Mulheres conquistam espaço no batuque da umbanda e ressignificam tradições

Cargo tradicionalmente masculino na religião de matriz africana agora é exercido também por frequentadoras como Christiane Nascimento e Sheila de Paula

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6 min readNov 19, 2021

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Carolina Menezes

Dentro da umbanda, o corpo é uma ponte multidimensional. É a beleza da lembrança do passado, da capacidade de sentir e expressar no presente e da visão de futuro que se expande a cada cruzamento de saberes — tanto nas incorporações dos espíritos contíguos ancestrais, quanto no entoar dos pontos cantados, que são as músicas dedicadas aos orixás que sustentam a energia das giras (nome dos rituais da religião).

O cargo de Ogã, aquele que toca o atabaque — instrumento tradicional afro-brasileiro das giras de umbanda — , é notadamente masculino devido à energia envolvida para o toque e ao formato fálico do instrumento, segundo a musicista Christiane Nascimento, de 35 anos. Chrisinha, como prefere ser chamada, teve o primeiro contato com um terreiro por causa da mãe, que era mãe de santo. Mas sua entrada definitiva foi, literalmente, pelo som do atabaque. “Eu ouvi e pensei: ‘Esse som não me é estranho… É uma coisa, é um som conhecido. Entrei no terreiro, fiquei ali, e continuei indo sempre”, contou.

Chrisinha, em uma gira, tocando o atabaque. Fotos: Acervo pessoal

Chrisinha toca timbal no Maracatu de Recife, na escola de samba paulistana Barroca Zona Sul e no atabaque da Casa de Irradiações Espirituais São Lázaro, onde também conduz as giras quando não está trabalhando na corrente de médiuns. Seu toque é poderoso e seu espaço no atabaque é uma conquista valiosa para ela, resultado de anos de persistência.

A maioria das tradições da umbanda vem de sociedades matriarcais africanas, como dos povos iorubá e luba, por exemplo. São culturas em que a mulher é colocada em evidência e reverenciada em ritos, representações artísticas e cultos. Mas, sem regras muito rígidas, cada pai de santo dita o tom das tradições para sua casa e sua comunidade. E mulheres que se interessam pelo toque do atabaque ainda podem enfrentar certo preconceito. “É mais comum uma mulher tocar a curimba e ser consagrada curimbeira, que é um instrumento feminino”, conta Chrisinha.

Tatuagem de Chrisinha, de uma mulher tocando atabaque com ondas de Iemanjá irradiando do instrumento. Foto: Instagram @blackjoker.ink

Ela lembra que, quando começou a se interessar pelo atabaque, o pai de santo da casa da qual ela faz parte disse que ali ela jamais tocaria o instrumento. Chrisinha também chegou a ouvir de um amigo da mãe que tinha “mãos de moça, delicadas demais” para tocar atabaque. Mas, educada e tranquila, como ela mesma se define, e também corajosa e firme, foi pouco a pouco conquistando seu espaço. Ela diz que desde o primeiro batuque simplesmente soube que seu corpo tinha o dom natural para aquilo.

Aos 28 anos, Sheila de Paula, outra tocadora de atabaque, descreve uma experiência semelhante à de Chrisinha. Ela começou na umbanda trabalhando como cambona — nome dado ao médium que não incorpora durante a corrente, mas fica ao lado do médium que recebe as entidades para ajudar os consulentes na comunicação caso necessário. Mas sempre sentiu atração pelo atabaque.

“O atabaque fazia meus olhos brilhar. Eu sentia sair dali, do barulho daquele couro. Algo que me convidava, que me chamava para algo novo, para uma nova missão que até então eu não sabia o que era.”

Sheila de Paula e o filho de 5 anos tocando numa gira. Foto: Acervo pessoal

Na Casa da qual Sheila faz parte, o Círculo de Irradiações Espirituais Caboclo Karaqueterê, na zona sul de São Paulo, havia apenas uma mulher que tocava o atabaque. Mas sua função era diferente da dos homens. Um dia, ela percebeu o interesse de Sheila e a convidou para aprender a tocar com ela. Esse foi o início da descoberta de seu dom.

