Cine Belas Artes: um templo da cultura cinefílica

Para frequentadores, cinema na Rua da Consolação é mais do que uma opção de lazer: é um vínculo a um espaço de memórias compartilhadas

LabJor
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18 min readJun 22, 2024

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Gabriel Moreno

Com as novas gerações frequentando menos os cinemas, o mercado de streaming ganhando força e as formas de consumir filmes mudando, cinemas de rua ainda possuem espaço neste momento de consumo personalizado? Esta pergunta motivou o LabJor a visitar, nos dias 8 e 20 de junho, um dos mais importantes — e dos poucos restantes — cinemas de rua de São Paulo. A ideia era compreender, por aqueles que consomem cinema, se este é um movimento perceptível.

Com uma curadoria comprometida com a exibição de uma ampla variedade de obras de diferentes países, o Cine Belas Artes representa um bastião da cultura cinematográfica que resiste num cenário desfavorável, o da preservação do cinema como experiência coletiva.

Um dos principais templos da cinefilia nos anos 1970, o espaço foi criado em 1943 com o nome de Cine Ritz. Em 1948, tornou-se Cine Trianon, sendo batizado de Cine Belas Artes somente em 1967. Desde então, foi rebatizado outras seis vezes ao longo dos anos: Gaumont Belas Artes, em 1982, após um incêndio que o manteve fechado por mais de um ano; Estação Belas Artes, em 2001, quando a distribuidora e exibidora carioca Estação Botafogo comandou o cinema; HSBC Belas Artes, em 2004, quando firmou-se uma parceria com o Banco HSBC, após quase dois anos de batalha contra o fechamento do cinema; Cine CAIXA Belas Artes, em 2014, depois de reabrir após fechar suas portas em 2011, agora com a Caixa Econômica Federal e o Grupo Caixa Seguros; Petra Belas Artes de 2019 a 2023, com patrocínio da Cerveja Petra, e, de janeiro de 2024 até 2029, REAG Belas Artes.

Cine Trianon na década de 1950 (à esq.) e o atual REAG Cine Belas Artes . Fotos: Reprodução Site Salas de Cinema em São Paulo e Divulgação REAG Belas Artes

Num prédio quase centenário na Rua da Consolação, quase esquina com a Avenida Paulista, marcado por seu estilo arquitetônico do final da década de 1940 e início de 1950, o espaço é a edificação de gostos, costumes e prazeres que aparentam não se encontrar mais hoje. Um deles é o cinema como lazer.

Cinemas de shopping — os multiplex — e plataformas de streaming — as “confortexrepresentam uma ameaça constante aos cinemas e à inércia que consumir uma história coletivamente remetem. Ao menos é que o frequentemente aponta a imprensa. Para André Sturm, diretor e responsável pela programação do REAG Belas Artes e diretor-geral do Museu da Imagem e Som (MIS), no entanto, a ideia de “morte do cinema”, ou de que há um grande antagonista, é um desserviço jornalístico.

“Os jornais, a imprensa tradicional, decidiram que cinema não é relevante, e fica com esses papinhos. Então você não tem mais, às quintas-feiras, críticas de todos os filmes, você não tem mais guia de programação… Então, quando tem um filme que tem divulgação, é lotado de gente.”

Para ele, afirmar que há um desinteresse no cinema é balela, e o meio não se tornou ultrapassado.

“As pessoas adoram o cinema. Não é minha opinião, é fato. Em fevereiro, os exibidores decidiram fazer — o que é uma coisa inédita, né? — aquela semana do cinema, pro ingresso mais barato. Nós fizemos, no Belas Artes, 9 mil pessoas em sete dias. Tivemos 70% das sessões lotadas. A gente só não fez mais porque não cabia. Aí vêm me dizer que as pessoas não querem ir ao cinema?”

