Cooperativa em Pinheiros luta pela cidadania de catadores de recicláveis

Fundada em 1989, Coopamare surgiu de associação de moradores de rua, emprega cerca de 200 pessoas e lida com série de pressões públicas enquanto batalha por valorização profissional de catadores

LabJor
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7 min readJun 13, 2024

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Davi Krasilchik

Localizada em Pinheiros, abaixo da Avenida Paulo VI, a Coopamare, como é popularmente conhecida a Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis, tem uma trajetória conectada ao reconhecimento profissional dos catadores de material reciclável. Com atuação concentrada na região, a cooperativa funciona num espaço cedido em 1989 pela Prefeitura de São Paulo.

Entrada da Coopamare, por onde entram e saem os materiais recicláveis. Foto: Davi Krasilchik

“A Coopamare nasceu de um grupo de moradores de rua e catadores da Baixada do Glicério nos anos 1980. Lá tinha uma feira e no final dela eles pegavam todos os restos e faziam uma sopa, embaixo do viaduto, para 400 moradores em situação de rua”, conta Eduardo Ferreira de Paula, o Dudu, de 58 anos, que recebeu o LabJor numa visita à Coopamare.

Representante histórico da organização, ele conta que a Organização de Auxílio Fraterno (OAF), outra instituição sem fins lucrativos, também teve um papel importante na história da Coopamare porque mantinha um centro comunitário onde os moradores podiam socializar e organizava uma festa conhecida como A Missão do Povo da Rua”, que facilitava o acesso à alimentação e motivou um grupo de catadores de papel a investir no seu crescimento.

“Os moradores queriam fazer uma festa mais participativa… Cada grupo se propôs a arrecadar dinheiro. O grupo que mais se destacou foi o dos catadores de papel. Com esse dinheiro deu pra fazer a festa e ainda sobrou, e o grupo gostou muito dessa prática. Por que não continuar?”

A arrecadação motivou os catadores a se articular cada vez mais. Em 1986, surgia a primeira associação de catadores, localizada na Baixada do Glicério, e três anos mais tarde a cooperativa em Pinheiros. Segundo Eduardo, esse movimento foi se tornando cada vez mais amplo, com o intuito de garantir a cidadania desses profissionais, combater estigmas enraizados pela sociedade e permitir aos trabalhadores melhorar suas condições de vida.

“O catador de papel e o morador de rua sempre foram vistos com um olhar negativo. A ideia foi mostrar o trabalho do catador e revelar como ele presta o bem… A dignidade nós já temos, o problema é (o estigma da) a sociedade”, afirma.

Com 35 anos de carreira, Eduardo destaca o alcance social e econômico dos serviços prestados pela cooperativa. “Catando e vendendo esse material, onde ele (o catador) gasta seu dinheiro? Na cidade. Então ele ajuda a economia da cidade… Ele pode tentar dormir num hotel, comprar um barraco, dormir numa pensão… E consegue gerar alguma melhoria para os catadores.”

Eduardo, o ‘Dudu, Catador’, apresenta a área de triagem da Coopamare. Foto: Davi Krasilchik

Atualmente, a Coopamare conta com 23 cooperados, mas Eduardo diz que entre 50 e 60 catadores autônomos, sem vínculos oficiais com a cooperativa, passam por ali diariamente. No total, são cerca de 200 trabalhadores. “Apesar de não assumirem o compromisso com a cooperativa, aqui eles tomam banho, tomam café da manhã, se sentem mais à vontade do que em um ferro velho”, explica.

A cada mês, a Coopamare distribui cerca de 96 toneladas de materiais recicláveis. A triagem seletiva acontece no fundo da cooperativa, onde ficam espalhadas algumas esteiras. Cada funcionário utiliza a estrutura da forma que prefere, separando os materiais por tamanho, tipo e cor, para facilitar seu envio às empresas de reciclagem. Seguindo pelo corredor do pátio, é possível encontrar a balança onde os materiais são pesados. Os caminhões de transporte se concentram na entrada, onde são auxiliados por uma empilhadeira que carrega os materiais que entram e saem.

As salas de gestão ficam próximas à zona de triagem, onde os organizadores se reúnem e é oferecido um café da manhã para os funcionários. Lá também acontecem reuniões estudantis como a Oficina Escola, em que grupos de estudantes são ensinados a coletar e produzir objetos artísticos feitos de papel artesanal.

Segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), as mulheres representam 70% dos cerca de 800 mil catadores em atividade no País. Entre elas está a presidente da Coopamare, Nilzete Romão dos Santos. Vinda da Bahia com três filhos pequenos, ela encontrou na reciclagem uma forma de sustentar sua família. “Muitos falam que é lixo, mas pra gente não é, pra gente é um meio de renda, que a gente leva pra casa. Se soubessem da importância que tem, eles não implicavam tanto com a gente”, diz Nilzete.

