Filmes com temática LGBTI+ voltam a marcar presença na Mostra

Confira abaixo detalhes sobre os 12 longas que compõem a seleção sobre o assunto do festival deste ano

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Giulia Nascimento

A 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo trouxe 12 filmes com temática ou personagens LGBTI+, mesmo número do ano passado. Um dos destaques é o longa Madalena, de Madiano Marcheti (Brasil, 2018), que conta a história de uma mulher trans por meio de sua ausência. O filme acompanha os desdobramentos do desaparecimento de Madalena em três episódios. No primeiro, uma menina da cidade percebe que Madalena sumiu, mas não faz nada a respeito. No segundo, um homem encontra o corpo de Madalena, mas se preocupa mais com o fato de ele estar em sua terra e isso impactar a campanha política da mãe do que com a vida perdida. No terceiro, amigas em luto dividem as coisas de Madalena.

Imagem do filme ‘Madalena’. Foto: Divulgação

Madiano contou ao Labjor FAAP que falar de Madalena sem que ela aparecesse no filme foi uma escolha arriscada e ele via apenas duas opções para tratar dessa história: trabalhar como um thriller, como um filme de investigação sobre quem matou e como matou, mostrando um pouco do passado dela e de como era, ou tratar disso pela ausência da personagem. “Esta outra opção me parecia mais interessante, por isso optei por ela. Acho que acaba sendo um reflexo de como nossa sociedade trata e coloca as pessoas trans em um lugar determinado, num lugar de exclusão e de marginalidade. E aí é uma luta para sair, para resistir a esse lugar”, disse. “Entendo que foi uma opção arriscada, mas eu acho que foi a opção acertada de estrutura pro filme. E eu estou orgulhoso dessa opção.”

Segundo dados da Transgender Europe (TGEU), 2.609 pessoas trans foram assassinadas entre 2008 e 2017 nos países em que a pesquisa foi conduzida, sendo que 1.071 foram assassinadas no Brasil, o que coloca o país como o que mais mata pessoas trans no mundo.

“Diante de todas essas violências, não me parecia muito justo com a personagem eu ficar em uma investigação em busca desse criminoso. Por isso da escolha de tratar a partir dessa personagem morta e ausente no filme. E de o filme não buscar uma investigação de quem matou e como matou. Muito mais entender as reverberações, as reações de alguns personagens em relação a essa ausência”, disse Madiano.

Madalena se passa no Centro-Oeste do Brasil, mais especificamente no Mato Grosso, Estado de onde o diretor veio. Retratando os conservadores da região, o filme busca, segundo Madiano, trazer um exercício para o espectador de empatizar, imaginando a vida de uma pessoa trans por meio das pessoas da cidade em que o filme se passa.

Além de focar a temática trans, que Madiano disse acreditar ser o assunto mais urgente entre as pautas LGBTI+ no momento, o filme empregou pessoas trans no elenco e na equipe.

Versando sobre o T da sigla LGBTI+, há ainda outro filme em destaque na 45ª Mostra: Deserto Particular (Brasil, 2021), de Aly Muritiba, que representará o Brasil na disputa por uma vaga na competição internacional do Oscar 2022.

O filme conta a história de Daniel, que viaja do Sul do Brasil para o Nordeste em busca de uma mulher que conheceu pela internet. Ele chega na pequena Nordestina, mas não consegue encontrar Sara, que já não respondia havia dias às suas mensagens. Decide então espalhar cidade cartazes com uma foto dela pela cidade pedindo informações.

Imagem do filme ‘Deserto Particular’. Foto: Divulgação

Quando Sara finalmente entra em contato, os dois se encontram e Daniel descobre que ela é uma travesti. O que faz com que ele entre em conflito com os próprios sentimentos e valores. Com uma narrativa clássica, construída de forma delicada, o filme traz o tema da identidade de gênero para o grande público.

Outro filme com temática trans na Mostra é o documentário brasileiro Transversais (Brasil, 2019), de Émerson Maranhão. Por uma série de entrevistas, o público fica sabendo dos desafios e das histórias de cinco pessoas trans. Com destaque para uma adolescente, cuja vida é contada pelos pais, que revelam também como ter uma filha trans num país com altos níveis de violência contra pessoas como ela.