Quanto às plataformas de streaming, que supostamente representam uma ameaça, todo o discurso que se criou é, para Sturm, uma aparente tentativa de gerar uma sensação de iminência, um discurso catastrofista onde não há catástrofe iminente. “Se streaming fosse acabar com o cinema, o iFood tinha acabado com os restaurantes”, afirma.

“As pessoas ficaram dois anos trancadas em casa pedindo iFood, e os restaurantes não estão vazios. Uma pessoa que acha que pedir iFood é a mesma experiência de ir num restaurante, eu não vou nem falar com ela”, continua, ainda indignado. “Por que que o streaming vai acabar com o cinema? O Spotify não acabou com o show, o streaming não acabou com o futebol, o iFood não acabou com o restaurante, mas o streaming vai acabar com o cinema… Teve uma demora para o público voltar. Mas as pessoas estão lá. É uma experiência diversa. É uma experiência de estar junto. É uma experiência civilizatória.”

O Cine Belas Artes é um dos poucos espaços que mantém, ou luta para manter, uma noção de cinefilia; uma paixão por cinema e, acima de tudo, por imagens. Nada daquilo que se popularizou na internet de uma segregação clara entre “cinema de arte” e “cinema popular”. Segregação esta que Sturm não acredita existir mais. Para ele, existe um recorte histórico que remete ao termo “cinema de arte”.

“Eu acho péssima a expressão cinema de arte, porque aí parece que é uma coisa para iniciados. Em outros tempos fazia sentido, quando arte era uma coisa mais valorizada, quando ter cultura era uma coisa mais valorizada, então o cinema de arte era esse lugar onde você podia ver filmes realmente um pouco mais sofisticados e tal.”

O Belas Artes é um “cinema… diferente”, diz Sturm, com reticências e tudo — pausa esta para que se atribuísse o valor devido a um local com tanta história, que acompanhou e acompanha diferentes gerações consumidoras e aficionadas por cinema.

“Belas Artes é um cinema… diferente. É um cinema com personalidade. É um cinema que oferece a possibilidade de um encontro com bons filmes. Porque um filme como ‘Dunkirk’ (2017), que é uma superprodução de Hollywood, feito para grandes plateias, ao mesmo tempo é uma obra-prima. Então por que não passar no Belas Artes? É um filme de arte? Naquele sentido que costuma se dar ao conceito, não seria. Mas, na minha opinião, é um excelente filme. Então a gente vai passar.”

A principal vantagem sobre os multiplex é que “ele é um cinema de rua”, pontua. Ser um cinema por si só já é um triunfo àqueles que detestam shoppings e toda a perambulação necessária apenas para chegar ao cinema, que “sempre fica no fundo do shopping ou no último andar”.

“Você gasta meia hora para chegar no cinema. No cinema de rua, você vai no cinema. Outra coisa é esse caráter que o Belas Artes tem: múltiplo. A gente tem seis salas e, no mínimo, 12 filmes em cartaz. Mesmo que você vá assistir a um filme lá e, de repente, o filme que você foi está cheio, você sabe que vai ter opções. Tem uma curadoria em que você confia.”

Para Sturm, existem dois tipos de programação: a que deve estrear e a que deve permanecer. O principal são as estreias, que também são as menos maleáveis — “Estreias são definidas pelos distribuidores, então eu tenho que partir disso”. Como o diretor de programação explica:

“Se um filme X não foi comprado para o Brasil, não posso passar no Belas Artes. Se para o filme Y foi decidido que vai estrear dia 4 de julho, eu não posso passar antes. Eu não vou deixar o filme estar em cartaz há 4 semanas na concorrência para depois entrar na nossa programação. O primeiro critério é o calendário”.

A abertura a filmes de todos os tipos — grandes produções, filmes cult (obras que possuem uma base assídua de fãs que discutem sua relevância e contribuição ao cinema), filmes independentes — e à aposta em permanências na programação — que configuram o segundo tipo de programação — são a base para que as engrenagens do cinema continuem rodando e cativando novas audiências ao longo de mais de 80 anos de história.

