Estratégias do Cinema Novo para despistar a censura

Por Herbert Bianchi

LabJor
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8 min readNov 27, 2018

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RESUMO

Este artigo tem por objetivo observar as estratégias de três cineastas do Cinema Novo para despistar a censura durante a primeira fase do regime militar no Brasil. Para isso, serão analisados três filmes lançados em 1967: O caso dos irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, As proezas de Satanás na vila do Leva-e-Traz, de Paulo Gil Soares, e Terra em transe, de Glauber Rocha.

O golpe militar de 1964, ocorrido no Brasil, instaurou uma nova ordem. Liberdade passou a ser sinônimo de desobediência; opinião, de subversão. A censura foi institucionalizada e o novo regime designou censores para ver filmes, ouvir discos e visitar teatros. Se houvesse nas obras qualquer referência a “eleições diretas”, “movimento estudantil” ou “direitos humanos”, elas eram imediatamente proibidas e retiradas de circulação. A regra também valia para os jornais que, para denunciar o cerceamento, recorriam a expedientes inusitados, como publicar paisagens européias ou receitas de bolo nos espaços reservados às matérias censuradas. Nas artes, as estratégias foram diversas.

Considerado um dos mais profícuos e sofisticados compositores brasileiros de todos os tempos, Chico Buarque foi também um dos artistas mais perseguidos pela ditadura. Apesar disso, conseguiu passar pelo crivo da censura diversas canções, inclusive “Apesar de Você”, cuja letra era um descarado manifesto contra o regime militar. A música acabou sendo proibida algum tempo depois mas, diante disso, Chico foi criativo. Proibido de cantá-la, tocava apenas a versão instrumental da canção em seus shows, deixando que a plateia cantasse toda a letra. E alguém já ouviu falar em Julinho da Adelaide? Cantor e compositor brasileiro? Julinho da Adelaide surgiu quando Chico Buarque passou a ser muito conhecido entre os censores do regime militar, na década de 70, e suas músicas eram proibidas somente porque levavam sua assinatura. A saída para burlar a censura dessa vez foi a criação de um heterônimo. As canções “Acorda amor”, “Jorge maravilha” e “Milagre brasileiro” passaram pela censura sem maiores problemas e Julinho da Adelaide chegou até a dar uma entrevista para o jornal “Última Hora” sobre sua carreira em ascensão. Zuenir Ventura lembra sobre Chico Buarque (1976):

“ele não é apenas um extraordinário artista popular. É o mais significativo gesto cultural deixado pela geração que por volta de 1964 tinha 20 anos e começava a aparecer. De todos eles, compositores e cantores, Chico foi quem melhor soube aproveitar as dificuldades e desafios de uma época para instaurar uma estética, elaborar uma estilística e forjar uma estratégia própria para, com elas, construir uma obra que, pela qualidade e pela quantidade, dificilmente encontra paralelo mesmo nas outras artes do país.”

No cinema brasileiro, as respostas à privação de liberdade emergiram através de estratégias de alguns cineastas que fizeram parte de um movimento que ficou conhecido como “Cinema Novo” que, segundo Ismail Xavier (2006), era

a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. (…) Com a perspectiva autoral, houve espaço para a expressão pessoal e a invenção de soluções que, embora problema para a comunicação mais imediata, conferiram aos filmes uma densidade poética e uma dimensão de ambiguidade, interrogação, responsável por sua maior consistência.

Nesse sentido, vamos observar três produções brasileiras lançadas em 1967 que de alguma maneira voltaram as suas forças criativas contra o regime militar. O primeiro filme a ser observado é O caso dos irmãos Naves, segundo longa metragem do diretor paulista Luiz Sergio Person, cujo roteiro, escrito em parceria com Jean-Claude Bernardet, foi baseado no caso verídico de um processo criminal envolvendo os irmãos Joaquim e Sebastião Naves (interpretados por Raul Cortez e Juca de Oliveira), durante a década de 1930 na cidade de Araguari, interior de Minas Gerais. As fontes de pesquisa levantadas para a escrita do roteiro incluem as atas do processo, publicadas pelo advogado de defesa, João Alamy Filho (John Herbert) e notícias de jornais da imprensa paulista e mineira. A história ficou conhecida com um dos maiores erros judiciários brasileiros. Acusados de terem matado seu primo Benedito, que havia fugido com uma grande soma de dinheiro, os irmãos Naves são presos e torturados pela polícia até confessarem o crime que, anos mais tarde, descobre-se nunca ter ocorrido. Um aviso no início do filme situa o espectador de que os fatos narrados são baseados nos escritos do advogado dos irmãos e informam a data do suposto crime: 29 de novembro de 1937. Em tom jornalístico, a história se desenvolve como uma espécie de reportagem em que se intercalam as falas de um narrador externo com as dos personagens envolvidos na trama.

Cena do filme “O caso dos irmãos Naves” (1967), de Luis Sergio Person

O filme passa então a apresentar longas e incômodas cenas de tortura. A opção de não apenas mostrar essas cenas, mas estendê-las o máximo possível, pode ser apontada como uma evidente crítica de Person ao regime autoritário recém instaurado no Brasil. Ao fazer um paralelo da ditadura de Vargas, ocorrida três décadas antes, com o momento político vivido no Brasil em 1967, o cineasta exibia no cinema cenas de uma realidade que se repetia. Nas palavras de Bernardet (2008), “as relações com o nosso presente social e político eram evidentes: a polícia tinha inventado uma falsa realidade pela tortura”. Convém lembrar que à despeito do tom crítico, O caso dos irmãos Naves passou pelo “pente fino” da censura e se firmou na história do cinema brasileiro como uma obra importante por sua acuidade narrativa e posicionamento político.

