O QUE É NÃO-MONOGAMIA

‘LabJor FAAP’ conversa sobre relacionamentos, ciúme e traição com adeptos do movimento que prega a ideia de mais de um parceiro

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12 min readApr 29, 2021

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Cecília Machado, Isabela Andrade e pedro a duArte

Arte: Isabela Andrade

Você já ouviu falar de não-monogamia? O tema que tem ganhado espaço nas redes sociais costuma gerar polêmica em países, onde, no imaginário popular, a monogamia é familiar, institucionalizada e muitas vezes tida como algo que advém da natureza humana. Mas adeptos desse estilo de vida estão cada vez mais mostrando suas opiniões e pontos de vista em canais, podcasts e posts e o LabJor FAAP foi conversar com alguns deles sobre relacionamentos, ciúme e traição, entre outros temas.

De acordo com um estudo de 2016 publicado no Journal of Sex & Marital Therapy, cerca de 20% dos adultos solteiros nos Estados Unidos declararam já ter se envolvido em relações não-monogâmicas em algum momento da vida. Esse mesmo estudo revelou que idade, nível de educação, renda, religião, região do país, filiação política e raça não afetaram o número.

No Brasil, o debate sobre assunto cresce no ambiente virtual. Em 14 de abril de 2019, foi criado o grupo de Facebook Problemas de Não-Mono a partir de algumas páginas da rede social que pautavam o tema de diversas formas. O espaço de discussão, que tinha no início 200 participantes, conta agora com 5,3 mil.

Também no Facebook, a página Não-Mono em Foco tem quase 2 mil seguidores e sua revista online no Medium, 651. Nela, profissionais e especialistas das Ciências Sociais e da Psicanálise publicam artigos introdutórios à não-monogamia e suas diversas práticas, explicando debates presentes no movimento, como a interseccionalidade com os movimentos anti-racista, feminista e LGBT.

A socióloga Marília Moschkovich (conhecida como Marília Moscou) é outra especialista que tem falado do assunto em seu podcast feminista Libre Cast. Com oito episódios publicados quinzenalmente a partir de setembro de 2019, o programa tem a proposta de abordar relações não-monogâmicas, sexo e amor — e como tudo isso pode ajudar a combater violências de gênero.

Mas, afinal, o que é a não-monogamia?

BREVE HISTÓRIA DA MONOGAMIA

Como o nome indica, a não-monogamia é um conceito que nega as práticas monogâmicas. Portanto, é necessário primeiro entender o que está sendo negado. O LabJor FAAP entrevistou a jornalista Camila Freitas e os pesquisadores Nana Miranda e Newton Junior, do projeto Não-Mono em Foco, para explicar esse conceito.

Arte: Isabela Andrade

Segundo eles, a monogamia não é simplesmente a prática de se ter apenas um parceiro ou parceira, mas sim “uma estrutura que hierarquiza e dita dinâmicas das relações”. “A monogamia é, como definido pela escritora Brigitte Vasallo, uma superestrutura de organização e distribuição dos afetos. Ela é, como apontado pelo escritor alemão Friedrich Engels (1820–1895), diretamente ligada ao surgimento da propriedade privada.”

Em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, publicado em 1884, Engels afirma que, antes da formação da família monogâmica, os grupos eram formados por conveniência e condições naturais. A monogamia surgirá na história como uma forma de garantir aos homens a certeza sobre a paternidade de seus herdeiros.

Segundo o filósofo alemão, é preciso compreender a divisão sexual do trabalho para se entender a atual sociedade: inicialmente, cabia ao homem a caça e a procura por alimentos e à mulher, os cuidados com a casa e produção de instrumentos domésticos. Com o desenvolvimento da agricultura, o homem passou a ter mais bens do que a mulher e, logo adiante, escravos. À medida que a riqueza aumentava, a ideia de ter formas de garantir aos filhos a herança paterna tornou-se mais necessária.