Uma das lideranças do MNCR, Eduardo também aponta a importância das políticas públicas no processo de formação e compreensão dos direitos e deveres dos catadores. Pré-candidato a vereador, ele já atuou junto à Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo, que em 2020 aprovou a criação de um comitê especial voltado a auxiliar os catadores.

“Nós decidimos nos organizar para conseguir sair de todo esse sistema de exploração. O catador estando organizado em cooperativas vai ter os seus direitos, seus deveres, vai conseguir realizar suas funções de forma mais prática e ter seu reconhecimento.”

Ele cita o governo de Luiza Erundina (1989–1992) como o primeiro a reconhecer os catadores como categoria profissional. Como prefeita, ela instituiu diferentes políticas públicas voltadas à população de rua, até então praticamente inexistentes. E criou o Dia da Luta da População de Rua, dia de passeatas voltado a dar maior visibilidade às causas do grupo e do qual a Coopamare se tornou um importante organizador.

Promulgada em 2010 durante o segundo governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003–2011), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305) busca trazer melhorias para os problemas ambientais e socioeconômicos gerados pelo manejo indevido de resíduos sólidos. Entre suas medidas, determina que o sistema de coleta seletiva priorize a participação de catadores. Eduardo descreve a Coopamare como um agente essencial para a formulação do projeto de lei.

Portão de entrada da Coopamare, com o caminhão utilizado no transporte de materiais. Foto: Davi Krasilchik

Segundo ele, o governo que sucedeu o de Erundina, de Paulo Maluf (1993–1996), procurou desmantelar as conquistas da população de rua e nos demais governos houve pequenos atritos. Em 2007, durante o mandato do prefeito Gilberto Kassab, foi assinado um termo com a Prefeitura que renovou oficialmente a concessão do terreno sob a Avenida Paulo VI. Nem por isso a cooperativa deixa de enfrentar dificuldades.

“Todas as contas daqui somos nós que pagamos. A única parceria que temos com a Prefeitura é em relação ao viaduto, que veio da época da prefeita Erundina, e nada mais”, afirma Eduardo. Os gastos são divididos entre os cooperados, mas dificilmente as contas fecham no final dos mês.

“Isso é a Coopamare: luta e resistência. Nós pagamos o caminhão, pagamos luz, pagamos telefone, tudo que você puder imaginar. Nunca tivemos investimento. Eles dizem que estamos em uma área de risco. Mas nós estamos aqui, sobrevivendo.”

Em junho de 2023, a prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) emitiu uma notificação de saída aos catadores da Coopamare, sob a alegação de que a cooperativa estaria trazendo risco de incêndio à região. Eduardo esclarece que nunca houve acidentes nos 35 anos de funcionamento da organização e os laudos de bombeiro permanecem em dia. À época, a MCNR conseguiu chegar a um acordo com o Poder Público, que se comprometeu com a regularização judicial do território.

A Coopamare é cercada por diversos prédios de alto padrão, e Eduardo relata uma tensão com os moradores vizinhos. No dia da visita, o LabJor testemunhou a revolta de uma mulher que atravessava a esquina da cooperativa. Ela se aproximou da reportagem e disse ser a favor da utilização de uma “força policial” para “mandar todos esses aí embora”.

Ao ser questionado pelo LabJor sobre a regularização do trabalho dos catadores, o gerente de saneamento básico da SP Regula, agência reguladora de serviços públicos, David Tegangno, afirmou que a principal dificuldade está relacionada ao “convencimento”.

Formado em Administração pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) e gerente de Controle e Movimento da Prefeitura de São Paulo desde 2002, David explicou que a função da sua secretaria é administrar desde a coleta dos materiais recicláveis até seu destino final e reforçou a dificuldade do sistema formal em acessar o trabalho exercido pelos catadores não registrados.

“É muito difícil de se fazer o convencimento desse pessoal, que está na situação dessa catação, de vir para um formato formalizado. A Secretaria do Verde, junto a outras secretarias, está nessa luta, de oferecer uma capacitação e um pagamento para essas figuras, mas exige todo esse processo.”

De acordo com o Atlas Brasileiro da Reciclagem 2023, desenvolvido pela Associação Nacional dos Aparistas de Papel (ANAP) e outros parceiros, a informalidade dos dados levantados sobre os catadores, no Brasil, não faz jus ao verdadeiro alcance da sua contribuição para a reciclagem e o meio urbano.

“O desafio de mensurar o impacto produtivo do trabalho informal em todo o setor da reciclagem permanece sem resposta. Ainda que raras, as pesquisas existentes apontam que a informalidade no setor da reciclagem é superior à média nacional calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).”

Coopamare
Endereço: Rua Galeno de Almeida, 659, Pinheiros, São Paulo (SP)
Horário de funcionamento: de segunda a domingo, 24 horas por dia

Formado em Cinema, Davi Krasilchik é aluno de Jornalismo da FAAP

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