‘De que vale mostrar nome e rosto de vítimas para o jornalismo?’

Jornalistas investigativos discutem importância da preservação do anonimato de quem sofre assédio e abuso sexual

LabJor
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4 min readAug 9, 2022

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Laysa Lottermann

Jornalistas que investigaram grandes casos de assédio sexual no Brasil se reuniram na FAAP em 5 de agosto, durante o 17º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, para discutir a importância do cuidado e da ética jornalística em apurações do tipo. Mediada pela jornalista e diretora-assistente na Universa UOL, Camila Brandalise, o encontro reuniu três jornalistas: Cristina Fibe, autora do livro João de Deus — O Abuso da Fé; Gabriela Moreira, repórter esportiva do Grupo Globo e integrante do conselho fiscal da Abraji; e João Batista Jr., repórter da revista Piauí.

A conversa começou com Cristina contando como descobriu o caso de João de Deus, médium curandeiro e criminoso sexual, condenado pelo estupro de centenas de mulheres. Na época Cristina trabalhava no jornal O Globo e viu o depoimento de uma bailarina holandesa, Zahira Mous, em um grupo de mulheres no Facebook. Ela denunciava um estupro que havia sofrido na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), onde João de Deus atuava como médium curandeiro e, nos comentários de seu post, outras mulheres começaram relatar situações semelhantes. Foi aí que Cristina viu que havia uma grande investigação a ser feita. De início, seis mulheres fizeram relatos parecidos— além de Zahira, as outras eram brasileiras de Estados distintos, que nunca haviam se visto, mas contavam a mesma história. Durante alguns meses de entrevistas e investigação, a jornalista descobriu centenas de crimes sexuais atribuídos a João de Deus.

Da esq. para dir., Gabriela Moreira, João Batista Jr., Cristina Fibe e Camila Brandalise. Foto: Laysa Lottermann

Os participantes destacaram que muitas vezes não há provas de materialidade do abuso sexual e ainda se pensa em vários locais que a palavra de uma mulher valerá menos que a de um homem, sobretudo se ele tiver influência. A função dos jornalistas será então a de buscar o máximo de entrevistas possíveis para confirmar determinado crime.

João Batista Jr. foi quem cobriu o caso do ator Marcius Melhem, acusado de assediar sexualmente companheiras de trabalho nos estúdios Globo, entre elas a humorista Dani Calabresa. Oito mulheres depuseram contra ele no Ministério Público, mas ele nega qualquer crime.

João destacou que nesses casos muitas vezes não há linearidade na história, pois envolve um trauma vivido pela vítima, contado nas palavras dela. Por isso, cuidado e sensibilidade ao entrevistar alguém que passou por uma situação dessas são essenciais. Além de descobrir se há provas ou algo concreto, como um boletim de ocorrência, por exemplo.

A jornalista Gabriela Moreira investigou e cobriu o caso do ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) Rogério Caboclo, que assediou moral e sexualmente sua secretária e ofereceu “alguns bons milhões de reais” por seu silêncio. A repórter conta que foram três meses de mensagens todos os dias sendo enviadas para a vítima até conseguir de fato uma entrevista completa. A secretária havia pedido licença médica da CBF e disse que só voltaria quando Caboclo não estivesse mais lá. Foi aí que Gabriela começou a investigar mais a fundo o que estava acontecendo e chegou a gravações do tipo: “Minha mulher se masturba, porque você não faz isso na minha frente para eu ver como você faz?”. A repórter contou que também teve acesso ao documento onde o ex-presidente oferecia R$ 12 milhões pelo silêncio da vítima e havia uma cláusula onde dizia que a mesma deveria contatar um certo jornalista e mentir sobre absolutamente todo o crime. “Isso é uma reagressão na vítima”, disse Gabriela.

Os profissionais também falaram no encontro da Abraji sobre a importância de focar sempre no agressor, não na vítima, pois é ele que merece destaque pelo crime cometido. E de não expor quem sofreu o abuso. “De que vale mostrar o nome e o rosto dessa mulher para o jornalismo?”, perguntou Cristina. “Algumas vítimas demoram meses ou até anos para entender que o que de fato aconteceu é um crime e o criminoso deve ser exposto e sofrer as devidas consequências. Por isso é tão importante preservar sua integridade moral desde o início da investigação.”

Laysa Lottermann é aluna de Jornalismo da FAAP

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