um filme para falar da anorexia por meio de dados. A proposta dele é trazer a experiência da Clara. Nesse sentido, eu penso como o (cineasta Jean-Luc) Godard que a melhor ficção é aquela que está mais perto do documentário e o melhor documentário é aquele que está mais perto da ficção. Indo mais além, o filme não ser nenhum dos dois é parte da própria experiência da anorexia, por ser uma pulsação da realidade do corpo e do delírio em relação ao físico. Esse delírio é um ponto interessante porque seduz e fascina a pessoa, fazendo com que ela busque incansavelmente esse ideal de corpo. Quem está de fora normalmente não entende isso. Daí ser tão difícil tratar a doença.

‘Êxtase’ é um filme muito delicado. Você tem a preocupação de como ele pode se refletir nas pessoas?

Antes de tudo é preciso saber que a gente não controla como a arte vai ser recebida. É claro que precisamos ser os mais sinceros e honestos possíveis durante a realização da obra. Questionei-me muitas vezes o que seria ético ou não. A respeito disso, uma das primeiras decisões que tive foi a de não filmar o corpo anoréxico. Demorei muito para colocar o corpo no filme. A decisão foi tomada anos depois, porque comecei a entender que não tinha como contar a história sem mostrar esse corpo. Caso contrário não falaria sobre a batalha entre desejo e controle, cabeça e corpo. Quanto mais a gente exibir esse filme e falar sobre ele e entender como as pessoas o veem, mais rico será. Pessoas já me escreveram falando: ‘Você entendeu que seu filme talvez possa salvar vidas?’ Claro que isso é uma utopia, não acho que a arte seja feita para salvar ou não vidas. A gente está em um momento em que arte e cidadania são quase impossíveis de serem separadas. Se o filme puder ser também um veículo de abertura e diálogo para as pessoas que têm essa condição, ou para as pessoas que tratam dessa doença, ou para as famílias que têm parentes que atravessam essa condição, melhor. Isso é uma utopia minha como cineasta: que o filme tenha impacto no mundo e um impacto de transformação no sentido positivo.

Personagem Clara em cena do filme ‘Êxtase’. Foto: Reprodução

Você tem receio de que o filme seja mal interpretado por explorar cinematograficamente o corpo da protagonista, considerando o avanço das ideias conservadoras no mundo atual?

O filme já foi exibido em alguns festivais pelo mundo, mas essa questão surgiu para mim a respeito da recepção do público brasileiro por vivermos num tempo em que o preconceito é a base das reações das pessoas, porque elas não experienciam a proposta do filme e se prendem a julgamentos externos. Essa lógica moralista faz se perderem a mensagem e o questionamento que ele propõe ao público. Em nenhum momento eu quis fazer um filme didático. Minha ideia era criar um filme com camadas a serem exploradas para provocar perguntas. Espero que as pessoas se permitam essa experiência. Por isso, caso o filme seja lançado em salas de cinema, pretendo criar uma estratégia de lançamento que incentive o debate justamente porque esse filme fala sobre “abrir perguntas” e não sobre “encerrá-las”.

Como o cenário político brasileiro impactou as etapas finais do filme? Como você enxerga a situação do audiovisual no Brasil?

A produção não foi tão impactada porque o dinheiro (público do financiamento do filme) era anterior ao do cenário político atual. Toda a verba já havia sido liberada havia bastante tempo, algo anterior até à definição da linguagem, porque ela foi fruto de muita pesquisa. Onde acho que interfere é no ambiente de lançamento. Por dois motivos: a covid-19 e a insegurança no mundo do cinema em relação às políticas públicas. Todo mundo sabe que o Brasil é uma potência criativa e de mercado, tanto que as grandes majors (Netflix e Amazon) estão aqui. Eu, que gosto muito de cinema independente, acredito que, apesar da importância das grandes majors, as renovações na linguagem costumam vir dos filmes que não estão inseridos nessa lógica. As políticas públicas possibilitam reavivar os processos de construção de novas estéticas. Se eu tivesse começado agora o projeto de Êxtase, acredito que não conseguiria dinheiro tão facilmente por ser um filme fora dos padrões de cinema clássico e convencional.

Como a pandemia impactou a presença de seu filme em festivais? E o que significou para você como profissional?