“De modo algum (a monogamia) foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram atos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monomania eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos legítimos para herdar os bens deles.” Friedrich Engels, em ‘A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado’

Enquanto não há nada que os filhos possam herdar do pai, continua Engels, não é necessário garantir a filiação paterna, mas, conforme se avança em termos de controle de produção, há excedentes o suficiente para que sobre algo para ser passado aos filhos. E a única forma de assegurar ao homem a paternidade de seus filhos é a certeza de que determinada mulher só mantém relações com ele.

MAS, AFINAL, O QUE É NÃO-MONOGAMIA?

Para os responsáveis pelo projeto Não-mono em Foco, a não-monogamia pode ser definida como um termo guarda-chuva para modelos de relacionamento e filosofias que procuram romper com a lógica monogâmica. “No NM em Foco, trabalhamos com o conceito de não-monogamia política, que é uma posição contra-hegemônica em relação à monogamia, por entendê-la não como uma prática, mas como uma estrutura de dominação”, afirmam Camila, Nana e Newton, em resposta conjunta enviada por e-mail. “Tudo o que perpetua a estrutura monogâmica, mesmo em relações ditas não-monogâmicas, não é orientado por esse projeto político.”

Ficou confuso? Peraí que a gente te explica. Para adeptos desse movimento, nem sempre as relações abertas são não-monogâmicas, porque, apesar da liberdade que têm para explorar o lado sexual, elas mantêm em muitos casos a mesma exclusividade afetiva que reforça a racionalidade monogâmica. “Relações que mantêm lógica hierárquica, nuclear, também não são orientadas por esse projeto político coletivo e emancipatório, já que mantêm em si constituintes básicos da estrutura monogâmica”, explica o trio do Não-Mono em Foco.

Arte: Isabela Andrade

“Eu não acho que relacionamento aberto seja não-monogamia. Eu não acho que trisal (quando três pessoas namoram entre si) monogâmico seja não-monogamia, eu não acho que um molde de relacionamento que ainda inclui a ideia de ciúme, de posse e de traição, principalmente, seja não-monogamia”, diz o estudante não-monogâmico Manoel Caixeta, de 18 anos.

“A não-monogamia está muito mais relacionada a um valor ético e à aproximação de seus ideais do que de fato uma simples escolha individual”, diz Vinícius Eigi, de 20 anos, outro estudante não-monogâmico. “Nem todos pensam e agem da mesma forma em suas relações. Isso porque a compreensão da monogamia e de como construir alternativas são diferentes.”

COMO FUNCIONAM OS RELACIONAMENTOS NÃO-MONOGÂMICOS?

A não-monogamia pressupõe a inexistência de exclusividade e de um relacionamento nuclear, em que um parceiro é mais importante que o outro. Para Manoel, ela não é um “formato” de relacionamento, e sim um conjunto de ferramentas para deixar as relações mais livres e conscientes dos sentimentos das pessoas envolvidas.

Já Vinícius diz ver no conceito a possibilidade de poder se relacionar sexual e amorosamente com qualquer pessoa em qualquer contexto e momento. Isso fez com que ele se visse livre de relacionamentos tóxicos, pois já “não havia mais uma obrigatoriedade em manter determinados laços”.

Arte: Isabela Andrade

Mas ele diz ainda viver um dilema. “Ao mesmo tempo que eu não queria que houvesse um nome diferente para as minhas relações (namoro, amizade, amizade colorida etc), eu vejo uma necessidade de pontuar uma diferenciação entre elas”, conta.

Vinícius tem um namorado e, apesar de evitar, usa essa nomenclatura porque, além de mais simples de explicar, a relação dele com o rapaz é muito diferente da com seus amigos. “Ela contém um valor emocional muito destoante das minhas outras relações. Claro que isso não quer dizer que por isso a gente ‘namore’, já que isso é um valor social ligado à monogamia, mas a gente usa dessa forma por uma questão prática: é muito mais simples explicar.”

