SOBREVIVENTES DA COVID

“Aprendi a valorizar mais a vida e os detalhes”

Psiquiatra André Biaggio passou de médico a paciente após ser infectado pela covid e alerta para onda de transtornos mentais

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Carolina Menezes

Em meados de março, quando a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, o médico psiquiatra André Biaggio, de 49 anos, imaginou que viveria mais um desafio em sua profissão: há 23 anos trabalhando no hospital psiquiátrico Mandic-Sayão, de Araras, cidade do interior paulista a 168 km de São Paulo, e há 20 anos atendendo em consultório particular, ele se preparou para enfrentar casos comuns numa pandemia, como a negação do vírus de um lado ou o pânico extremo de outro. Só não imaginava que teria de encarar a doença também como um paciente — com toda sua gama de emoções — e se tornaria a primeira vítima de covid-19 em seu trabalho.

A febre começou em 17 de abril, uma sexta-feira, após quatro dias com sintomas persistentes de cansaço, dor no corpo e indisposição. André tomou dipirona e melhorou um pouco. Contou para a ex-mulher, a psicóloga Patrícia Souza Dias, sobre os sintomas e recebeu de alguns colegas médicos a orientação para ficar em casa. Amiga da família e cardiologista no Complexo Hospitalar de Niterói, Kátia Luz orientou Patrícia a comprar um oxímetro — aparelho que mede o oxigênio no sangue — para observar a evolução do quadro respiratório de André, mas o equipamento já estava esgotado nas lojas e ninguém que eles conheciam tinha para emprestar.

Patrícia conta que no início os dois acharam que André tinha contraído apenas uma gripe, não o novo coronavírus. O estilo de vida do médico inclui uma rotina de hábitos saudáveis, como andar de bicicleta por circuitos de 50 km a 60 km em estradas de terra toda semana. E os registros de covid pela região ainda eram raros — em 13 de abril, dia em que André começou a apresentar os primeiros sintomas, Araras tinha apenas cinco casos confirmados da doença.

Mas André já vinha se precavendo. Apesar de a direção do Mandic-Sayão ter adotado medidas de prevenção, como disponibilização de álcool-gel em todos os setores, uso de máscara em tempo integral e ventilação de ambientes, ele tinha redobrado os cuidados em casa porque vive com os pais, já idosos: passou a evitar contato próximo, adotou medidas de higiene rígidas e começou a separar roupas e sapatos.

No domingo, 19 de abril, o desconforto respiratório de André aumentou e a dipirona passou a já não fazer efeito. Foi então que ele se deu conta de que podia sim estar com o novo coronavírus. Ao vê-lo piorar, seu pai — de 82 anos, hipertenso e com apenas um rim — insistiu para levá-lo ao hospital. Mas André conseguiu impedi-lo e foi dirigindo sozinho à Santa Casa de Misericórdia de Araras. Lá, uma tomografia de tórax indicou aspecto de “vidro fosco” (sinal de processo inflamatório e/ou infeccioso nos pulmões) e o psiquiatra foi rapidamente transferido para o hospital da Unimed de Araras, que montou um núcleo de terapia intensiva para pacientes com covid-19.

André, durante internação em Araras. Foto: Acervo pessoal

Patrícia foi o contato principal com o médico que cuidou da internação de André. Ela conta que ficou apreensiva ao saber que ele havia sido encaminhado à UTI: a imprevisibilidade da evolução da doença e o tratamento sem um protocolo estabelecido foram dois fatores que geraram medo e incerteza em familiares e amigos.

Com temperatura, saturação de oxigênio e pressão arterial monitorados, ele passou a fazer diariamente eletrocardiograma, raio-x e gasometria arterial. E, na tentativa de conter infecções primárias e secundárias, médicos prescreveram várias medicações, incluindo a polêmica hidroxicloroquina, além de azitromicina, clexane, prednisona e rocefin.

“Em todas as madrugadas era colhido sangue arterial”, lembra. “Para se chegar à artéria radial do pulso, alguns nervos eram perfurados e a dor era lancinante. Eram daquelas dores em que as costas formam um arco. Às vezes eram quatro perfurações num dia. No início da internação, minha saturação de oxigênio caiu para 76% (o normal é de 95% a 100%). Se caísse mais um pouco, eu corria o risco de ser entubado.”

