DEPOIMENTO

O QUE APRENDI COMO JORNALISTA, POR MONJA COEN

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25 min readSep 24, 2020

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Líder budista revela, durante a Semana de Comunicação da FAAP, em 16/9, o impacto da experiência de repórter do 'Jornal da Tarde' em sua trajetória de vida*

Monja Coen Roshi, durante conversa com alunos e professores da FAAP em 16 de setembro. Fotos: Gianna Staniscia

"Eu devo confessar que fui da última turma registrada como jornalista profissional sem ter faculdade, porque não existia faculdade de Jornalismo. Faz muito tempo. Eu tinha 19 anos, agora estou com 73. O Jornal do Brasil foi o primeiro jornal a ter meninas trabalhando na redação como repórteres da (editoria) Geral. Até que surgiu o Jornal da Tarde. Contando um pouquinho da história, o JT foi criado pelo Mino Carta. Mas ele saiu para fundar a Veja, na Editora Abril, e o Murilo Felisberto entrou como redator-chefe. 'Se tem as meninas do JB, vamos ter as meninas do JT', ele resolveu. Na época havia, se eu me lembro bem, duas repórteres lá: Tereza e Valéria. Eram as duas únicas moças na redação, que devia ter uns 80 homens. Entramos (depois) três ao mesmo tempo, éramos três foquinhas. Duas de nós ficamos um pouco mais, a outra acabou indo embora. Eu fiquei três anos e meio. Não é muito tempo, mas foi muito intenso porque eu gostava muito de ler e escrever — comecei a ler e a escrever cedo, com 9 anos de idade — e fiquei imaginando: ‘Vou chegar lá e escrever’.

Primeiro dia na redação, Miguel Jorge — que foi ministro de Minas e Energia— foi o responsável por me dar a primeira aula. Era época de carnaval e ele disse: ‘Você vai entrevistar os três costureiros mais famosos de São Paulo — Dener, Clodovil e José — e pedir pra eles fazerem um esboço de um vestido, de uma roupa de carnaval. É difícil que eles façam, talvez você consiga’.

Falei ‘tá bem’. E ele disse assim: ‘Você sabe o que você tem de perguntar?’. Eu falei: ‘Não’. E ele: ‘Tem cinco perguntas: quem, quando, como, onde e por que’. Falei: ‘Como é que é?’. E escrevi numa lauda.

Naquela época a gente não tinha gravador, não tinha celular, não tinha computadores. Então pegava uma lauda de papel em branco para datilografar o texto. Dobrei a lauda em três e escrevi as perguntas: quem, quando, como, onde e por que.

Bom, eu sei que fui, fiz as entrevistas mal e porcamente, morrendo de vergonha. Era muito tímida e ter de falar com as pessoas, fazer perguntas, era desagradável. Mas os três me deram desenhos. Voltei para o jornal e me disseram: ‘Escreva’. E eu escrevi um texto cheio de adjetivos, uma coisa assim que eles disseram: ‘Não pode. Você sabe o que é um lide?’.

Eu falei: ‘Lide? Não. O que é um lide?’.

‘É o começo da matéria. O primeiro parágrafo tem de ser instigante para que o leitor queira ler o texto.’

Falei: ‘Ah…’.

Minha primeira aula foi ao vivo, trabalhando, fazendo uma matéria. Reescrevi o texto não sei quantas vezes. Entrei à uma da tarde, às nove e meia da noite já estava toda torta quando eles disseram: ‘Pode ir embora’. Eu tinha reescrito inúmeras vezes e não estava entendendo ainda. No dia seguinte, a matéria sai no jornal e, quando eu leio, minha primeira aula: o texto estava completamente diferente de tudo aquilo que eu havia escrito. E assim foi. Dolorido, sofrido. Fiquei muitas horas na redação nesse processo de um texto que é jornalístico, que não é um texto de literatura, que não é um texto da minha opinião sobre alguma coisa. E foi muito bom.

O mais interessante nesse período como repórter de Geral é que comecei a entrevistar todas as pessoas, de todas as situações que podiam estar acontecendo naquele momento. Nós estávamos com governo militar, tinha muita gente já indo para a clandestinidade, muito assalto a banco, muita morte. E eu acabei cobrindo todas as áreas. De repente, comecei a ter uma expansão de consciência, uma expansão de percepção.