“Quando eu programo o Belas Artes, penso em mim como público. A gente está sujeito a muita informação. E o que a gente faz? A informação mais decisiva para te motivar a ver o filme é um amigo te falar que é bom. Você vai confiar mais do que numa crítica, do que num comercial. E, às vezes, você encontra seu amigo, o filme está em cartaz e ele te fala ‘vai ver o filme’ e, quando você vai ver, o filme já saiu.”

Infelizmente, nem todos os filmes trazem o retorno esperado. Quando pensado para ser exibido, um filme possui um tempo de vida útil e este é delimitado pelo “boca a boca” — recomendações de pessoas conhecidas para ver a obra X, Y ou Z.

“Sempre penso que ‘esse filme aqui tem boca a boca’, ‘esse filme aqui vai dar boca a boca’”, revela Sturm. “E muitas vezes dá, mas às vezes também não dá. Às vezes, chega na terceira semana e não acontece nada, fez 14 pessoas no fim de semana inteiro, aí o filme vai sair. A questão não é só decidir o que estreia, mas decidir o que continua. Existem casos de filmes que ficaram em cartaz no Belas Artes por um ano.”

Na contramão dos tipos que compõem a programação regular (estreias e permanências), o Cine Belas Artes possui uma programação especial, composta por sessões de debates, apresentações teatrais e musicais, feiras de livros e discos, mostras de autores consagrados. E, também, os queridinhos da casa:

  • Noitão Belas Artes: realizado mensalmente às sextas-feiras, é uma maratona de cinema. Unidas por um fio temático, três a cinco salas possuem uma programação pensada para durar da noite de sexta até a manhã de sábado;
  • Belas Sonoriza: experiência de assistir a um filme sonorizado com outra trilha sonora, ao vivo, por bandas ou grupos musicais;
  • Porão do Belas: toda quarta-feira, às 20h30, sessões dedicadas ao cinema de horror. São quatro sessões ao longo do mês, interligadas por um tema diferente a cada mês.

Basta entrar no Belas Artes para se deparar com uma mescla geracional e cultural de frequentadores do espaço. Não é raro entrar, dirigir-se à bomboniere e deparar-se com gerações de amantes de cinema, e deste cinema em específico, todos imersos nas suas particularidades de consumo; hábitos adquiridos com a vivência ou que lhes foram ensinados.

Para atestar isso, Sturm foi indagado sobre histórias de tradicionalidade, de transmissão da paixão pelo espaço, se conhecia pessoas que foram impactadas pelo local, vidas que foram mudadas. O Belas Artes como figura central capaz de unir, de criar um senso comunitário entre seus frequentadores.

“Eu conheço gente que vai com o filho, eu conheço gente que começou a namorar no cinema Belas Artes, gente que fez amigos no Belas Artes”, conta. E prossegue: “Se eu quisesse ter ganhado dinheiro na vida, eu não teria assumido o Belas Artes. Eu tinha feito outra coisa. Eu fiz aquilo porque era o cinema da minha juventude, onde eu assistia aos filmes mais incríveis e do qual eu sonhava em ser um programador até que, de repente, aconteceu. Tem as histórias mais incríveis. Então, é… o Belas Artes tem essa… potência.”

Leonardo Maguetta, de 18 anos, foi ao cinema com seu amigo Vinicius Ganzerli, também de 18, um dia após seu aniversário para assistir Os Observadores (2024), de Ishana Night Shyamalan. Questionado pelo LabJor, Leonardo explica:

“Olha, raramente eu venho ao cinema. Tenho mais costume de ver filmes em casa mesmo, mas eu gosto de me reunir com o pessoal sempre que dá para ver algo no cinema. E, como fiz uma festa pro meu aniversário, pensei numa programação mais tranquila pra hoje”.

