Casa de Acolhida Casarão Brasil ajuda população trans a conseguir emprego e dignidade

Entidade na zona sul auxilia mulheres transsexuais e travestis a reingressar no mercado de trabalho

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6 min readJun 18, 2024

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Pedro Affonso

Carmem Lúcia, com o brasão do seu time de coração em uma mão e suas bonecas em outra. Foto: Pedro Affonso

“Antes de começar a me montar, eu tinha um emprego. Quando resolvi colocar meus atributos, seios e bunda, as portas se fecharam”, lembra Carmen Lúcia, de 50 anos. Natural de Volta Redonda (RJ), Carminha, como é conhecida, relata as dificuldades que enfrentou ao procurar emprego após, como diz, “começar a se montar”.

“Por ser travesti, eu era ridicularizada e tratada com deboche durante a busca por vagas de trabalho. Por conta da exclusão, recorri a outros meios de sobrevivência. Fui dona de boca de tráfico de drogas, peguei 26 anos de cadeia, aprontei muito no Rio de Janeiro. Mesmo vendendo por motivos de força maior — pagar meu aluguel e minhas coisas — , eu via as pessoas destruindo a própria vida. Aquilo mexia muito com meu ego, com meu coração e quis mudar de vida.”

Carminha, assim como outras 29 mulheres, atualmente recebe apoio do Centro de Acolhida Especial Casarão Brasil, uma organização da sociedade civil (OSC) que acolhe mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade. Situada em Interlagos, bairro da zona sul da capital paulista, o centro já acolheu 319 mulheres durante seus três anos de funcionamento. Inaugurado oficialmente em junho de 2022, é mantido pela Prefeitura da cidade.

Nos primeiros meses em São Paulo, antes de conseguir uma vaga no Centro de Acolhida, Carminha ficou em situação de rua. “Eu dormia em frente à Prefeitura. Destruída usando crack, por causa do sofrimento, da vulnerabilidade social, do frio da rua, esse era o meu único refúgio.”

“Eu usava crack e chorava. Chorava porque eu sabia que o chão estava se abrindo pra mim. Ficava quatro dias sem comer. Não tinha forças.”

Espelho com brasão do Flamengo e boneca confecionada por Carminha Foto: Pedro Affonso

A já auto-reconhecida paulistana ainda demonstra um pé no Rio de Janeiro ao segurar um espelho com o brasão do Flamengo, “time do coração”. Orgulhosa, ela diz que hoje está sóbria e passa dias fazendo sua arte — bonecas de lã com delicadas cabeças de cerâmica e espelhos decorados —, enquanto espera para se matricular em uma escola e retomar os estudos graças ao apoio do Centro de Acolhida.

“Nosso objetivo é que as meninas retomem a vida de alguma maneira. Muitas passaram a vida inteira em acolhimento, então saíram de um serviço infantil e já foram para a rua, ou outros centros de acolhida”, explica a gerente da entidade, Patrícia Leite Castro, de 51 anos.

Patrícia diz que o centro possui uma alta rotatividade, por ter poucas vagas — 30 até o momento — e uma alta demanda. Nos seis primeiros meses lá, as mulheres precisam, minimamente, organizar o que se propuseram a fazer. Caso contrário, podem ser desvinculadas — desde a criação do local, isso só ocorreu uma vez segundo a gerente.

O centro de acolhida oferece suporte para que as mulheres encontrem um trabalho digno, apesar das dificuldades da falta de preparo nas empresas. “Vai usar o banheiro feminino, aí não pode usar o banheiro, é ridicularizada pelos colegas. Colocam essas mulheres para trabalhar em estoque, telemarketing. Ou seja, escondem a pessoa”, afirma Patrícia.

A gerente relata também casos de assédio — frequentes — sofridos pelas mulheres da casa. “Uma vez vi um motoqueiro parado na frente do portão encostado na moto se masturbando enquanto olhava as meninas que estavam fumando ali na frente. As pessoas não podem mais fumar um cigarro que o homem já imagina que está fazendo prostituição?”

Algumas mulheres do centro já tiveram de se submeter à prostituição como única forma de renda. É o caso da estudante universitária Samira Souza, de 32 anos. De Teresina, Piauí, a jovem diz ter vindo a São Paulo para fazer dinheiro. Chegou ao Centro de Acolhida após ficar 28 dias no Hospital das Clínicas em São Paulo se tratando de hanseníase, também conhecida como lepra.

Samira relata que durante o tempo em que se prostituía conseguia se manter financeiramente. Conta que fazia uma grande quantidade de dinheiro com os programas, mas que os que mais pagavam envolviam o uso de substâncias. “As pessoas me pagavam mais dinheiro para beber e usar droga com eles. R$ 4 mil por programa. Tinha cliente que me dava dinheiro só para eu usar droga com ele. Toda vez que ele ia usar, me mandava mensagem pra gente usar junto. E me dava bastante dinheiro.”

Fachada do Centro de Acolhida Especial Casarão Brasil. Foto: Pedro Affonso

Samira relata que teve problema com o uso de drogas em decorrência disso. “Desandei bastante, não me reconhecia mais. Eu morava com alguém que acordava já tomando conhaque, e eu usava junto com ele. Eu falei: ‘Quer saber? Eu quero morrer!’”. Ela diz ter ficado nessa situação até o momento em que recebeu a indicação de um lugar onde poderia se cuidar.

Samira também relata um grande receio com o ingresso no mercado formal de trabalho. Afirma ter medo de como será recebida nos espaços. Apesar disso, está cursando graduação de Serviço Social e se vê realizada no futuro — será a primeira pessoa de sua família a ter um diploma.

CONTRA ABUSOS, POLÍTICAS DE DIVERSIDADE

A aproximadamente 300 quilômetros do Centro de Acolhida Casarão Brasil, na cidade paulista de Araraquara, a psicóloga Rafaela Modé relata que, mesmo com uma carreira formal estabelecida, as mulheres trans ainda sofrem abusos frequentes. Ela diz ter sido assediada diversas vezes por conta da fetichização de sua identidade de gênero.

“O paciente entrou em contato relatando problemas com a esposa por gostar de mulheres trans. Perguntei se ele queria uma terapeuta ou um caso com uma mulher trans. Ele me disse que queria os dois”, relata Rafaela.

Este não é um caso isolado. Em outra situação, a terapeuta diz ter recebido uma mensagem de um homem que disse ter problemas por seu grande pênis —junto com a mensagem, havia uma foto da genitália. “Isso fora os homens que mandam fotos por mensagens no meu Instagram.”

Além de seu trabalho na Psicologia, Rafaela também é pré-candidata a vereadora pela REDE Sustentabilidade, com foco no bem-estar social e na representatividade da população trans. “A gente quer ter poder para a mudança. Se o poder está na política, é ali que nós devemos estar. Se a pessoa não tem dinheiro para realizar uma mudança, a verba deve ser pública.”

Para Ricardo Sales, sócio-fundador da consultoria de diversidade e inclusão Mais Diversidade, a inclusão da comunidade trans e travesti no mercado de trabalho ainda tem muito a avançar. Ele diz que já existem iniciativas tímidas e incipientes, mas são necessárias mais políticas empresariais.

“Uma empresa deve contar com o engajamento da alta liderança, mostrando e sinalizando qual é o valor que dá a esse tema, e deve ter objetivos claros. Por exemplo: a definição de metas e compromissos com o assunto, além de desenvolver políticas de tolerância zero ao preconceito.”

Pedro Affonso é aluno de Jornalismo da FAAP

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