A coisa mais difícil é você descrever o cheiro da favela, porque ela tem um odor muito característico, que eu nunca havia sentido. Naquela época, as casas de favela ainda eram de papelão, de tábuas, não eram como agora, de blocos. Um dia encontrei uma senhora que estava cozinhando num fogareiro, fazendo feijão numa latinha de leite em pó. Aquilo para mim foi muito impressionante: todos os odores naquela casa, aquela pobreza...

No dia anterior ou dois dias antes, eu estava em Brasília entrevistando a rainha Elizabeth e o príncipe Philip. Então você começa a perceber as inúmeras camadas sociais nas quais nós estamos envolvidos, mas existe uma coisa em comum: somos todos humanos. Essa humanidade perpassa desde a rainha Elizabeth. O príncipe Philip era meio paquerador. Ele se aproximava das moças e sabe o que a rainha Elizabeth fazia? Ela vinha e ficava do lado dele paradinha. Eu falei: ‘Olha que bonito, que maravilhoso exemplo’. Estamos falando de mais de 50 anos atrás. Quando eu tinha meus relacionamentos e ficava com ciúmes, eu brigava com o meu namorado, com o meu companheiro. Eu não ia me pôr ao lado dele como quem diz: ‘Estou aqui e isso me pertence’. Pensei (ao ver a rainha): ‘Olha que coisa mais hábil e inteligente, né? Se eu tenho que discutir com alguém, é com a pessoa que está se aproximando do meu companheiro. É da natureza dele estufar o peitinho e ficar se achando bonitinho.

Foram inúmeras situações semelhantes onde eu comecei a perceber que, primeiro, havia muita diferença social, muita diferença de classes, muita pobreza. E o que fazer?

Uma vez me pediram para entrevistar um brasileiro que tinha ido para a Guerra do Vietnã. Ele morava nos Estados Unidos, se tornou cidadão norte-americano, foi convocado para o Exército. Voltou para o Brasil e me deu uma entrevista dizendo que a guerra tinha sido ótima. Ele não tinha ido para o front, tinha ganhado um soldo muito bom, construiu uma casa, ajudou toda a família e eu escrevi o que ele falou. Quando o texto saiu no dia seguinte, os mais antigos da redação vieram me procurar e disseram assim: ‘O que foi isso? Você não tem noção do que fez?’.

Eu falei: ‘Como? O que eu fiz?’.

‘Você fez uma apologia da guerra. Você não foi capaz de colocar do lado uma coluninha dizendo quantas pessoas morreram na Guerra do Vietnã. Você disse que a guerra é boa. Pessoal vai lá, ganha bem, fica rico, volta pro Brasil.’

E eu comecei a perceber… Ainda falei: ‘Não, mas eu fiz o que vocês me ensinaram. Não era pra entrevistar a pessoa?’. O texto estava muito bom, estava todo redondinho, mas faltava pensar no conteúdo. Eu não tinha essa noção do que é politicamente correto, do que seria adequado. Vou falar que a guerra foi o máximo. Legal, né? Era uma coisa pra mim bem interessante porque era um olhar que eu nunca teria. Aí o pessoal da redação começou a dizer: ‘Nossa, precisamos conscientizar essa menina, ela precisa ler alguma coisa’.

Conversa virtual com Monja Coen Roshi durante Semana de Comunicação da FAAP. Fotos: Gianna Staniscia

Nós líamos muito, mas líamos muita literatura, havia um grande interesse. O primeiro parágrafo de O Velho e o Mar é um poema. Você já começa com uma coisa assim inspiradora. Então comecei a desenvolver um pouco essa arte de escrever, mas não tinha pensado ainda no conteúdo. Porque não é só informação. A informação também forma. Dependendo do ângulo com que você passa a informação, você também está dando a sua opinião, mesmo que diga que não está. Você escolhe entre aquilo que a pessoa falou e a maneira como ela falou e você até modifica alguma coisa que tenha sido dita. Eu não tinha pensado nisso antes. Eles me criticaram sobre esse texto específico da guerra e começaram a me dar livros para ler. Um deles foi de (Leon) Trotski. Era um livro muito fininho. Trotski falava que se a revolução não fosse internacional, se todos os países não se tornassem socialistas, comunistas, não ia adiantar, porque um país sozinho não fazia nada. Só que eu li o texto diferente: ele dizia que havia um governo revolucionário que tomava posse, matava todos os corruptos, tudo o que era impróprio e inadequado, e eles, os bons e puros, assumiam. Só que em pouco tempo os ministros começam a se corromper. O que eu entendi é: se o coração humano não mudar, não são sistemas políticos, econômicos e sociais que vão fazer a transformação. Aí começa minha jornada em outra direção, não de pertencer a um grupo político, não de pensar na ida para a clandestinidade — como alguns de meus colegas estavam indo.

