Economia criativa e trabalho colaborativo pautam SPFW + Regeneração
Projeto oferece mentorias a 48 núcleos criativos brasileiros e conecta criadores para produções coletivas
Barbara Marques
Não é a primeira vez que a São Paulo Fashion Week traz no lineup projetos que vão além da moda tradicional e da produção de roupas. Em 2017, por exemplo, foi lançado o Projeto Estufa, com palestras de temas como sustentabilidade, responsabilidade social, tecnologia, novos materiais, design e consumo. Neste ano, o destaque ficou por conta do SPFW +Regeneração.
Encabeçado por Graça Cabral, co-criadora da SPFW, e Marcello Dantas, curador em Arte e Tecnologia, o projeto selecionou em agosto 48 núcleos nacionais criativos para receber mentoria de profissionais de distintas especialidades, nas pautas de sustentabilidade, cuidado ambiental, patrimônios culturais de comunidades, diversidade e inclusão, protagonismo feminino, biomimetismo e biotecnologias.
Futurista e especialista em economia criativa, Lala Deheinzelin, e sua parceira no Fluxonomia 4D, Dina Cardoso, ajudaram a encabeçar o projeto. E também atuaram como mentoras, assim como o estilista Ronaldo Fraga, a chef Neka Menna Barreto, o diretor criativo da grife Osklen, Oskar Metsavahat, o neurocientista Sidarta Ribeiro, a filósofa Djamila Ribeiro, o mineiro Luiz Claudio Silva, diretor criativo da marca Apartamento 03, a estilista Fernanda Yamamoto e membros da Yuba, uma comunidade japonesa agrícola da cidade de Mirandópolis (SP).
Por dois meses e meio, os núcleos receberam acompanhamentos especializados e foram monitorados por meio de um app que lhes enviava desafios para que prosperassem como projetos. De 21 de setembro a 4 de novembro, foram realizados encontros com diferentes ensinamentos e objetivos e o resultado das mentorias foi exibido de 17 a 20 de novembro na 52ª edição da SPFW, no segundo andar do Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Parque do Ibirapuera.
De acordo com os organizadores, o mais importante do Regeneração foi a possibilidade de núcleos de diferentes regiões do Brasil trabalharem juntos. No decorrer de seis encontros, eles puderam dar “match” (combinarem) entre si, o que gerou resultados conjuntos, produzidos de maneira remota.
Lala contou ao LabJor FAAP que há 25 anos pesquisa, aplica e desenvolve mecanismos para combinar futuro e novas economias. Segundo ela, a fluxonomia, com a qual trabalha, está calcada no desejo e resulta da observação daquilo que é preciso para colaborar. Há, portanto, uma forte conexão com a moda, tendo em vista que a indústria tem um potencial de atração muito grande. Ela disse que, em seus 20 anos de parceria com a SPFW, a semana de moda tem agido sempre como agregadora e, por isso, atende ao que ela defende para um futuro desejável.
“A grande chave para o futuro está na convergência de fazer junto. É a única estratégia para dar conta de mudanças exponenciais que são frutos da vida em rede. Fazer junto parece simples, mas é extremamente complexo. São 25 anos pesquisando, aplicando e desenvolvendo mecanismos. A fluxonomia é o resultado de ver o que é preciso para colaborar. Ela combina futuro e novas economias. Combinamos muitas coisas juntas de todas as áreas possíveis, que só funcionam se trabalhadas em conjunto”, disse Lala Deheinzelin.
O SEGREDO DOS ‘MATCHES’
Especializada em tingimento natural e ecoprint, a criadora de Belém (PA) Ludimila Heringer foi uma das selecionadas pelo projeto SPFW + Regeneração. Ela contou ao LabJor FAAP que, durante o período de mentorias, conectou-se a sete outros projetos. Recebeu, por exemplo, uma estamparia botânica de Carolina Bortolini Atelier, do Rio Grande do Sul, adicionou a ela tingimento natural e, no Ceará, esta foi transformada, pelo coletivo Cariri Visceral, em vestido e peça de macramê.