Ele diz que, de cinema de rua, o Belas Artes é o único que conhece e frequenta. E que a abertura a uma maior variedade de “filmes de produtoras menores” nos cinemas de rua o acabam conquistando, pois, a seu ver, “os filmes das redes de cinema de shopping, em grande parte, vêm de produtoras grandes ou de origem quase sempre ocidental”. “Não tem como sair muito da ‘caixinha’ lá”, resume. De toda a programação, marca a presença sempre que pode no Noitão, “principalmente nos focados em filmes de terror”.

Imerso em memórias nostálgicas trazidas pelo questionamento, Sturm resgata, em dado momento da conversa, um episódio agridoce. “Tem uma história que eu adoro contar”, disse, como se visualizasse num fotograma o momento em que o Belas Artes viveu um verdadeiro drama quanto à sua permanência enquanto composição paisagística de São Paulo.

“Lá em 2011, quando o cinema estava naquele fecha, não fecha, fecha, não fecha, surgiu espontaneamente um abaixo-assinado. Eu sentei ali no balcão do cinema com uma amiga num sábado. Tinha uma senhora, bem senhora. Aí, ela virou pra mim e falou assim: ‘Meninos, vocês já assinaram o abaixo-assinado? Façam o favor.’”

Para o aficionado e depois diretor, a sensação era inexplicável. “Sabe, não tem preço isso”, diz. “Óbvio que eu não falei quem eu era. Eu assinei lá, não com o meu nome. Mas, assim, tem coisa mais incrível do que uma senhora que eu nunca vi na vida se apropriar da defesa daquele cinema?”, pergunta.

O movimento Contra o fechamento do Cine Belas Artes, em 2011, foi a maior mobilização no Brasil em defesa de um patrimônio cultural. Mais de 90 mil assinaturas de cidadãos, frequentadores e cinéfilos, constavam no abaixo-assinado no ano em que o cinema fechou suas portas.

Para perceber se a paixão pelo espaço é algo que compõe o espírito do Belas Artes, o LabJor tentou contato com funcionários do espaço. Por uma questão interna, eles não podiam conceder entrevista, mas isso não impediu que dois deles — que pediram para não serem identificados — falassem um pouco do dia a dia no cinema.

Uma das funcionárias trabalha diretamente em contato com os clientes, sendo capaz de observar o fluxo local ao longo da semana. “O público aqui é muito fiel”, começa. “Assim, quem costumava vir quando era criança continua vindo até hoje. Quem conheceu recentemente apresenta aos amigos, familiares. Digo isso porque as pessoas costumam vir sempre acompanhadas. É legal ver esse movimento. Eu conhecia o Belas Artes antes de trabalhar aqui, mas não frequentava nem nada do tipo.”

A história do recém-aposentado Mário Simões, de 62 anos, corrobora a afirmação. “O Belas Artes era uma figura presente na minha infância”, conta. Ele apresentou o espaço aos filhos, hoje com 35 e 19 anos, ainda pequenos.

“Quando eu ouvi falar do Belas Artes, isso nos anos 1970, era menino ainda, tinha meus 15, 16 anos…” O relato vem seguido de uma risada por ter denunciado a idade. “Ali no início dos anos 1980, lembro do incêndio, já era mais moço, com meus 19 ou 20 anos. Comecei a frequentar anos mais tarde, na década de 1990. Meu mais velho era pequeno ainda.”

Com sua sessão para começar, Mário, apressado em finalizar a entrevista, diz: “Fico feliz que passamos todo aquele drama”, referente ao fechamento em 2011. “Desde que reabriu, eu posso passar um pouco mais de tempo no espaço da minha juventude.”

Questionada se há uma maior presença de frequentadores homens ou mulheres, a funcionária responde: “Olha, nunca reparei se vem mais de um ou de outro. Como eu disse, as pessoas estão sempre em pares ou grupos”. E algum tipo de programação se sobrepõe a outra?

“Assim, as pessoas vêm aqui para ver lançamentos, claro, mas também para ver filmes antigos, porque os outros cinemas não oferecem isso com frequência. O Noitão costuma sempre lotar o espaço e é algo que voltou com tudo depois da pandemia”, conclui.