Além de entrevistas, o documentário usa imagens de arquivo para que o público se aproxime da vida, dos medos e dos sonhos dessas pessoas. Além das situações de preconceito que vivem.

Imagem do filme ‘Transversais’. Foto: Divulgação

Para o diretor de Madalena, é importante representar os trans como pessoas reais, não estereotipadas. Ele lembra que historicamente elas vêm sendo apresentadas de duas maneiras: pela via da chacota, da piada — nos anos 1990, por exemplo, a televisão era recheada de personagens trans cumprindo o papel de bobo da corte — ou no noticiário de violência — na TV, nos jornais, como vítimas de assassinatos. “São essas duas representações que a gente tem de um modo geral e no cinema não é super diferente. Historicamente, as pessoas trans acabaram sendo representadas muito ligadas à noite, à marginalidade, à violência, mas isso tem mudado e tem mudado de uma forma muito bonita”, afirmou Madiano. “Acho que tem um movimento muito lindo no Brasil de buscar representar personagens trans com ação, no cotidiano, no dia, trabalhando com outras atividade, que não somente profissões do sexo, e falando de sonhos, sabe, de alegria.”

Ele lembrou que, mais importante até do que produzir filmes com essa temática e superar as dificuldades da falta de estrutura e de apoio ao cinema no Brasil é que eles sejam feitos com pessoas trans e protagonizados por pessoas trans. “Espero que isso (aumento das produções com temática LGBTI+) continue mesmo diante desse cenário. E que a gente não desista desse movimento, porque é bonito e necessário.”

Imagem do filme ‘Na Prisão Evin’. Foto: Divulgação

Na seleção de filmes estrangeiros da Mostra, o iraniano Na Prisão Evin, de Mehdi Torab-Beig e Mohammed Torab-Beig (Irã, 2021), conta a história de uma jovem transexual que busca um homem rico para tentar financiar sua cirurgia de transição, mas, em troca dela, acaba tendo de ocupar o lugar de uma menina na prisão. Toda a história é contada sob a perspectiva desta jovem transexual.

Para além da temática trans, a Mostra deste ano trouxe também dois filmes com personagens sáficas, isto é, mulheres que sentem atração por outras mulheres, podendo ser bissexuais ou lésbicas, por exemplo. Um deles é Tove, de Zaida Bergroth (Finlândia, 2020), que conta a história da artista que dá nome ao filme, criadora dos personagens infantis Moomins. O filme narra como ela começou a criá-los por necessidade, já que não conseguia viver da venda de seus quadros.

Imagem do filme ‘Tove’. Foto: Divulgação

Em entrevista ao Labjor FAAP, Eeva Putro, roteirista de Tove, disse achar “crucial” retratar personagens LGBTI+ históricos porque a discriminação ainda existe. “Até mesmo na Finlândia, em Helsinki, um dos lugares mais avançados no mundo, onde eu cresci, ainda existe. Então é essencial trazer histórias sobre grandes mentes que se recusam a esconder que possuem uma sexualidade diferente, o que é algo que nem todos querem celebrar. Filmes assim ajudam as pessoas a ampliar suas visões de mundo. Você não pode fechar os olhos para o fato de que Tove Jansson foi lésbica ou bissexual.”

Tove retrata, de certo modo, a busca da artista pela própria identidade sexual. Eeva disse não concordar que o filme mostre Tove necessariamente como bissexual. “Muitas lésbicas passam muito tempo de suas vidas na fase de busca (por sua sexualidade). Tove disse em suas últimas cartas que concluiu que não conseguiria voltar para o ‘lado certo do Sena’, ou que teria se mudado para o ‘mundo dos fantasmas’ de vez. São eufemismos para ser homossexual. Mas, no filme, Tove ainda está procurando sua identidade e possivelmente se chamaria bissexual, se esse termo existisse já naquele tempo.”

