O mar de Glauber Rocha e suas leituras atemporais do Brasil

Por Nicolas Klinke

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9 min readNov 29, 2018

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RESUMO

A percepção de Glauber Rocha sobre a política brasileira sempre foi exaltada. Em suas principais obras destacam-se Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e Terra em Transe (1967). É a partir destes dois filmes, e a presença do mar em ambos, que este artigo pretende fazer uma análise do cinema de Glauber Rocha e sua atemporalidade.

Glauber Rocha e suas influências

Nascido e crescido em Vitória de Feira da Conquista, o diretor Glauber Rocha sempre foi capaz de mostrar grande capacidade autoral em seus filmes, além de uma enorme percepção política. Seus filmes servem como verdadeiros retratos históricos do Brasil, que segundo o próprio diretor do Cinema Novo, retratavam o terceiro mundo.

Entre as suas grandes obras, duas se sobressaem. São os filmes: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e Terra em Transe (1967).

No primeiro caso, Glauber conseguiu com maestria criar um faroeste no sertão, e ao mesmo tempo em que traçava um panorama crítico sobre a questão da fome sertaneja, e mostrava a força da massa, o diretor baiano criou uma história muito concisa, na qual aproveitava-se de um gênero clássico cinematográfico.

Seguindo uma lógica linear em sua narrativa, Glauber mostra-se influenciado por John Ford, diretor que ficou famoso por ser um mestre do sub-gênero: faroeste. A forma como o diretor preenche seus planos, cria momentos de tensão,e dá valor aos seus cenários lembra muito o trabalho do diretor americano, que tem No Tempo das Diligências (1939) como sua principal obra .

Cenas de “No Tempo Das Diligências”, 1939, John Ford, United Artists

Além disso, o filme vem com uma força incrível, tanto pelas atuações, quanto pela sua narrativa, que mostrava uma esperança na mudança do país, que conseguiria dar fim à pobreza no sertão.

Já em Terra em Transe, Glauber Rocha trabalha seu filme de forma ainda mais autoral, e com nuances e estéticas que fogem da linguagem clássica de John Ford.

O filme é caracterizado pelo seu teor político, e pela a forma como o tempo inteiro transita entre a realidade e os delírios da personagem central de sua narrativa.

Trazendo toda a sua frustração com a ditadura militar, Glauber Rocha mostrava agora uma nova inspiração, a do consagrado diretor, Jean-Luc Godard. O diretor francês que sempre retratou a realidade com alegorias, e buscou romper com os padrões e maneirismos de Hollywood, instrumentos que Glauber utilizou para conseguir concretizar Terra em Transe, seja pela história que não acaba bem, ou pela forma que o diretor utiliza-se de discursos e delírios das personagens para conduzir sua narrativa. Em suas carreiras ambos os diretores deixaram evidente os seus posicionamentos políticos ao viverem momentos de desesperança, os dois autores acabaram por transferir isso para suas obras. Apesar de suas diferenças de tempo e contexto Terra em Transe parece ter forte ligação com Acossado (1960) e Tudo vai Bem (1972), obras do diretor francês. O momento no qual Terra em Transe é concebido, é o mais pessimista para Glauber, com o país mergulhado em um regime militar, o cineasta se vê confuso, e frustrado, e acaba por passar toda esta carga para o filme.

Cena de “Tudo Vai Bem”, 1972 , Jean-Luc Godard Gaumont

O mar de Glauber Rocha

No entanto, o que junta estes dois filmes está justamente no final da obra de 64 e no início do filme de 67. Ambos os filmes dirigidos por Glauber Rocha tem o mar como uma metáfora, que dá uma profundidade maior para suas narrativas.

O ponto o qual toda narrativa de Deus e o Diabo na Terra do Sol se desenvolve se dá no refrão da música que, com a letra do próprio Glauber, encerra o filme: “O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. A frase é repetida por diversos personagens e ao decorrer da trama ganha mais amplitude. Ao final do filme a profecia de fato acontece. O mar chega ao sertão árido e o dá nuances de paraíso. Mas, como já dito, o mar significa muito mais do que só o mar.

