O (des)aparecimento do amor

CINE#LABJOR na Mostra: Em Chamas

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3 min readOct 31, 2018

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Divulgação / Mostra Internacional de Cinema

por Leonardo Lopes

Beoning, Coréia do Sul, 2018. De Chang-dong Lee.

“Tenho medo de morrer, mas queria sumir, como se nunca tivesse existido.”

Haemi (Jong-seo Jeon) havia nos oferecido a pista. Só a levaríamos em conta, porém, quando fosse tarde demais — como o próprio Jongsu (Ah-In Hoo), provavelmente — , momento em que a atmosfera de mistério toma posse da narrativa de Em Chamas. No filme de Chang-dong Lee, a transição entre diferentes propostas é realizada com tamanha eficácia que, ao desbravarmos a trama, envolvidos por uma abordagem de descoberta romântica, encaramos a frase que abre esse texto como mera manifestação da subjetividade da protagonista, nada mais. Para o bem da experiência.

Competentemente assinada por Hong Kyung-pyo, a fotografia adota tons neutros e frios desde a primeira sequência. A atmosfera é um reflexo honesto das personalidades às quais viríamos a ser apresentados, Haemi e Jongsu. Os personagens são dois jovens a priori introvertidos e aparentemente indiferentes à própria realidade — ainda que, justamente para captar a atenção e o gosto do rapaz, el, Haemi, se manifeste mais abertamente. Na mesma medida, provam-se autênticos e fascinantes: ele pretende ser escritor; ela, exímia contadora de suas próprias histórias. A relação entre os dois tem origem no que os afasta de todo o resto: a ausência de laços afetivos. A verbalização de sentimentos é, por consequência, um obstáculo duríssimo. É assim que Jongsu, silenciosamente apaixonado por Haemi, acaba por vê-la nos braços de Ben (Steven Yeun) — e, como um amigo em comum, mantém-se próximo do casal.

A proximidade daquele trio desperta uma estranheza subitamente estimulante. Aparentemente subestimado por todos que o cercam, o protagonista encontra, até mesmo em seu “oponente” — ainda que não se disponha desta forma — , a atenção que desejava, ao mesmo tempo em que um interesse voyeurista parece captá-lo. Paralelamente, o recém-casal desenvolve uma correspondência curiosa, na qual as distinções de comportamento são marcantes e a jovem, num desabrochar, remete a algo próximo a um objeto de estudo para o sujeito. Mesmo que jamais atue para transformar sua realidade, Jongsu preserva intensas pretensões de ocupar a posição de Ben, reveladas sobretudo quando visita o apartamento de sua desejada e, serenamente, se masturba em sua cama, idealizando sua presença. A angústia que o toma quando ela se desnuda na frente de ambos, num ato de profunda espontaneidade, manifesta seu quase incontrolável desejo de tê-la.

O cinema sul-coreano — e não há novidade a ser aqui proferida — tem sido capaz de retratar com singularidade algumas assinaturas do comportamento contemporâneo. Entre elas, a repressão do sentimento e a frieza que se apossa das relações de afeto — elementos imprescindíveis à narrativa de Em Chamas. Por mais que a afeição por Jongsu exista — e seja ratificada pelas palavras do próprio Ben — , Haemi não consegue, jamais, impô-la sobre o anseio de abstração que a toma: uma ambição fugaz manifestada tanto geográfica — na viagem por território africano — , quanto psiquicamente em atos sutis, como seu involuntário adormecimento. Até que o desaparecimento lhe surja como única alternativa. Lembre-se do fenômeno ghosting.

O silenciamento, a repressão — “Por que eu te disse que a amo?!” — e a vontade do descarte do sentimento que se convertem em rancor, por sua vez, são encarnados pelo personagem de Ah-In Hoo — em brilhante interpretação. O desaparecimento é consumado — ao menos para sua existência — pela redução a pó de quem almejava que qualquer memória fosse deixada além de seu ainda incandescente desejo. E o que mais teria de ser?

Saiba mais sobre o filme em sua página na Mostra.

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