Eeva revelou que quis contar essa história por “algo a ver com seus conflitos internos”. “Eu precisava da imagem de uma mulher corajosa e petite, que vive puramente de seu trabalho e arte, que não se arrepende de ser apaixonada e que sempre tem algo da inocência de uma criança em seus trabalhos. Seu intenso amor por Vivica, a outra artista, também me tocou e me lembrou de uma história de amor que vivenciei, que foi dolorosa, mas forte.”

Além de Tove, a Mostra também trouxe Camila Sairá Esta Noite, de Inés María Barrionuevo (Argentina, 2021), que conta a história de uma adolescente bissexual chamada Camila.

Imagem do filme ‘Camila Sairá Esta Noite’. Foto: Divulgação

O filme começa com a mudança de Camila e sua família para Buenos Aires, onde ela passa a frequentar uma escola conservadora a ponto de não poder usar um laço verde — símbolo do feminismo e da campanha pró- aborto legal na Argentina — pendurado em sua mochila.

No decorrer da trama, ela inicialmente se aproxima de um menino de sua escola e depois de uma de suas colegas, por quem desenvolve sentimentos. Perto do final, o ex da menina por quem Camila se apaixonou tenta assediar a protagonista e a escola não pune o assediador. A trama acaba então com um protesto dos estudantes, em que soltam fumaça verde no pátio no meio de uma apresentação para pais, as meninas tiram blusa e sutiã e gritam “meu corpo, minhas regas”. Mais do que uma representatividade bissexual, o filme reflete a luta feminina por direitos na Argentina.

Um dos destaques da 45ª Mostra, A Crônica Francesa (EUA, 2021), de Wes Anderson, conta a história de quatro matérias de uma mesma revista, escritas por quatro jornalistas diferentes, incluindo um homem gay que chegou a ser preso por causa da sexualidade.

A Mostra deste ano contou também com dois documentários sobre homens homossexuais ou de sexualidade diversa: Fédro, de Marcelo Sebá (Brasil, 2021), e Truman & Tennessee: Uma Conversa Pessoal, de Lisa Immordino Vreeland (EUA, 2020).

O longa Fédro mostra uma conversa entre o ator Reynaldo Gianecchini e o diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, sobre teatro, Brasil, amor e a própria vida. Em entrevista à Agência EFE, Gianecchini disse se considerar “tudo ao mesmo tempo. Se existir uma palavra para mim, então é pan”, afirmou ele, que atuou em peças como Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, e Doce Deleite, de Alcione Araújo. Já o líder do Teatro Oficina, mais conhecido como Zé Celso, afirmou à revista Trip que a sexualidade é um grande mistério. “O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Não acredito na identidade, mas na mistura.”

Imagem do filme ‘Truman & Tennessee: Uma Conversa Pessoal’. À dir. o dramaturgo Tennessee Williams; à esq. o escritor Truman Capote. Foto: Divulgação

Já o filme Truman & Tennessee: Uma Conversa Pessoal reúne imagens de arquivo e narrações de textos do escritor americano Truman Capote (1924–1984), autor de Bonequinha de Luxo e A Sangue Frio, e do dramaturgo também americano Tennessee Williams (1911–1983), responsável por peças como Um Bonde Chamado Desejo e Gata em Teto de Zinco Quente. O modo como o documentário é montado faz parecer que os dois estão conversando, numa estratégia documental pouco usual, que leva o público a conhecer mais sobre esses autores integrantes da comunidade LGBTI+.

SERVIÇO

Podem ser conferidos por meio da Mostra Play até domingo (07/11) ‘Madalena’, ‘Na Prisão Evin’, ‘Transversais’ e ‘Camila Sairá Esta Noite’;

‘A Crônica Francesa’ entra em circuito comercial em 18/11 e poderá ser assistido em salas de cinema pelo Brasil. Já ‘Deserto Particular’ entra em cartaz em 25/11;

‘Madalena’ fica em cartaz no Festival Mix Brasil como parte da mostra Competitiva Brasil. O festival ocorrerá entre os dias 10/11 e 21/11

Giulia Nascimento é aluna do sétimo semestre de Cinema da FAAP e da especialização em Roteiro da UCLA Extension

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