Outro funcionário com quem o LabJor conversou diz que já conhecia o Belas Artes de longa data antes mesmo de trabalhar nele. “Eu lembro de vir aqui quando ainda era HSBC Belas Artes, no início dos anos 2000.” E, antes da próxima pergunta, dispara: “É bom ver o espaço movimentado. Esse lugar traz um público… ‘engajado’, sabe? Gente que realmente gosta de filmes.”

Em relação aos hábitos de consumo, “os clássicos prevalecem”. “Pipoca e refrigerante ainda são tendência”, brinca pela grande variedade de alimentos disponíveis na bomboniere — M&M’s, barras de chocolate, salgados, doces, refrigerantes e sucos.

“Sendo sincero, porque eu vou ao cinema também, o preço aqui é justo. Em algumas das sessões da programação especial, até pipoca inclusa tem”, diz, referindo-se às sessões do Porão do Belas, nas quais o preço da pipoca já está incluso no valor do ingresso.

Em maio deste ano, o Cine Belas Artes completou 20 anos sob a gestão de André Sturm e da produtora O2 Filmes e se tornou oficialmente um centro cultural, com espaços com a infraestrutura necessária para organizar workshops ou cursos, realizar concertos, peças de teatro, entre outros eventos culturais.

HÁ MENOS SEXO NAS TELAS? NÃO, AO MENOS NO BELAS ARTES

O produtor e pesquisador cinematográfico americano Stephen Follows e a editora de Cultura da revista britânica The Economist, Rachel Lloyd, investigaram o investimento da indústria cinematográfica em filmes com cenas de sexo, ou conteúdo sexual, e como a presença ou ausência delas reflete o desempenho das obras no mercado dos Estados Unidos.

O trabalho resultou na reportagem “Is there more or less sex on screen?” — Há mais ou menos sexo em tela?, em tradução livre. A base de dados, disponível no site de Follows, mostra o desempenho nas bilheterias americanas de 250 filmes entre 2000 e 2024.

Cena de ‘Pobres Criaturas’ (2023), de Yorgos Lanthimos, com direção de fotografia de Robbie Ryan. Site Filmgrab

A ideia de que Hollywood investe menos toma por base a aversão das novas gerações (Z e Alpha) a conteúdo erótico que insinue, incite ou explicite o ato sexual — independentemente do nível de grafismo. A Geração Z (ou Centennial) compreende os nascidos da segunda metade da década de 1990 até 2010.

Tomando por base a pesquisa, o LabJor perguntou a André Sturm como isso é visto no Belas Artes e se afeta, de alguma forma, a programação do cinema. “Para mim é absolutamente irrelevante”, responde ele, destacando que quando vai ao exterior e se encontra com agentes de vendas — responsáveis pela comercialização dos direitos de exibição de um filme –, esta não é uma questão que o preocupa ou norteia.

“O cara fala: ‘Tem esse filme aqui. Você compra filmes LGBT?’. Eu falo para ele: ‘Sim e não’. Aí ele responde: ‘Como assim?’. Tanto faz, eu compro filme bom, percebe? Essa questão de sexo para mim é irrelevante. O filme é bom ou é ruim?”

Sturm acredita que a atratividade de um filme está em sua qualidade, não na presença ou ausência de cenas de sexo. “Nesta leva, neste ano, os filmes sem sexo eram melhores, ou eram mais atrativos, ou eram mais interessantes, uma coisa não tem recorte”, explica.

“No ano passado ‘Pobres Criaturas’ ficou, sei lá, 18 semanas em cartaz no Belas Artes e tem cenas intensas de sexo. Agora não é um filme de sexo, é um filme brilhante, que tem cenas de sexo. Acho que a menor presença de cenas de sexo tem a ver com esse moralismo e tem a ver com um filme que é bom e que não é bom, ou que interessa ou não interessa.”