A frase tem maior destaque quando é repetida pela personagem beato Sebastião, que ao proferi-la, dá nuances marxistas para os dizeres, pois em seguida o beato profetiza que “o homem não pode ser escravo do homem”. Na análise de Lúcia Nagib, aqui fica evidente que o mar é uma metáfora para as revoluções de massa. Nas palavras da própria autora:

Está claro, portanto, que se trata de um mar metafórico referente ao processo revolucionária pelo qual o oprimido tomará o poder, castigando o opressor.(LUCIA NAGIB, 2001, p.2).

E é em Manoel, o vaqueiro que matou seu patrão, que o potencial revolucionário reside em Deus e o Diabo, tendo seu destino cruzado com Antônio das Mortes, o matador contratado para dar fim ao beato e seus seguidores, e também responsável por matar Corisco, cangaceiro que fazia parte do grupo do famoso Lampião. Segundo Nagib (2001,p.2): “Nesse sentido, seu interesse se coaduna com o do personagem-chave Antônio das Mortes, que liquida Sebastião e Corisco para dar início à ‘grande guerra’ pela qual o homem se libertará dos poderes retrógados de Deus e do diabo.”

Em Deus e o Diabo, o mar é sem dúvida uma alegoria para a transformação, uma passagem que abriria o caminho para melhorias do sertão, e assim traria o paraíso de volta para a população pobre. Segundo a fala do beato Sebastião:“Deus separou a terra e o céu, mas tava errado. Quando separar de novo, a gente vê a ilha”. A ilha é sempre vista como esta promessa de que o sertão se tornaria o paraíso :

Como em todo mito regenerador, a criação depende de uma destruição, e assim o mar é antes de mais nada o apocalipse.(LUCIA NAGIB, 2001, p.3)

Sendo assim, o encontro entre o mar e o sertão significa o encontro entre opostos, referindo-se novamente que, para a chegada definitiva da mudança, a grande guerra já citada tem de acontecer, aliada do apocalipse, que chegaria para destruir e agora recomeçar.

Cena de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” ,1964, Glauber Rocha, Copacabana Filmes

Nas imagens que abrem Terra em Transe o mar é mostrado de cima por uma câmera aérea, sua homogeneidade e sua calmaria dão a entender que o processo alcançado em Deus e o Diabo na Terra do Sol se concretizou. No entanto, em seu decorrer, é apresentado que o começo da revolução profetizada por Sebastião e Corisco não conseguiu se instaurar. Ao apresentar o país fictício de Eldorado, descobre-se que, na verdade, o que resultou dela foi um país liderado por elites econômicas e políticos, habitado por intelectuais, e miseráveis — que ainda morrem de fome. A metáfora do mar agora tem a interpretação de caos e de derrota.

Se antes o mar era uma forma de conseguir alcançar a utopia das igualdades, agora ele tem uma força reduzida, e significa justamente o contrário de utopia. O Eldorado apresentado por Glauber Rocha é um mundo de totalitários. No personagem de Paulo reside essa vontade de mudança, mas, no decorrer da narrativa, percebe-se que tudo o que o jornalista e poeta tenta fazer para criar um país melhor e mais próximo da utopia é sufocado por Diaz, e pela verdade de quanto este poder que o segue é sujo, descobrindo até que o candidato que resolve ajudar era também financiado pela elite agrária.

Glauber Rocha sintetiza a utopia em seus dois sentidos, tanto a de resolução para todos os problemas, quanto como algo impossível de se alcançar. Dois opostos que vêm do momento histórico de cada filme. Quando Deus e o Diabo na Terra do Sol é produzido, existia uma esperança por parte da união da esquerda e de uma burguesia progressista que poderiam representar mudanças significativas ao Brasil. Em Terra em Transe a esquerda se vê frustrada ao assistir a burguesia progressista apoiar a imposição da ditadura militar, tornando o sonho da igualdade no Brasil impossível. Além disso, o filme de 1967 traz consigo uma leitura da história completa do Brasil, que desde a sua descoberta era acompanhada desta figura paradisíaca, e que devido aos seus protagonistas históricos acabam por desaguar em um mundo extremamente similar ao de Eldorado. Como bem observado por Lúcia Nagib:

O que torna as imagens glauberiana tão poderosas é justamente esse dom de sintetizar séculos de história. Com seu mar musicado por Villa-Lobos, em Deus e o diabo, ou seu Eldorado operístico em Terra em transe, Glauber mistura a esse paraíso selvagem e natural, a visão de uma humanidade corrompida. Ser ou não ser a terra prometida, eis a questão desses dois filmes de Glauber, que responde com personagens dilacerados entre a condição de heróis e canalhas, deuses eternos ou últimos dos mortais, à conjuntura permanentemente injusta de um país. (LÚCIA NAGIB, 2001, p.7)

Cena de “Terra em Transe” ,1967, Glauber Rocha,

A leitura de Glauber Rocha mostra-se ainda mais atual, no decorrer dos anos, pois o Brasil parece se mostrar ainda mais próximo do Eldorado apresentado pelo autor.