Impactou totalmente. É muito difícil não sentir a experiência do filme na sala do cinema e não saber como a audiência reage a ele. É uma pena porque é um momento de aprendizagem para o diretor. Para cada formato de festival, é uma nova vivência que surge. Por outro lado, isso permite ao filme chegar a mais pessoas, pelo fato de ser virtual e não estar limitado ao espaço geográfico. Além das redes sociais, que permitem que as pessoas me contem um pouco do sentimento de identificação delas com o filme. Em relação à minha carreira, por um lado é uma pena porque não vou vivenciar os festivais, então não poderei me conectar com as pessoas. Por outro lado, a Film Maker Magazine, revista bem importante sobre cinema independente dos Estados Unidos, que elege todo ano as 25 faces novas do cinema independente, neste ano me escolheu como uma delas devido a esse filme. Isso é muito legal e me deixou surpresa.

Numa parceria de sucesso com Petra Costa, você participou do roteiro de ‘Olmo e a Gaivota’ (2014) e ‘Democracia em Vertigem’ (2019) e produziu, além dos dois, ‘Elena’ (2012). O quanto essa sintonia ajudou na direção de seu primeiro longa e como foi essa troca das cadeiras entre direção e produção?

Conheci a Petra no (curso da PUC) Artes do Corpo. Ela estava prestes a ir estudar nos Estados Unidos e tivemos uma conexão imediata. É misterioso como a gente escolhe os parceiros de trabalho. Acontece um clique que é fundamental. O que eu e a Petra temos de belo é que nossas visões são diferentes, mas se complementam. Isso faz com que uma provoque a outra. Nossa relação é permeada pelo debate saudável e construtivo. Sobre essa troca de cadeiras, foi algo bem engraçado porque eu estava acostumada a ser ‘parteira’ em relação a Petra e ajudá-la a levar sua voz para o mundo. No meu filme foi o contrário, mas muito orgânico. Lembro que durante o lançamento do Elena a gente brincava dizendo que era o exército de Brancaleone indo conquistar a América (risos). A gente conseguiu de alguma maneira chegar ao Oscar, ainda não conseguiu conquistar a América, mas demos passos. Fomos descobrindo muitas coisas juntas. Preciso dizer que tem uma coisa muito interessante na Petra: ela é incansável, consegue não paralisar com os nãos e vai em busca do sim. Além disso, consegue imprimir uma emoção singular aos filmes. Sobre o Êxtase, a gente se encontrou em Nova York durante uma semana com uma amiga nossa, a Martha Kiss Perrone, para investigar o meu corpo. Foi logo depois do lançamento do Elena. Eu tinha percebido que precisava colocar um corpo no meu filme, pois sem ele não existiria a dimensão do desejo. Ele, mesmo que anulado, é fundamental. A gente começou a perguntar se era um filme sobre Moara (eu) revisitando essas memórias do passado. Seria outro filme se tivéssemos seguido esse caminho, mas foi ali que a Petra entrou verdadeiramente no projeto.

Partindo do sucesso que foi ‘Democracia em Vertigem’, qual sua expectativa em relação a ‘Êxtase’?

Desde o princípio esse filme trilhou caminhos misteriosos. Isso vai depender da nossa estratégia de divulgação e de onde a gente vai decidir lançar. Por isso, não consigo afirmar. Mas, nesse começo da corrida dele em festivais, já ganhamos um prêmio no Canadá e outro na Alemanha. No caso do Democracia em Vertigem, existe uma urgência em relação a filmes políticos. Então o nosso desafio como brasileiros era dizer para o mundo que aquele documentário sobre a política do Brasil dizia muito sobre o cenário deles também. Foi uma ponte que demorou para ser construída, mas, ao ser finalizada, potencializou a força do filme. Fazer um lançamento envolve uma confluência de forças. Você tem que ter muitas alianças e depende um pouco da frente que a gente constrói ao redor de Êxtase. De qualquer maneira, meu filme subverte a narrativa clássica ao propor uma experiência artística. Por esse motivo, será um desafio a construção da campanha de divulgação.

Ariane Carvalho e Luis Miguel Marquina são estudantes de Cinema da FAAP

Com colaboração de Marco Bueno e supervisão de Mônica Costa

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