O videomaker e fotógrafo Bernoch, de 27 anos, diz que a não-monogamia lhe ajudou a lidar com a insegurança. “Comecei a perder o medo de perder a pessoa, de ser trocado, isso não existe mais para mim. Eu reconheço que a gente vive fases na nossa vida onde vamos conhecer pessoas e não tem isso de trocar alguém. É só que, talvez, em algum momento, essa pessoa já não esteja em uma vibe de se relacionar compatível com a sua.”

Ele garante que hoje se sente mais seguro e se cobra menos. “Eu não penso mais que, se uma pessoa não quer mais sair comigo, é porque eu sou feio ou chato, porque eu fico muito em cima dela ou não dou muita atenção. Não fico jogando mais esses pesos em mim nem na pessoa. Se ela não quer sair mais comigo, é por motivos dela e está tudo bem.”

EXISTE CIÚME NA NÃO-MONOGAMIA?

Esta é uma das perguntas mais feitas quando o tema é não-monogamia. A socióloga Marília Moschkovich explica no episódio 3 de seu podcast Libre, “A Teoria na Prática”, que o ciúme é “uma categoria super ampla que usamos para falar de uma gama de situações muito diversa e que, quando usamos, via de regra acabamos escondendo o problema real que está acontecendo”. Para ela, é preciso se questionar sobre qual situação específica está engatilhando a sensação chamada de ciúme. “Não dá pra você evitar sentir essas coisas porque isso é estar vivo, sabe? Faz parte da vida”, diz, no episódio. “O que tem como é você pensar estratégias para lidar com isso.”

Ela sugere compreender o que é esse sentimento e o que não está legal e, assim, buscar uma solução (por vezes, conjunta) para a questão, porém algo que não envolva controlar o desejo e o corpo de seu(sua) companheiro(a). “Na mediação entre o que eu preciso e o que a pessoa está disposta a fazer, (é necessário que) a gente consiga chegar junto em uma solução na qual ninguém se sinta lesado.”

Os organizadores do Não-mono em Foco dizem que o diálogo constante é um ponto necessário para a não-monogamia. “Expor nossas questões, inclusive o ciúme, é uma estratégia para lidar com ele. Questões de autoconhecimento também: se questionando sobre o que seria esse ciúme, o que estaria o gerando. Trabalhando assim, criamos diversas pistas para a própria cura em relação ao ciúme e outras questões”, defendem Camila, Nana e Newton, na resposta conjunta enviada ao LabJorFAAP.

Nesse sentido, Manoel dá a dica de tentar descrever o que se está sentindo sem usar o termo “ciúme”. “Você vai ver que existem sentimentos mais específicos para a sua situação. E, ao perceber que eles existem, você consegue lidar com eles de uma forma melhor. Então o que você está sentindo: Carência? Está se sentindo preterido?”

Arte: Isabela Andrade

A publicitária Simone Bispo, de 33 anos, lembra que fomos ensinados que sentir ciúmes é sinônimo de afeto e ela mesma acreditava não ser possível ser não-monogâmica sendo ciumenta. Ela diz que até hoje sente ciúme, mas trabalha a questão porque sabe que esse ciúme é na verdade um outro sentimento.

Os organizadores do projeto Não-Mono em Foco lembram que a não-monogamia não é uma poção mágica e o ciúme faz parte do arcabouço de sentimentos humanos. “O que acreditamos ser importante é a consciência de que ele não deveria ser levado como expressão saudável do amor. Uma análise que (a mestra em Psicologia Social) Geni Núñez nos traz é de como o ciúme acaba sendo um termo guarda-chuva para diversos sentimentos, como posse, desejo de controle, algum trauma não trabalhado.”

EXISTE TRAIÇÃO NA NÃO-MONOGAMIA?

Dentro da não-monogamia política, não cabe o conceito clássico de traição porque a lógica da fidelidade está diretamente ligada à da exclusividade. Como não existe exclusividade, ele perde o sentido. Isso não significa que as pessoas não criem acordos nos relacionamentos. “Os acordos são recursos importantes para a manutenção das relações, mas acreditamos que não devem ser considerados cláusula pétrea”, defendem Camila, Nana e Newton, do Não-Mono em Foco, em texto conjunto.