A atemporalidade das obras de Glauber Rocha

Em 2002, a liderança de um candidato populista, Luís Inácio da Silva o fez alcançar a presidência, algo que fez a população novamente sonhar com a chegada do mar no sertão. No entanto, assim como João Goulart, ou se preferir, Vieira, Lula também fez concessões às elites e acabou por pagar o preço. Agora preso, Lula assiste o povo que prometeu ajudar sendo novamente decepcionado, e, aos poucos, seguindo o mesmo caminho de 1964.

Assim como durante o golpe de 1964, a extrema direita ganha a força de uma burguesia, antes vista como progressista. As elites mostram-se, como sempre, serem as verdadeiras comandantes do país e, aos poucos, a imagem de Diaz parece estar próxima do candidato eleito Bolsonaro, que, assim como o personagem interpretado por Paulo Autran, consegue convencer o povo de que a única saída é o conservadorismo e a aliança com a elite e o imperialismo. Como dito por Nagib, o Brasil parece estar em uma “conjuntura permanentemente injusta”, e reforçado por Luís Antônio Giron:

Tanto no velho filme como no Brasil de agora, os cidadãos acordam para um pesadelo cotidiano onde não veem saída nos políticos, envolvidos em retórica lunática.

Agora a pergunta que resta fazer é: Que mar está nos esperando?

Nicolas Klinke, 21 anos, aluno de cinema da FAAP

nicoklinke@gmail.com

Bibliografia

GIRON, Luís Antônio. O Brasil de hoje é “Terra em Transe”. 2017. ISTOÉ.

Disponível em:

NAGIB, Lúcia. IMAGENS DO MAR VISÕES DO PARAÍSO NO CINEMA BRASILEIRO ATUAL. 2001. INTERCOM — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação — Campo Grande /MS.

Filmografia

Acossado Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Georges de Beauregard. Intérpretes: Jean-Paul Belmondo; Jean Seberg e outros. Roteiro:Jean-Luc Godard .Música: Martial Solal. 1960. DVD (87 min), preto e branco.

Deus e o Diabo na Terra do Sol Direção: Glauber Rocha. Produção: Glauber Rocha. Intérpretes: Geraldo Del Rey; Yoná Magalhães; Othon Bastos; ;Maurício do Valle; Lídio Silva e outros. Roteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Jr. .Música: Villa Lobos e Sérgio Ricardo. 1964. DVD (125 min), preto e branco.

No Tempo das Diligências Direção: John Ford. Produção: Georges de Beauregard. Intérpretes: Claire Trevor; John Wayne; Thomas Mitchell; Andy Devine; George Bancroft e outros. Música:Richard Hageman; Leo Shuken; John Leipold; W. Franke Harling; Gerard Carbonara; Louis Gruenberg. 1939. DVD (96 min), preto e branco.

Os 50 anos de Terra em Transe Direção: Ricardo Monteiro. Produção: Ricardo Monteiro por Nexo Jornal. Intérpretes: Rodolfo Almeida Roteiro: Roberto Monteiro. 2017. Nexo Jornal — YouTube (5 min), colorido.

Disponível em:

Terra em Transe. Direção: Glauber Rocha. Produção: Glauber Rocha. Intérpretes: Geraldo Del Rey; Yoná Magalhães; Othon Bastos; ;Maurício do Valle; Lídio Silva e outros. Roteiro: Glauber Rocha. . Música: Sérgio Ricardo. 1967 DVD (106 min), preto e branco.

Tudo Vai Bem. Direção: Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Produção: Jean-Pierre Rassam. Intérpretes: Yves Montand; Jane Fonda; Vittorio Caprioli e outros. Roteiro:Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin .Música: Paul Beuscher. 1972. DVD (95 min), colorido.

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