Colocar o sexo à frente do filme, para Sturm, é dar margem ao desinteresse, ao forte moralismo que guia as novas gerações.

“Quando eu era jovem, se tinha uma cena muito forte na novela, a Liga das Senhoras Católicas de Santana reclamava e a TV Globo diminuía. Agora, a gente tem cenas (de sexo feitas ou dirigidas) por mulheres, vêm as pessoas que defendem a diversidade e a liberdade e dizem que estão explorando o corpo da mulher, que estão não sei o quê, e proíbem. A gente vive um moralismo disfarçado de defesa de direitos, que se acha super progressista, e é tão moralista quanto era a Liga das Senhoras Católicas de Santana”.

Sturm retoma o filme vencedor de quatro Oscars Pobres Criaturas’ (2023) para expressar sua dificuldade de compreender este movimento.

“Teve um monte de gente chata dizendo que era um absurdo obrigar a atriz a fazer aquelas cenas, que era exploração do corpo da mulher. Gente, onde? É super integrado ao filme. A Emma Stone produziu o filme, ela fez o que ela quis, sabe?”

E o público percebe essa mudança? Há uma transformação de fato? O LabJor perguntou isso também a frequentadores do Belas Artes e coletou vários depoimentos entre uma exibição e outra. Confira abaixo.

“Nossa, eu não sei”, diz o gerente de produto Felipe Santos, de 32 anos, ao ser questionado sobre uma aparente redução de cenas do tipo em filmes. “Acho que talvez nos últimos tempos eu não tenha assistido tantos filmes para… sabe, conseguir metrificar se antes ou depois tinha mais. Eu acho que tem sido bem parecido. Não sei. Parece manter uma constante.”

“Eu acho que tem um recorte muito específico”, diz a diretora de arte Bianca Ferreira, de 35, que estava com Felipe. Dos filmes que costuma ver, ela acha que ainda tem muito. “Tem cenas que não são necessariamente, assim, pornográficas ou muito gráficas, mas tem muita cena que eu acho pesada.”

Felipe complementa: “Eu acho que, quando chega próximo da pornografia, é muito mais difícil justificar. Cenas pornográficas [em filmes] são algo que não deveria ser permitido”.

Para Gabrielle Alves, de 20 anos, abordada pelo LabJor enquanto comprava ingressos para Divertidamente 2, há uma diminuição considerável. “Olha, eu acho que realmente diminuiu porque começou a ficar mais justificado, sabe? Eu acho que não é mais aquela coisa de ter porque tem que ter. Agora as que têm fazem mais sentido com o contexto daquele filme. Quando você está num cinema, por exemplo, você não vai querer ficar vendo esse tipo de coisa porque tem um monte de gente vendo com você. É meio estranho, parece que é uma coisa meio invasiva, dá um desconforto.”

“É bem controverso, mas eu acho que tem que ser justificável”, afirma Bianca, sobre a inclusão de cenas de sexo em filmes. Na sua visão, muitos filmes que possuem cenas do tipo têm histórias de produção complicadas e com relatos de abusos — com atores e atrizes. “Eu entendo que algumas cenas fazem diferença para o enredo, para o impacto que a cena vai dar, mas muitas vezes não. Então, nesses casos, eu acho que não.”

Bianca e Felipe foram abordados pouco antes de uma sessão do filme ‘Rivais’ (2024), de Luca Guadagnino, que gerou intensos debates na internet antes de seu lançamento. A trama do filme gira em torno de um triângulo amoroso cuja história nunca terminou propriamente. A obra aposta numa certa sensualidade e construção de tensão — de todos os tipos, sexual e inquietante — para manter o espectador imerso, ansiando pelo desfecho.