Quando você é um jovem de 20 anos, você quer mudar o mundo, não é verdade? Mas meu pai sempre me dava o exemplo de Galileu Galilei. ‘Quer que eu assine um papel dizendo que a Terra não gira? Eu assino, para não ser morto. Mas que a Terra gira gira.’ Ou seja, não há nada pelo qual matar e/ou morrer. Não é porque eu tenho uma ideia, porque eu quero que o governo seja diferente, que eu vou sair matando gente ou vou me matar.

Foi muito forte esse momento, era um momento histórico que a gente estava vivendo. Eles não me deixavam ir para as passeatas porque eu era jovem, bonitinha, arrumadinha. Aí minha colega Marisa Figueiredo, que estava se formando na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e era foquinha como eu, falou para o pessoal da redação: ‘Se ela não vai como jornalista, ela vai como estudante. Ela tem de saber o que está acontecendo nas ruas, vocês não podem esconder isso dela’. Então ela me puxou, me pôs calças compridas –eu só ia trabalhar de tailleurzinho, de sainha —, me pôs um lenço no bolso com amoníaco e disse assim: ‘Vai ter gás lacrimogêneo e você vai preparada’. Foi a primeira vez em que eu saí para uma passeata e fui na Rua Maria Antônia no dia em que tinha a USP brigando com o Mackenzie. Jogavam bombas uns nos outros, a polícia entrou com a Cavalaria e acabaram matando um menino, um estudante secundarista. Nisso eu toda: ‘Sou jornalista e tal’. Mas a polícia não vê jornalista. É uma jovem que está lá no meio. Eles me empurraram pra cá e pra lá. Eu falei: ‘Olha que interessante. De repente a minha identidade de jornalista, que eu achei que me protegia, não protege’. Se você está no meio daquela confusão, você é uma das pessoas que estão na confusão. Isso foi muito forte para mim. À noite, no dia seguinte, o corpo de menino que eles haviam enterrado desapareceu. Foi uma coisa muito dramática ir para o cemitério no dia seguinte procurar o túmulo que foi arrombado. Então tudo isso foi muito intenso, no sentido de reflexão sobre a minha vida, os valores que eram da minha família.

Eu moro praticamente ao lado do Pacaembu. Minha casa fica do lado do estádio. Foi onde eu cresci desde os 4 anos. É uma classe média aburguesada, que tem um determinado valor, princípio, uma forma de pensar. Mas, na hora em que você entra na realidade, você começa a entrevistar pessoas de todas as áreas, de todas as camadas — príncipe do Nepal, rainha Elizabeth, a mulher que mora na favela, o menino que morreu porque era terrorista — é tudo ser humano.

Minha primeira matéria que deu primeira e última páginas foi quando o Percival de Souza, que era responsável pela parte policial do Jornal da Tarde, estava de folga. Foi num domingo, eu era a plantonista e um traficante chamado Saponga foi morto. Moisés Rabinovici estava comigo no plantão. Ele já era redator, eu era a repórter. Ele disse: ‘Você vai. Eu vou com você no carro, mas não vou descer. A matéria é sua. É você que tem de fazer’.

Eu falei: ‘Tá bem’.

Aí fomos. Era um Volkswagen pequenininho, um outro mundo. Chegamos à beira de um morro e pra subir tinha umas escadas tortas e uma multidão. Era como uma procissão dos habitantes daquela comunidade para ver o corpo do menino morto. Eu tô subindo essa escada sozinha, o fotógrafo não sei nem onde estava, quando de repente uma senhora negra para do meu lado e diz assim: ‘Você sabe se é meu filho?’.

Eu falei: ‘Como?’.

‘Sabe se quem morreu é meu filho?’

Eu falei: ‘Eu não sei quem é, eu tô subindo também’.

Mas aquilo foi muito impactante, porque poderia ser filho de qualquer um. Quando eu chego, tem um menino, uma criança praticamente, quase um adolescente, deitado cheio de furos de balas e cheio de formigas andando numa pedra ao lado. E os policiais estavam como caçadores numa sanha, excitados, andando à sua volta.

Eu desci, fiz as entrevistas que tinha de fazer, voltei para o carro e, na volta para a redação, o Moisés perguntou: ‘O que foi mais impactante pra você?’.

Eu falei: ‘O corpo do menino cheio de bala, com formiga andando’.

