Mostra homenageia diretor Paulo Rocha com retrospectiva

Sete dos 12 filmes do cineasta português e um documentário sobre sua carreira são exibidos no festival

LabJor
LabJor

--

Marcelo Morganti

A 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo realizou uma retrospectiva celebrando o português Paulo Rocha (1935–2012), um dos principais diretores do cinema lusitano. Organizada com a Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema, a programação reuniu sete dos 12 longas-metragens do cineasta: Os Verdes Anos (Portugal, 1963); Mudar de Vida (Portugal, 1966); A Ilha dos Amores (Portugal, 1982); A Ilha de Moraes (Portugal, 1984); Máscara de Aço contra Abismo Azul (Portugal, 1988); O Rio de Ouro (Portugal, França, Brasil, 1998) e Se Eu Fosse Ladrão… Roubava (Portugal, 2012).

O cineasta Paulo Rocha. Foto: Divulgação

Também fez parte do festival o documentário A Távola de Rocha (Portugal, 2021), dirigido por Samuel Barbosa, assistente de Paulo desde 2001 e que trabalhou em seus dois últimos filmes. Aos 40 anos, ele contou ao LabJor FAAP que fez o documentário não só para homenagear Paulo como por ver que seu legado “não está a ser bem apreciado até os dias de hoje, mesmo em Portugal”.

Estreando na direção com o documentário, Samuel disse que Paulo Rocha o ajudou a entender um cinema diferente. “Ele me ajudou a abrir horizontes e a pensar o cinema como uma forma de matéria de imagem em movimento com som, mais do que por vezes ter a preocupação narrativa de narrar uma história, experimentar a plástica tanto visual como sonora, como uma matéria de expressão e comunicação”, explicou.

O documentarista Samuel Barbosa. Foto: Divulgação

A amizade e forma de ser de Paulo ajudaram no resultado. “Ele não criava essa barreira com o resto da equipe técnica ou da equipe artística e isso era parte do seu processo”, disse. “O Paulo não sentia que precisava ser o mais importante do seu filme.”

“Ao contrário de alguns realizadores que estão sempre muito seguros de si e têm uma ideia às vezes mecânica do que pode acontecer, ele gostava de ser surpreendido pelo inesperado. Considerava sempre que podia ter uma ideia, uma visão, mas, se alguém trouxesse uma ideia que ele achasse mais válida, mais interessante que a dele, ele a aceitaria.”

UM GRANDE DIRETOR, AINDA A SER DESCOBERTO

Nascido em 1935 na cidede do Porto, Paulo Rocha estudou Direito antes de decidir trabalhar com cinema, paixão muito influenciada por filmes japoneses. Em 1959, começou a estudar Cinema e no começo da década de 1960 trabalhou como assistente de importantes diretores, como o francês Jean Renoir (1894–1979) e seu conterrâneo Manoel de Oliveira (1908–2015).

Cena de ‘Os Verdes Anos’. Foto: Divulgação

Em 1963, estreou na direção com Os Verdes Anos, obra essencial do cinema português que conta a história do romance do sapateiro Júlio com a empregada Ilda. O filme é considerado um dos primeiros do Cinema Novo português, movimento de vanguarda próximo de outros da época, como a Nouvelle Vague na França e o Cinema Novo brasileiro. O longa seguinte, Mudar de Vida, também fazia parte desse movimento. Com o ator brasileiro Geraldo del Rey no papel principal, focava na vida dos pescadores portugueses. “O Paulo tinha visto a figura dele (Geraldo) quase heroica no sertão e queria trazer aquele personagem mítico para os pescadores e heróis do Furadouro, sua terra”, contou Samuel.

Geraldo del Rey em ‘Mudar de Vida’. Foto: Divulgação

Esses dois são até hoje os filmes mais conhecidos do cineasta, mas acabaram por encobrir o resto de sua carreira. “Em Portugal há um vício de apreciação onde os dois primeiros filmes são sempre mencionados e é como se ele não tivesse filmado mais depois disso”, disse Samuel. “Na verdade, no meu entendimento, penso que o Paulo naquele país esteve sempre à frente do seu tempo.”

Para Samuel, isso ocorre não só pelo papel de Paulo Rocha no Cinema Novo português, mas também pelos outros filmes que o diretor realizou nos anos seguintes. Durante a década de 1970, ele dirigiu apenas dois curtas-metragens — não apresentados na Mostra — e passou a viver no Japão, planejando seu filme mais ambicioso: uma biografia do escritor português radicado no Japão Wenceslau de Moraes (1854–1929). Esse projeto demorou mais de dez anos para ser completado, pelas dificuldades de financiamento e também pelo estudo profundo da vida japonesa que Paulo iniciou. “Ele dizia sempre que, para estar preparado para fazer esse filme, precisou viver no Japão, aprender a falar japonês, perceber e abraçar aquela cultura, porque era um filme que precisava dessa compreensão.”