Cena do filme ‘Rivais’ (2024), de Luca Guadagnino, com direção de fotografia de Sayombhu Mukdeeprom. Site Filmgrab

Ainda sobre Rivais, o interessente da abordagem é o flerte com o erótico sem propriamente entregá-lo, não há explicitação de nenhum tipo, apenas comentários sobre o assunto e insinuações. O ato nunca é consumado, de fato, em tela.

Na contramão de Bianca e Felipe, o casal Giovanna e Mauro Medeiros, respectivamente de 35 e 40 anos, estava no Cine Belas Artes para assistir a uma encenação da obra póstuma ‘Carta ao Pai’ (1919), do escritor tcheco Franz Kafka.

“Normalmente, a gente vem aqui assistir a filmes que têm mais a ver com o que a gente gosta. Mas, na verdade, hoje é teatro”, diz Giovanna rindo da situação. E, por acaso, numa casa que sempre foi cinema, né?”, complementa Mauro. O casal ri e se apronta para responder às perguntas em frente à bomboniere do saguão principal do cinema.

Cinema REAG Belas Artes. Foto: Gabriel Moreno

Sem noção das respostas obtidas anteriormente, Giovanna e Mauro começam a trilhar um caminho semelhante ao do casal anterior. Compartilhando sua percepção sobre cenas de sexo em filmes, Giovanna dispara que “depende do contexto, às vezes faz sentido, às vezes não faz” enquanto Mauro afirma uma aparente indiferença: “Não acho nada, na verdade. Se o diretor quer colocar por algum motivo, o uso narrativo justifica — mesmo que seja para causar incômodo, desconforto”.

Diante das hipóteses atreladas à Geração Z e sua aparente falta de interesse, fruto do constrangimento ou desinteresse, diz que quando era mais jovem talvez também se sentisse constrangido nas primeiras cenas de sexo de um filme.

“Não esperava que fosse ter alguma cena mais explícita, as primeiras acho que eu fiquei constrangido também, mesmo que eu estivesse só entre amigos. Então não sei se tem a ver com faixa etária também, e não só gerações. Enfim, tô trabalhando com esta hipótese”, diz Mauro.

Pensando na facilidade com que crianças e jovens têm acesso a conteúdos sensíveis — de natureza violenta, pornográfica, escatológica –, Giovanna pontua:

“Talvez eles tenham acesso mais cedo e isso pode constranger quando você pensa num contexto público de ir a um cinema, assistir com seus pais. Imagino que possa ter algum tipo de constrangimento porque eles começam a entender que é um contexto mais particular também.

Com o gravador próximo dele, Mauro, de bate-pronto, diz não saber. E então prossegue: “Minha primeira reação foi: é um conteúdo que eles já estão expostos, não deveria haver uma aversão disso no cinema, mas não sei se pode ser uma teoria de considerar algo íntimo e não algo público. Realmente não tinha olhado por esse recorte.”

Giovanna, baseando-se em sua convivência com a sobrinha de 12 anos, expressa os medos e anseios em relação ao contato prematuro com certos conteúdos: “Acho que está mais fácil se a pessoa quiser se engajar nisso. E eu acho que a gente tem que ter uma forma de se engajar neste mundo do acesso a uma internet que tem disponível o que a criança quiser e o que ela não quiser ver.”

Giovanna utiliza a palavra “criança” por acreditar que este contato começa antes mesmo dos 12 anos, na pré-adolescência. “Outro dia eu peguei a minha sobrinha vendo um vídeo no YouTube, nada pornográfico ou coisa do gênero, mas de coisas, assim, que eu achei que eram conteúdo extremamente adulto ali no YouTube Kids, sabe?”

E há, na opinião dos entrevistados, uma relação direta de menos audiência por sexo com menos audiência em geral?

“É, de novo, a questão do público em particular, né? Essas gerações mais novas vão ao cinema? Porque eu imagino que não façam tanta questão. Eu vejo pelas minhas sobrinhas, elas preferem ligar um filme na casa delas a ir ao cinema”, finaliza Giovanna.

Gabriel Moreno é aluno de Jornalismo da FAAP

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