“Não se preocupe, vamos trazer os ossos.”

CINE#LABJOR na Mostra: O Silêncio dos Outros

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3 min readOct 26, 2018

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por Leonardo Lopes

Divulgação / Mostra Internacional de Cinema

The Silence of Others (O silêncio dos Outros), Espanha/EUA, 2018. De Almudena Carracedo e Robert Bahar.

Pacto do Esquecimento. Assim são popularmente chamadas as decisões jurídicas por anistiar os envolvidos nos atos de uma ditadura militar. Elas inocentam aqueles que foram ilicitamente condenados durante o período. Os agentes responsáveis pelas perseguições, encarceramentos e torturas da época são, também, perdoados. Adotado por diversos países que trazem um regime ditatorial em sua história recente, o modelo deste pacto nasce na Espanha, em 1977, com a chamada Lei de Anistia.

“Tentam nos convencer de que viramos a página, de que é melhor esquecer.”, afirma um depoente que foi preso e violentado durante o governo de Francisco Franco, vigente no território espanhol de 1938 a 1973. Esta é a máxima que aflige a todos os personagens retratados em O Silêncio dos Outros, co-produção espanhola e estadunidense. Em declarações oficiais de políticos locais, o discurso progressista de que importa pensar no futuro e deixar o passado para trás suprime o apelo pela discussão de uma história traumática. Esquecimento. Não à toa. Mas como pode “seguir em frente” o morador de uma rua registrada com o nome de quem o torturou?

Acompanhado pela produção, um grupo de cidadãos espanhóis, unidos pela herança comum de duras cicatrizes do regime franquista — entre encarcerados, tornados órfãos sem o direito de enterrar seus pais ou perdendo seus filhos, ainda na maternidade, para ele -, decide travar a dolorosa batalha pela reivindicação desta memória, num apelo coletivo para que as leis do direito universal possam contestar as instituições da anistia e, enfim, cada responsável pela violência que os traumatiza seja reconhecido como tal. A câmera de Almuneda Carracedo e Robert Bahar, consciente da nobreza da luta que registra, abdica do protagonismo. Abre mão da intervenção para deixar-se conduzir pelas reações genuínas de esperança por cada conquista daquele conjunto — e apenas as dá voz, para que bastem por si. O anseio do reparo histórico não é seu, afinal — mas é essencial que seja retratado.

Num dos mais sensíveis diálogos entre aqueles seres humanos, é possível ouvir uma promessa: “Não se preocupe, vamos trazer os ossos.” A memória que aquelas pessoas reivindicam é uma experiência que não pode mais ser, de fato, “recuperada” — mas é necessário “recuperar”, pelo menos, seu verdadeiro significado. Aparentemente singelas, conquistas legais como a retirada de nomes de torturadores de ruas, praças e monumentos são profundamente significativas para aquele grupo — ressaltadas ainda por toda a sabotagem e complexidade que cercou o processo. Ainda mais impactante é a exumação dos corpos de familiares falecidos — cena forte captada corajosa e, sobretudo, respeitosamente pelo documentário — e que simboliza humanamente a apropriação de uma recordação condenada.

Sensível e humano, O Silêncio dos Outros escancara a importância do processo de reivindicação e expressão da memória traumática nacional não apenas para os herdeiros diretos de suas cicatrizes, mas para toda a sociedade que as carrega. E o faz de maneira rara e fundamentalmente identificada: oferecendo, na manifestação da realidade, uma dose de esperança.

Saiba mais sobre o filme em sua página na Mostra.

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