Carolina Bortolini, por sua vez, conectou-se à ACG (Associação de Culturas Gerais), que, criada por Miriam Rocha e Bruna Neiva, trabalha na capacitação de pessoas atingidas por desastres, como deslizamentos. A associação proporcionou a Carolina atuar em colaboração com mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Mariana na criação de vestidos com bordados de linha, criados por ela e executados pelas mineiras.
“Demos match com 12 Estados”, contou Mirian Rocha, da ACG. “Nesse projeto, 220 famílias foram atingidas e trabalhamos 10 mil horas. De 49 núcleos, fizemos match com 22. Foram mais de 60 looks criados e mais de 66 artesãs envolvidas. Trabalhamos com pessoas abaixo do nível da pobreza para que tenham captação de renda. Hoje nossas bordadeiras trabalham com o (estilista) Ronaldo Fraga e já fizeram quatro desfiles com ele. Desse projeto, por exemplo, saiu a Manta Belorizontina, com a Fernanda (Bueno), e o vestido com a Carol Bertolini feito com mulheres atingidas diretamente pela lama.”
Fernanda Bueno é a diretora executiva do projeto Movimento MCM (Moda Contemporânea Mineira), um hub de promoção e rede colaborativa de profissionais da moda criado por Aldo Clecius. Sua iniciativa, que já funciona como ponte entre criativos desde 2017, conectou por exemplo a marca Valéria de Valéria, de Valéria Duarte, ao núcleo Bem Vestir, encabeçado por Augusto de Paula. Juntos, criaram roupas a partir de peças doadas para pessoas em situação de vulnerabilidade, inspiradas na percepção das pessoas de rua, cujo olhar sobre a sociedade é de baixo para cima.
“O processo colaborativo foi apaixonante. Quando comecei a ter contato com as marcas, encontrei três projetos. Um deles é o Bem Vestir . Na cidade de Conselheiro Pena (MG), montaram uma loja de projeto social em que as pessoas vão, tomam banho e recebem roupas gratuitamente. Lá elas se sentem dignas. É uma iniciativa conectada à prefeitura e a assistência social de lá me enviou cinco peças e eu transformei em outras, contando a história da cidade. Incorporei uma serra, que remete à uma mulher deitada, à roupa. Trouxe essa mulher horizontalmente para também colocar de pé essas pessoas marginalizadas que estão lá, sempre sentadas, sempre pedindo, sempre por baixo. Com as peças, elas olham de igual para igual”, contou Valéria.
O Movimento MCM também conectou Valéria Duarte a outro projeto: o Bocaiuva Moda Inclusiva. Criada nos pilares da sustentabilidade e da inclusão, a marca desenvolve peças de roupas que podem ser usadas também por deficientes físicos, mas que não são exclusivas para eles. Em conjunto com Valéria, desenvolveram peças texturizadas para cadeirantes e deficientes visuais.
“O Bocaiuva surgiu a partir da necessidade de disseminar a moda inclusiva. Embora sejamos marca também, o projeto tem como principal objetivo disseminar, dar cursos e palestras sobre moda inclusiva. Se eu crio uma moda que só a pessoa com deficiência pode usar, eu estou segregando, não incluindo. No início achávamos que o que a gente precisava era de recurso em dinheiro, mas, como a Lala sempre diz, o futuro é colaborativo. Depois das mentorias, todos os planos que a gente tem pro futuro incluem as outras marcas que conhecemos aqui”, disse Luane Saves, que criou o projeto em parceria com Eduardo Inacio Alves.
Já João Júnior, da LeModa (Liga Empreendedora de Moda), desenvolveu em modelagem 3D, em parceria com o Pipa Social, peças de outros núcleos: Fruto do Conde, Utopia 29, Breno Donato e Negrita.
“Durante as mentorias foi tudo maravilhoso e a gente criou o “matchzão” do Rio. Nós entendemos que podíamos juntar todos os projetos (escolhidos pelo Regeneração) do Estado do Rio de Janeiro e a partir daí cocriar além de moda ações em todo o Estado”, explicou João Junior. “A coleção autoral que a gente apresentou tem como inspiração o corpo e a alma do Rio. Queremos levar isso para os 92 municípios e compartilhar com eles o que recebemos e aprendemos no Regeneração. Juntos somos mais forte.”