O resultado foi A Ilha dos Amores, um épico de quase três horas de duração e o filme mais experimental e vanguardista de Paulo Rocha. “Ali, o que o Paulo pretendia era se mostrar como o realizador das vanguardas, porque até então a imprensa ou os críticos o consideravam o introdutor do Cinema Novo português, mas esse não era o objetivo dele. Ele pretendia ser o realizador das vanguardas e das artes modernas e contemporâneas.”

Cena de ‘A Ilha dos Amores’. Foto: Divulgação

Nesse longa, Paulo buscou fazer um filme que fugisse do convencional, tanto na narrativa — dividida em nove cantos, uma influência de Os Lusíadas de Camões — quanto no modo de filmar. “O que ele faz em A Ilha dos Amores é primeiro recusar o campo-contracampo como forma — que ele considerava uma maneira muito preguiçosa de filmar — , depois trabalhar os planos-sequência, que eram em grande parte influenciados pela técnica de Kenji Mizoguchi (1898–1956), e que esses planos-sequências fossem composições criadas em profundidade, onde o que está em último plano é tão ou mais importante do que aquilo que está em primeiro plano, onde a experiência é parte da narrativa”, explicou Samuel.

A Ilha dos Amores foi terminado em 1982 e participou da disputa do Festival de Cannes daquele ano. Mas só estreou em Portugal na década seguinte, mostrando um problema recorrente em sua carreira: a dificuldade em realizar os filmes e fazer com que fossem assistidos.

Cenas de ‘A Ilha dos Amores’. Foto: Divulgação

A obsessão por Wenceslau de Moraes gerou também o documentário A Ilha de Moraes, em que o cineasta retrata a vida do escritor no Japão a partir de seus textos, imagens e depoimentos de quem o conheceu. Anos depois, ele dirigiu Máscara de Aço contra Abismo Azul, que também trata de um artista português, o pintor modernista Amadeo de Souza-Cardoso (1887–1918), outra biografia bastante experimental em sua forma de contar a história.

Cena de “Máscara de Aço Contra Abismo Azul”. Foto: Divulgação

Paulo Rocha realizou mais alguns filmes a partir dos anos 1990, incluindo dois que estiveram presentes na Mostra: O Rio de Ouro e Se Eu Fosse Ladrão… Roubava. Com Lima Duarte no elenco, o primeiro é um filme fantasioso sobre a vida de moradores da beira de um rio com suas superstições e mitos. Já Se Eu Fosse Ladrão… Roubava foi o último filme do diretor. Feito com Paulo já doente, conta a história de seu pai e intercala cenas da vinda de seu pai ao Brasil com imagens e trechos dos próprios filmes do cineasta, que de certa forma comentam a história do pai.

“O último filme dele é sobre a história de vida do pai, que foi brasileiro de torna-viagem (português que vai viver no Brasil e retorna ao país natal). Esses elementos que Paulo queria retratar no filme dele eram uma história particular da vida dele, mas são a história de tantas outras pessoas daquela época e agora da história desses países”, disse. “É como se o Paulo estivesse sempre a se preparar para fazer um último filme em que o herói fosse o pai dele.”

Cena de ‘Se Eu Fosse Ladrão… Roubava’. Foto: Divulgação

LIGAÇÕES COM O BRASIL

Paulo Rocha tinha conexões com o Brasil. Além da vinda de seu pai para o País, também há a escalação de atores brasileiros em seus filmes: Geraldo del Rey em Mudar de Vida e Lima Duarte em O Rio de Ouro. A escolha por Del Rey ocorreu pela ligação de Paulo com o diretor brasileiro Glauber Rocha (1939–1981).

“O Geraldo del Rey advém do conhecimento, da amizade que ele travou com o Glauber Rocha no Festival de Acapulco, quando o Glauber vai apresentar Deus e o Diabo na Terra do Sol (Brasil, 1964) e o Paulo, Os Verdes Anos”, contou Samuel. “Há uma história engraçada: como tinham os dois o mesmo apelido (sobrenome), o hotel fez uma reserva dos Rochas para o mesmo quarto. Eles então dormiram nesse festival no mesmo quarto e desse modo se conheceram.”

Com a retrospectiva da Mostra Internacional de Cinema, o Brasil pode ser então um dos primeiros países a redescobrir Paulo Rocha. Essa era uma das esperanças de Samuel ao realizar o documentário. “Um dos objetivos era provocar uma visita ou revisita aos filmes do Paulo e a Mostra é o primeiro reflexo disso. Portanto, desse ponto de vista, deixa-me bastante contente pensar que o documentário não só me serve, mas também pode servir de alguma forma à obra do Paulo.”

Marcelo Morganti é aluno de Cinema da FAAP

--

--

LabJor
LabJor
Editor for

Um laboratório de informação: Descobrimos e contamos histórias que dão sentido ao presente.