Manoel pontua que, apesar de a não-monogamia política não trabalhar com o conceito de traição, não quer dizer que não existam eventuais quebras de confiança, enganação ou qualquer outra coisa similar não relações não-mono. “Existem quebras de confiança na não-monogamia, mas não a quebra de um contrato de posse ou direito, que é o que constitui a ‘traição’. Porque a dinâmica de relação que a não-monogamia propõe é de liberdade e acordos de conforto — e não de direito — perante os outros.”

RELAÇÃO COM FILHOS

Os filhos costumam ser uma preocupação para quem quer aderir à não-monogamia, mas já é pai ou mãe. Uma das perguntas é como as crianças vão reagir a essas informações e se serão capazes de compreender o que está acontecendo.

Simone diz já ter vivido uma experiência onde viveu um relacionamento não-monogâmico em que morava com seu ‘afeto’ (forma escolhida para se referir à pessoa com qual se relacionava), a companheira dele, o namorado dela e as duas filhas do casal.

“Era maravilhoso, porque as crianças já cresceram dentro desse ambiente onde entendem que adultos se gostam e às vezes namoram mais de uma pessoa e está tudo bem. Sempre foi muito tratado com normalidade e simplicidade”, afirma. Ela conta que, apesar do fim do relacionamento, o vínculo de carinho com as duas meninas se manteve e elas seguem tendo contato.

O PESO DO PRECONCEITO

Todos os entrevistados tocaram no assunto do preconceito social ao falar da não-monogamia. “Muitas pessoas também criam um olhar moralista”, aponta Vinícius.

Para Simone, “o que tem de aspecto negativo é mais com relação à confusão de acharem que um relacionamento aberto cheio de regras é não-monogamia, ou então achar que é “oba-oba”, que ninguém leva nada a sério”. “Mas dentro da não-monogamia em si não enxergo nada de maneira negativa.”

Arte: Isabela Andrade

Bernoch diz ser importante não ter a visão de que a não-monogamia é algo sem sentimentos: “Não-monogamia não quer dizer que vou estar namorando mil pessoas ao mesmo tempo ou estarei com uma pessoa, mas querendo ficar com outras dez”, explica.

Manoel e Vinícius veem um empecilho significativo em encontrar parceiros que estejam abertos para um relacionamento não-monogâmico. “Ao mesmo tempo que não vou abdicar da minha liberdade e de me relacionar com outras pessoas, também é sempre chato quando alguém que eu estou muito a fim não considera a não-monogamia como opção. Daí por isso a gente acaba perdendo a possibilidade de se relacionar”, finaliza Manoel.

PARA SABER MAIS

Entrevistados recomendam estudar o assunto. Para Manoel, é importante pesquisar tanto sobre a monogamia (o que ela é e como se constituiu em nossa sociedade) quanto sobre a não-monogamia, além de ir atrás de teorias sobre o tema e de pessoas que falem dele de maneira mais teórica. Entre os materiais de estudo indicados pelos entrevistados estão a própria revista online Não-mono em Foco e o podcast Libre.

Manoel lembra que é preciso deixar de lado a prática de categorizar as relações. “Se você quer beijar e transar com seu melhor amigo e ele quiser o mesmo, se beijem e transem (antes disso, se cuidem por conta da pandemia). Façam o que querem fazer e depois se preocupem com esse rolê de categoria porque eventualmente vocês verão que não precisam categorizar o que são para se relacionar.”

Bernoch acrescenta que é importante manter uma postura questionadora, inclusive das emoções: “Por que me sinto mal se eu estiver apaixonado por uma pessoa e a vir com outra? Acho que começar nesse caminho de questionar ajuda bastante.”

Para Simone, é importante se abrir “para a desconstrução”. “Leia muito para ter referências. Se você já se relaciona com alguém, converse com essa pessoa. E abra o coração para enxergar as questões políticas da não-monogamia.”

Cecília Machado, Isabela Andrade e pedro a duArte são estudantes de Jornalismo na FAAP

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