Para Nathalia de Souza Silva, da Utopia 29, o Regeneração basicamente une o Brasil numa grande comunidade, com muito afeto e valor. “Minha iniciativa trabalha com upcycling e brechó de resíduos têxteis, ou seja, confecções de corte que iriam pro lixo. O mais incrível de tudo, além de estar na SPFW, é ter feito muitas conexões. É isso que move a gente.”
Um projeto que se conectou a muitos outros foi o Look Green, cocriado por Ana e Mateus Kantovic, em janeiro de 2021. O projeto consiste em uma plataforma de marketplace exclusiva para expor o trabalho de marcas sustentáveis.
“Foi um processo incrível. Estar aqui é inexplicável. Foi muito transformador. Crescemos muito como pessoas e como empresa. Nos conectamos aos 48 projetos e isso aqui virou uma irmandade. Na verdade, é um start, porque é um grupo que vai construir história de mãos dadas pela moda do Brasil”, disse Ana Kantovic sobre o Regeneração.
Uma de suas parcerias no projeto foi com a marca Splendor, dos irmãos Carlisson e Maria Clara Ramos Melo. Em Sergipe, eles desenvolvem acessórios, embalagem de cosméticos e eletrônicos em plástico em um projeto chamado RJoias. “Foi incrível. Estabelecemos uma rede de contatos, de parcerias, de troca. O Regeneração foi extremamente importante. Pensando em moda e sustentabilidade em Sergipe, a gente se sente um pouco isolado. Poder conhecer outras iniciativas no Brasil que pensam assim foi como tirar a gente do isolamento. Dá pra criar e pensar num futuro diferente juntos. Não estamos sozinhos”, afirmou Carlisson ao LabJor FAAP.
Os irmãos também deram match com a ACG, com quem criaram peças inspiradas no sertão utilizando materiais não convencionais, como escamas de peixe, e com o Labb4¹, laboratório de novos materiais, práticas e processos sustentáveis que foi um dos campeões de match do Regeneração e com quem desenvolveram acessórios em 3D.
A Da Tribu também contempla utilização de material não convencional. De Belém, Tainah Fagundes, criadora do projeto, trabalha com látex retirado de seringueiras por membros de comunidades ribeirinhas e transformado em fios e tecidos para produção de roupas e acessórios. “A mentoria foi importante para a gente reconhecer nossos saberes e não ter dúvida da coletividade e da potência da rede. É isso que a gente precisa para o mundo”, disse Tainah.
Embora não tenha feito parcerias com a Tez, um laboratório de moda colaborativa sustentável vinculado ao terreiro de Pesquisa Laroyê, Tainah fez um forte vínculo com sua diretora, Thalita Barbosa de Castro.
Esses vínculos são expostos pelos participantes como o mais importante do projeto, responsável por criar uma família que apenas se conheceu presencialmente durante a SPFW, já que o projeto se deu de maneira remota por dois meses e meio. Eles dizem também que este é apenas o início de muitas outras colaborações.
“Conseguimos resultados espantosos em dois meses e meio, com poucos recursos. E a gente trabalha exponencialmente. Isso aqui é só o começo, não o fim. A cada dia são gerados mais matches, mais conexões, mais trocas, mais fluxos. Isso vai continuar e nós temos alguns planos muito ambiciosos. Esperamos que haja uma continuidade de estudo numa escala maior. Assim como foram 100 participantes que já ampliaram suas redes, chegando a 300, os 300 podem virar mil, depois 10 mil, e assim vai. Nos aguardem, ano que vem vai ter muita novidade”, disse Lala Deheinzelin.
SERVIÇO
Durante a semana de moda, de 17 a 20 de novembro, todos os dias, às 14h, foram realizadas lives sobre o Projeto Regeneração. Elas estão disponíveis no YouTube oficial da SPFW:
Barbara Marques é aluna de Moda e repórter do LabJor FAAP