“Senti frio na barriga nas vezes em que fui convidada a tocar, mas dessa vez era diferente. Talvez por ser uma gira de aprendizado. Talvez por ser a única menina que tocava a me chamar. Senti uma espécie de coragem! Um sentimento de mulher para mulher. Entender que uma pessoa com entendimento maior e com certa afinidade com você te convidava a conhecer um mistério que você queria conhecer, mas talvez não tivesse muita coragem… É isso: ela foi meu pontapé inicial, minha coragem, meu espelho.”

Segundo Sheila, explorar esse espaço que, tradicionalmente, não era “lugar delas” possibilitou uma transformação pessoal profunda, pois o atabaque tem uma relação espiritual com quem toca. Como tudo na umbanda, a identificação com a ancestralidade e a memória viva dos antepassados — que se mantém mais viva ainda pelas incorporações — são fatores cruciais que, sob uma perspectiva psicológica, contribuem para o autoconhecimento, principalmente das mulheres.

FORÇA DE IEMANJÁ EXTRAPOLA A UMBANDA

Iemanjá é a orixá mais querida e popular entre o povo brasileiro. Independentemente da religião, é muito comum ver pessoas pulando sete ondas no mar e jogando flores para Iemanjá no ano novo. A festa de celebração a essa orixá ocorre todo dia 2 de fevereiro em diversos Estados do País e recebe quantidade expressiva de devotos, turistas e admiradores.

Preparação para a festa de Iemanjá em Arembepe (BA), em 2019. Foto: Agnaldo Silva/ Prefeitura de Camaçari

A figura materna que ela assume para a população não condiz com sua figura completa na origem das tradições africanas — muitos pesquisadores acreditam, inclusive, que os atributos negativos de Iemanjá foram transferidos para a pomba-gira — entidade que representa a mulher de sexualidade livre, das ruas, muito cultuada nos ritos de umbanda — , por serem qualidades condenadas pela Igreja, consideradas profanas e vulgares.

Na tradição da umbanda, Iemanjá é a mãe de todos os outros orixás. Caracteriza-se não apenas por seu caráter acolhedor imenso como por seu poder sobre os mares, sua fúria capaz de destruir a humanidade e sua capacidade de criar novos caminhos a partir de seus erros. Há um itan (nome dado aos mitos e lendas da umbanda) que conta que Iemanjá, após trair Ogum e ser descoberta, finge-se de morta para escapar dele e afoga seus amantes no mar.

É ela a grande mãe, fluida como a água e brava como as ondas — é o mar que impõe os limites à terra. Ao olharmos para o mar, somos lembrados de nosso tamanho; ao entrarmos nele, sentimos renovação. Entretanto, o mar não mede sua ondas, assim como Iemanjá extrapola sua razão e reage de forma desmedida, levada por suas emoções em determinadas atitudes — assim como nós.

Essa negação das sombras de Iemanjá não invalida o carinho e a identificação que o povo brasileiro encontra na grande rainha das águas. Mas é um olhar crítico a ser considerado, já que o Brasil é marcado por questões culturais complexas de formação de identidade devido ao racismo e a ideais colonialistas que renegam heranças africanas e, mais do que isso, perpetuam perspectivas machistas que pressionam as mulheres a não cometer erros e seguir um padrão moral ‘perfeito’.

A multivalência das águas abrange vida e morte, purificação, imersão, batismo, fonte, fluxo, torrente, fertilidade, mistério, fecundidade, nutrição, entre outros termos que remetem ao feminino e às emoções, abarcando tanto o mistério do fundo dos oceanos, quanto a capacidade de gerar a vida e a fluidez das correntes.

Na canção Iemanjá, Desperta, Martinho da Vila, em um apelo pelos cuidados de Iemanjá ao povo carioca, sofredor mas alegre, resume sobre a orixá: “Você conhece a mentalidade brasileira”.

PARA SABER MAIS

*Esta reportagem se baseia no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da aluna Carolina Menezes em Jornalismo na FAAP. Batizado de ‘Ser feminino e a natureza na umbanda: A Psicologia analítica no sagrado primordial de iemanjá e pomba gira’, ele foi orientado pela Prof. Nathalie Hornhardt e deu origem também a uma revista.

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