Alvo de discussões até políticas, a hidroxicloroquina é o medicamento que mais tem gerado discussão em tempos de coronavírus. Documento do Comitê Científico e da Diretoria da Sociedade Brasileira de Imunologia sobre o uso da hidroxicloroquina destaca que estudos recentes demonstraram que não houve melhora significativa quanto à mortalidade quando avaliados dois grupos: o de pacientes que receberem hidroxicloroquina, azitromicina ou ambos os fármacos em tratamento contra covid e o dos que não foram tratados com essas drogas. Já o Conselho Federal de Medicina condiciona o uso da hidroxicloroquina a critério médico e consentimento do paciente.

André conta que o acolhimento da equipe de profissionais da saúde foi fundamental para que ele se sentisse seguro e que recebeu o acompanhamento diário de um fisioterapeuta. Os movimentos sentados e caminhadas breves foram fundamentais para fortalecer a capacidade cardiorrespiratória, depois de seu pulmão reaparecer limpo nos exames de tomografia. No dia 24 de abril, uma sexta-feira, ele teve alta e voltou para casa. Mas ainda cumpriu um período de isolamento de duas semanas na casa de Patrícia, já que precisava ficar longe dos pais, que são grupo de risco.

E o que ele acha que mudou após essa experiência? “Aprendi a valorizar mais a minha vida e detalhes aos quais não dava atenção antes. Agora agradeço por poder amarrar um sapato, tomar um banho sozinho, subir e descer escadas. Coisas que por um tempo pensei que não conseguiria mais fazer.”

Pôr-do-sol durante pedalada entre Araras e Conchal em 01/05/20, após ter alta do hospital e completar o período de isolamento obrigatório. Foto: Acervo pessoal

Para André, hábitos de boa alimentação e exercícios foram essenciais para sua recuperação, apesar das dificuldades pelas quais passou durante a internação. Mas durante um mês após deixar o hospital o psiquiatra diz ter sentido solidão. Amigos, familiares e pacientes passaram a sentir medo dele. Essas reações o fizeram continuar se sentido isolado, apesar de já estar curado.

“Senti a tristeza de perto", conta. "Mas a vida continua. Eu me levantei e estou de pé até hoje!”

Patricia contou que se sentiu aliviada com a boa recuperação de André, mas, por mais que ambos seguissem à risca as recomendações dadas pelos médicos da Unimed, não conseguiu evitar o receio da contaminação. Para ela, a fé foi fundamental para atravessar esse momento tão delicado. Assim como André e a maior parte de sua família, Patrícia é espírita kardecista e, assim que se viu tomada pelo medo, iniciou uma corrente de orações diárias. Recebeu muitas mensagens positivas, importantes tanto para ela quanto para ele no processo. “Dentro do espiritismo nós acreditamos que nada sucede sem que tenha uma causa maior e ninguém fica desamparado em nenhum momento. Procuramos nos apegar a isso para poder enfrentar essa situação.”

André retomou os atendimentos dos pacientes duas semanas após receber alta. Passou a realizar consultas online e também presenciais — seguindo medidas rigorosas de prevenção. “Apesar de estar imunoprotegido (no auge da produção de anticorpos) e não apresentar nenhuma forma do vírus em meu organismo, tenho que ser exemplo”, afirma.

O psiquiatra lembra que antes da contaminação não tinha medo da doença nem de morrer. Contudo, nos momentos em que ficou debilitado no hospital, sentiu muito medo da morte e se apoiou também na fé. Para ele, toda dor tem de ser instrumento de transformação e amadurecimento.

“Muitas pessoas estão negando o perigo completamente, o que é muito preocupante, e outras desenvolvendo TOC com pânico, num ritual infindável de limpar tudo na tentativa de sentir-se protegido", alerta. "Os dois extremos perigosos existem e fazem adoecer. Acho que durante e após a pandemia virá uma nova onda de transtornos mentais.”

Carolina Menezes é aluna de Jornalismo da FAAP e repórter do LabJor FAAP

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