TCCs 2021

Comunidade LGBTQ+ e religião cristã: de história de repressão a sinais de esperança

Propostas de igrejas mais inclusivas criam espaços de acolhimento para população hostilizada ao longo de séculos

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Rafael Bittar

Desde a chamada revolta de Stonewall, onde se lançou a pedra fundamental do futuro movimento LGBTQ+ (veja abaixo), a comunidade de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e queers tem travado uma batalha por direitos, respeito e espaço em ambientes sociais, entre eles os relacionados à religião. Mas algumas histórias, como a de Alexya Salvador, primeira reverenda trans da América Latina, mostram uma esperança para o futuro.

A reverenda Alexya Salvador. Foto: Arquivo pessoal

Aos 41 anos, mãe de três filhos, ela representa em São Paulo a Igreja Metropolitana da Comunidade, uma denominação cristã de vertente protestante que foi fundada em 1968 em Los Angeles pelo pastor Troy Perry e hoje está presente em mais de 30 países. De proposta inclusiva, a igreja vem ganhando adeptos no Brasil e no mundo. Muitos deles são da comunidade LGBTQ+, cuja existência tem sido historicamente condenada por igrejas tradicionais. Em consequência, milhões de pessoas que não se identificam como heterossexuais se viram impedidas de exercer sua fé ou praticar sua crença em espaços religiosos, sob pena de serem julgadas ou até mesmo agredidas.

“Nessa linguagem cristã minha, tem um Deus que caminha comigo, que me motiva e que me dá força para continuar denunciando. Ele me dá força pra continuar não aceitando a injustiça. É um Deus que continua me dando forças pra não aceitar que corpos trans e travestis continuem sendo assassinados”, afirma Alexya.

O histórico conturbado colabora para que muitos integrantes da comunidade LGBTQ+ afirmem ter perdido o interesse na religião ou nunca ter sentido necessidade de ter uma religião. Embora não ter religião não signifique necessariamente não acreditar em Deus ou não ter uma fé. Para alguns, manter uma conexão com o divino permite estabelecer a própria relação com Deus, da forma que julgar melhor.

O estudante Gabriel Belic. Foto: Arquivo pessoal

Nascido em São Paulo há 21 anos, o estudante de Jornalismo Gabriel Simões Belic passou grande parte de sua infância em São Luís, no Maranhão. Suas avós o levavam sempre à igreja, mas ele lembra que ficava com medo de que alguém “o descobrisse” lá. Com o passar dos anos, foi afirmando sua identidade de gênero e perdendo contato com a religião, por escolha própria.

“Hoje eu sou uma pessoa aérea com religião. Por aérea quero dizer que eu não sei, acho que o vento vai me levando porque tenho esses lados bem ambíguos: tive uma fase muito ligada à espiritualidade e outra completamente afastada”, conta Gabriel.

No caso da personal stylist Raiane Brito, de 27 anos, a relação com a religião foi mais problemática. Moradora de São José dos Campos, ela se submeteu a sessões da chamada terapia de conversão numa igreja evangélica, a famosa “cura gay”. São supostos tratamentos de reversão sexual já vetados pela Justiça, mas que continuam ocorrendo até hoje e atingem muitas vezes LGBTQs que se sentem culpados por sua orientação sexual. Nessas sessões, a não heterossexualidade é tratada como possessão demoníaca ou algo que pode ser revertido.

A personal stylist Raiane Brito. Foto: Arquivo pessoal

Raiane conta que a religião sempre esteve presente em sua vida. De família católica, ela falava de sua homossexualidade com parentes, mas eles achavam que ela poderia “se livrar” ou “ser salva” da opção. “Eu chegava do trabalho e meu quarto estava todo molhado de água benta!”, lembra.

Foi então que, a convite de uma amiga, ela começou a frequentar uma igreja evangélica. “Estava destruída psicologicamente e aceitei. Lá tentei a famigerada ‘cura gay’. Havia até um grupo de apoio, tipo um AA (Alcoólicos Anônimos), mas sobre sexualidade. Adoeci ainda mais! Foi depois disso que saí do armário verdadeiramente!”

Hoje Raiane diz se considerar cristã porque crê que Jesus Cristo é filho de Deus, mas não segue nenhuma doutrina. “Me considero mais espiritualista do que religiosa”, resume. “Mas confesso que sinto muita falta do ambiente de igreja e adoração em comunidade. Tenho uma pitada de esperança de algum dia encontrar uma igreja que seja apenas o que Cristo prega, disposta a acolher em vez de julgar.”

Reverenda lésbica e doutora em Ciência da Religião, a ministra ordenada pela Igreja da Comunidade Metropolitana Ana Ester Pádua Freire considera que um passo importante nesse novo caminho de acolhimento é a redução do preconceito, tanto da parte das comunidades religiosas quanto da comunidade LGBTQ+. Ela diz entender que o histórico de exclusão costuma ser um empecilho, pois nem sempre vítimas de discriminação e violência estarão dispostas a ouvir novos discursos. Mas é preciso lembrar que há muitas formas de viver a fé cristã. “Alguém um dia me falou: ‘Você não está fazendo nada diferente, só está pintando o mesmo quadro com cores diferentes’.”

CINCO DÉCADAS DE BATALHA POR DIREITOS

Em 28 de junho de 1969, em Nova York, o bar The Stonewall Inn, em Nova York, foi cenário de uma revolta que entraria para a história do movimento LGBTQ+. Na época, alguns Estados americanos, incluindo o de Nova Yor, ainda consideravam crime o envolvimento de pessoas do mesmo sexo. O Stonewall era frequentado por drag queens, gays e outros gêneros não-binários, mas não costumava receber visitas da polícia porque seus donos faziam parte da máfia e subornavam agentes.

Manifestação diante do bar The Stonewall Inn em 25 de junho de 2016, após o então presidente Barack Obama anunciar a criação do Monumento Nacional Stonewall. Foto: Rhododendrites/ Wikimedia Commons

Na noite desse dia, no entanto, a polícia invadiu o bar, agrediu clientes e deteve 13 pessoas, incluindo funcionários que serviam álcool (o bar não tinha autorização para venda), drag queens e travestis. A acusação era de “violação do estatuto do vestuário”.

Mas houve reação. Indignada ao ver essas pessoas sendo levadas para viaturas, uma multidão começou a se juntar e arremessar objetos contra policiais, que tiveram de se trancar dentro do bar. Um dos manifestantes acabou ateando fogo ao Stonewall com os agentes dentro. O incêndio foi contido, mas o protesto continuaria nos dias seguintes, com manifestantes indo para a frente do Stonewall criticar a forma com que a polícia perseguia homossexuais e pessoas transvestidas e batalhar por seus direitos. Hoje em dia, 28 de junho é conhecido como Dia Internacional do Orgulho LGBTQ+.

*Esta reportagem se baseia no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do aluno Rafael Bittar em Jornalismo na FAAP. Orientado pela Prof. Nathalie Hornhardt, ele tem como produto o livro-reportagem ‘As diferentes relações da comunidade LGBTQ+ com a religião cristã’.

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