TCCs 2022

CARTA DE UM JOVEM ATOR

Bastidores dos ensaios e da estreia em São Paulo de ‘A Serpente’, última peça de Nelson Rodrigues

LabJor
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Giordano Pienegonda

“Vamos descer para a coxia, o público está entrando. Casa cheia hoje!” O aviso do diretor me pegou ainda dentro do camarim, minutos antes do início da peça. Um elenco de cinco pessoas estava estreando A Serpente, peça de Nelson Rodrigues (1912–1980), após dez meses de ensaios. O camarim e o palco, em alguns teatros, geralmente são ligados por uma escada atrás da rotunda — o pano preto que fica no fundo dos palcos. Com os refletores ligados e a cortina fechada, era ainda mais difícil de enxergar a escada, pintada de preto. Já posicionado na coxia, eu ouvia o burburinho de pessoas conversando na plateia do Espaço Parlapatões, tradicional teatro na Praça Roosevelt, região central de São Paulo. Dos 94 assentos, 90 estavam ocupados no dia 30 de setembro por espectadores aguardando a abertura da cortina.

Cartaz de divulgação da peça ‘A Serpente’. Foto: Acervo pessoal

Fui o primeiro a descer a escada e esperava os outros quatro atores se posicionarem, pois a peça só pode começar quando o elenco inteiro aguarda, de pé, sua hora para entrar em cena. No escuro, encostado na parede, entre dois panos pretos que desciam amarrados do alto pé direito do palco, breu foi o que me veio na mente. O barulho do público se misturava ao som dos saltos das três atrizes em contato com os degraus de metal e frases soltas do texto que já tinha decorado por dez meses. Era apenas um breu carregado de adrenalina. Do barulho dos saltos na escada, agora ouvia os saltos batendo na madeira que compunha o chão do palco.

Soaram então os três sinais usados desde que Molière — pseudônimo de Jean-Baptiste Poquelin (1622–1673), o mestre da comédia satírica — revolucionou o teatro na França do século 17. Antes serviam para avisar o público de que deveriam fazer silêncio porque o rei havia sentado em seu camarote e a peça iria começar. Agora não havia rei nem camarote, mas a tradição se impunha, com o silêncio da plateia e a concentração dos atores atrás da cortina se mresclando. As luzes do palco diminuíram e formou-se de fato um breu em toda a sala do teatro.

Quando as luzes que iluminariam a peça começam a aumentar junto com a trilha sonora da peça, eu (ator) e o público começamos a nos preparar para ingressar em um outro tempo/ espaço, nos quais todos sabem que o que veem é uma farsa representada sobre um tablado de madeira, mas acreditam nela com mesma intensidade.

Eu olhava para a coxia que ficava em frente à que havia sido marcada para eu estar e a atriz que interpretava Guida, esposa de Paulo, papel que eu interpretava e com o qual já me habituara, estava na mesma posição: parada, com os olhos concentrados, esperando o momento de sair do meio dos dois tecidos pendurados para entrar no quadro de visão do espectador e viver, por uma hora, uma circunstância que jamais viveríamos em nossas vidas cotidianas.

A Serpente foi a última peça de Nelson Rodrigues, considerado o fundador do moderno teatro brasileiro e o mais importante dramaturgo do País. Escrita em 1978, quando ele já estava com a saúde debilitada, foi publicada em 1980, ano em que morreu. É um texto menor do que o das outras peças, com apenas um ato e cinco personagens. Ele conta a história das irmãs Guida e Lígia, que são casadas e moram num mesmo apartamento com os respectivos maridos. Depois da separação de Lígia e Décio, Guida “empresta” seu marido, Paulo, por uma noite para a irmã.

Tendo a referência bíblica do pecado no título da peça, os cunhados se apaixonam e a trama leva ao fim trágico do casamento de Guida, quando Paulo joga a esposa pela janela e o ex-marido de Lígia se apaixona pela lavadeira do apartamento.

A segundos da estreia, aqueles cinco atores haviam passado dez meses na companhia de dois diretores para chegar a uma concepção de como levar o texto para a verticalidade cênica. E responder a uma questão: quem é a serpente da história? Seria Guida, que oferece o marido para a irmã? Ou Lígia, que se apaixona pelo cunhado? Ou Paulo, oferecendo o amor que só ofertava a sua esposa para a cunhada? Passavam-se os personagens óbvios em nossas cabeças e aquela questão parecia empacar os encontros do elenco que ocorriam aos sábados.

Até que a psicanalista Carla Almeida, autora de um livro sobre Nelson Rodrigues e que assinou a direção de atores, chegou para nos ajudar. Depois de termos nos debruçado sobre a questão por três ou quatro ensaios e levado essa pergunta até para o restaurante onde jantávamos depois do ensaio, ela determinou: “A serpente só pode ser a Lavadeira”.

Guida (Bete Kakau) e Paulo (Giordano Piemegonda) na peça ‘A Serpente’. Foto: Carla Almeida/ Acervo pessoal

A frase era resultado de uma reflexão filosófica e psicanalítica sobre a peça, pois a personagem tinha fala em duas cenas, que davam mais ou menos 15 minutos dentro de uma hora de peça. A partir dessa decisão com o elenco, os ensaios fluíram de maneira tal que a peça tomasse um lugar menos realista e mais onírico. E no fundo, desde a primeira leitura, eu sempre achei o fato de Guida oferecer o amor de seu marido à irmã absurdo, menos real e muito mais psicanalítico.

Era meu primeiro trabalho no meio profissional e comercial do teatro e, depois da decisão de quem seria a serpente na trama, todas as outras incumbências para se estrear uma peça, como cenário, figurino e aluguel de teatros, foram se clareando. Definimos que as duas irmãs seriam ligadas às cores preto (Guida) e branco (Lígia), além de fazer uma relação com a história da música e da relação dos movimentos gótico — representado pelo preto — e barroco — ligado ao branco e a uma visão de pureza e ausência de pecado. Também a definição das cores ditou o desenho dos figurinos e do cenário. Como a trama se passava em um apartamento, o cenário era simples, porém ambicioso: uma janela com rodinhas que era conduzida durante a peça toda pela Lavadeira e tinha dois lados, um preto e um branco, que definiam os quartos das irmãs.

Todo esse esclarecimento é necessário para a definição da proposta artística e dos ensaios, que envolvem decorar texto, marcação e estabelecer uma certa intimidade com os outros atores para que a peça soe real em suas interações entre os personagens. Dez meses de técnica se resumiam, na coxia ouvindo a trilha de abertura, aos segundos de emoção em que se esquece de tudo. Eu só pensava no momento da minha entrada, que aconteceria na segunda cena depois de passados os cinco primeiros minutos, que, segundo o escritor e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564–1616), são os minutos fundamentais para manter a atenção do público.

Chegou a hora, a atriz deu a deixa: “A mulher deseja sem amor”. Com o barulho das rodinhas da janela virando e indicando a troca de quartos, entrei em cena. Enquanto o público aguardava qual seria o próximo passo daquela história, olhei para a plateia e, apesar de a luz da ribalta (os refletores que iluminam de baixo para cima) impedir um pouco a visão dos atores, consegui enxergar Sacha Rodrigues, neto de Nelson Rodrigues, sentado na primeira fileira.

Minha primeira fala saiu: “Lígia”.

Enfim estreamos.

*Esta crônica foi feita durante a produção do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da FAAP de Giordano Pienegonda. Intitulado ‘A Vela e a Roda: Os reis de uma engrenagem viva’, teve como tema o Teatro Oficina e orientação da Profa. Dra. Sandra Nunes.

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