O segundo filme a ser observado é Proêzas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz, primeiro longa metragem do jornalista e diretor baiano Paulo Gil Soares, que foi o diretor de arte em Terra em Transe (1967), e assinou o roteiro de Deus e o diabo na terra do sol (1964), em coautoria com Glauber Rocha, além de ter sido seu assistente de direção nesse último. De longe, o menos conhecido dos três filmes analisados aqui, mas não menos importante. Na chave do humor, o filme apresenta a história de um vilarejo dominado pela figura de um forasteiro que realiza milagres e promove o progresso da região. A narrativa começa com a descoberta de um poço de petróleo numa cidade vizinha que atrai os moradores da pequena “Leva-e-Traz”. Até mesmo o padre abandona a igreja do vilarejo em busca de riqueza, deixando para trás apenas os inválidos da cidade. Daí em diante, inesperados incidentes anunciam a chegada de Satanás, encarnado por um tipo galanteador (Emmanuel Cavalcanti) que provoca enormes mudanças no local. Assumindo as funções de líder religioso e político, Satanás promove a cura dos doentes e o desenvolvimento da agricultura regional, causando fervor entre os devotos moradores. Em seu discurso, promete (ironicamente) vida eterna a todos e que o trabalho finalmente será extinto. Ao final do filme, entretanto, em meio a uma procissão, a magia se desfaz, Satanás volta a ser um bode velho e a pobreza retorna ao vilarejo.

Cena de “As Proêzas de Satanás na Vila de Leva-e-Traz” (1967), de Paulo Gil Soares

O filme, que poderia muito bem não passar de uma alegoria em clima de teatro mambembe, revela-se uma perspicaz obra política de tom jocoso que propõe uma boa reflexão sobre o momento do Brasil à época. Permeada por belas canções de Caetano Veloso, o longa discute as formas de consciência popular na adversidade e, ao focalizar as práticas religiosas, traço forte da cultura brasileira, critica o processo de modernização vivenciado pelo país de uma forma cômica e pouco convencional. Como resultado, levou os prêmios de Melhor Filme, Melhor Argumento e Melhor Música no Festival de Brasília de 1967 e chamou a atenção da crítica sobretudo por seu teor simbólico, destacando a relação da figura do diabo com a ideia de desenvolvimento econômico ao mesmo tempo em que criticava a falta de planejamento do poder político em plena ditadura militar.

Por fim, tratemos de Terra em transe (1967), terceiro longa metragem do cineasta baiano Glauber Rocha, cujo roteiro, escrito pelo próprio diretor, acompanha a agonia do jornalista e poeta Paulo Martins (Jardel Filho) que oscila entre diversas forças políticas que lutam pelo poder no fictício país de Eldorado: Diaz, um líder de direita e político de tradição, Vieira, governador da Província de Alecrim, líder populista e demagogo, e Fuentes, poderoso empresário que detém um império de comunicação (interpretados respectivamente por Paulo Autran, José Lewgoy e Paulo Gracindo). Numa conversa com a militante Sara (Glauce Rocha), Paulo conclui que o povo de Eldorado precisa de um líder e que Vieira possui os atributos para tal. A terra de Eldorado encontra-se entre o golpe de estado e o populismo, entre a crise e a transformação e Paulo, dividido entre a poesia e a política, agoniza sem conseguir solucionar as incoerências do país e as suas próprias contradições. Nesse filme, como lembra Ismail Xavier (2012), Glauber constrói uma “alegoria horizontal que condensa a sucessão dos fatos e faz de Eldorado a representação da cena brasileira, hierarquizando agentes, espaços, ações para figurar um acontecimento: o golpe de 64. Terra em Transe chegou a ser proibido durante algumas semanas nos cinemas brasileiros mas depois foi liberado, talvez pela dificuldade de compreensão por parte dos censores de sua mensagem, em plena e potente articulação entre política e estética. Detentor de uma narrativa intrincada que buscou apresentar na forma o fluxo febril de pensamentos de um personagem em agonia, Terra em Transe nunca foi um filme fácil. Como o próprio Glauber explica em uma carta a Bernardet (1997), em que afirma que o filme é uma “ruptura consciente, parto a fórceps, aborto monstro, qualquer coisa que pudesse ser desastrosamente polêmica, em vários níveis, do político ao estético, Terra é a minha visão, é o pânico da minha visão”.

Os artigos sobre Terra em transe multiplicam-se na imprensa brasileira e o filme logo é reconhecido internacionalmente, sendo premiado no Festival de Cannes com o importante prêmio da Federação da Crítica Internacional (Fipresci). Como lembra Ismail Xavier (2001), “o filme de Glauber foi um autêntico choque, principalmente para artistas e intelectuais de esquerda. A sua crítica ao populismo como mascarada pseudodemocrática, como carnaval; sua representação dos conflitos políticos, que inclui a conspiração da direita e o projeto da esquerda no mesmo transe dos místicos; sua figuração kitsch de espaços e personagens simbólicos que representam uma identidade nacional dada a excessos e histerias; (…) todo este painel exibido em uma avalanche que ultrapassava o espectador mais atento foi um espelho doloroso, rejeitável, polêmico até onde um filme pode ser.

Cena do filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha

Podemos concluir que, utilizando estratégias diferentes, esses três cineastas são exemplos do posicionamento político vinculado a uma estética em uma época perigosa, sobretudo para aqueles que não se omitiram. Mas a omissão e a negligência, sabemos bem, nunca fizeram bons filmes.

Herbert Bianchi, 38, é dramaturgo, diretor de teatro
e aluno de Cinema na FAAP.

Referências bibliográficas:

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

_________________. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

_________________. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro: metodologia e pedagogia. São Paulo: Annablume, 2008.

VENTURA, Zuenir. Meus caros amigos. Release. Polygram, 1976.

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