Ele falou: ‘Esse é o seu lide. Começa por aí’.

Essa também foi uma lição extraordinária. Ele me deu toda a liberdade, só falou isso: ‘Seu lide está aí. O que é mais impressionante, o que te impactou mais, é por onde você começa. Não se esqueça de escrever também sobre a senhora que perguntou do filho, que também isso foi impactante pra você’.

Eu escrevi e deu primeira e última páginas. Aí o pessoal da redação fala: ‘Nossa, ela não é só bonitinha. Ela sabe. Ela entendeu’. Foi a primeira vez em que eu fui reconhecida como capaz de fazer uma reportagem inteira. Eu tinha aprendido as lições, as várias aulas que estavam sendo dadas pra mim.

Você chegava na redação e tinha o pauteiro. A gente até brincava: ‘Não vive na flauta quem vive de fazer a pauta’. Nós estamos trabalhando, vamos pra rua, a gente se molha na enchente, quase leva tiro, se mancha de sangue e o pauteiro está lá: ‘Faça isso, faça aquilo’. Aí eles tinham uma plaquinha que dizia isso: ‘Não vive na flauta quem vive de fazer a pauta’. Acho que um de nossos pauteiros nessa época foi Laerte Fernandes, que morreu recentemente.

Convivi com grandes professores. Eu tive essa bênção. O Laerte Fernandes, o Ivan Ângelo, o Murilo Felisberto, o Fernando Mitre. Profissionais formados como se formava antigamente — você vai pra redação, vai ser foca; vai ser mandado, empurrado, vão dizer que é um lixo, joga fora; você fica triste, chora, fica bravo; e de repente você começa a aprender alguma coisa. Naquela época, havia jornalistas mais antigos que inclusive diziam: ‘Não, faculdade não vai ser bom não. Faculdade vai criar vícios, é melhor não fazer faculdade’.

Uma coisa importante que aconteceu nesse processo é que a tecnologia estava começando a bombar. Estamos falando de 1968, 1969, 1970. Então me pediram para fazer um texto sobre sociedades alternativas. Como será esse futuro? A gente achava que ia receber jornais em casa por máquinas. A única coisa que a nossa mente compreendia como modernidade era o fax. Ninguém nem imaginava que teria computador em casa e que receberia jornais pela tela do computador. Pediram para fazer essa matéria e aí eu vou encontrar grupos na Califórnia que já estavam trabalhando sem agrotóxicos, com reciclagem, falando sobre meio ambiente, sobre uma outra sociedade que não estava preocupada com lucro. Era o Zen budismo da Califórnia. Eu falei: ‘Nossa, quem são esses? O que é esse Zen?’. E isso fica dentro de mim.

Na época do fim da Guerra do Vietnã, eu era bem jovenzinha e só tinha três revistas nas bancas de jornais: uma chamava Cruzeiro, a outra Manchete, a terceira era a Fatos e Fotos. Essas três revistas deram na capa a foto de monges vietnamitas que iam para praça pública, chamavam a imprensa, jogavam gasolina no corpo, acendiam um fósforo e ficavam sentados em meditação até a morte. Era muito impressionante. Eu falei ‘Que capacidade de controle é essa? Isso me interessa: controle sobre o corpo e controle sobre a mente’.

Os Beatles meditavam. E me interessavam. Por quê? Capacidade de comunicação em massa. Se estamos falando de comunicação e jornalismo, como é que você acessa tantas pessoas de maneira tão íntima e próxima? Esses meninos meditavam. Eu falei: ‘O que é isso de meditação que tem um autocontrole e uma comunicação de massa incrível?’.

E eu começo a procurar nessa linha. Os meninos do Zen Center de São Francisco, na Califórnia, já estavam vivendo uma alternativa da sociedade. Sem agrotóxicos, com reciclagem, com inclusão social. O monge que foi fundador dessa ordem recebia os hippies na sua casa, que era pequenininha na época em que ele foi pra lá. Eles chegavam sujos, eram aquele pessoas que se revoltavam com a Guerra do Vietnã e diziam ‘Não faça guerra, faça amor’, ‘Não vamos pegar arma, vamos pegar sexo’. Todo esse grupo ao qual não era permitido entrar nos banheiros públicos, que não era recebido nas lojas, será recebido pelo monge com as mãozinhas palma com palma fazendo reverência. Eles vêm meditar com ele e aos poucos o monge diz: ‘Vamos lavar os pés antes de entrar?’. Alguns deles se tornaram grandes professores universitários de Zen Budismo.

Então era um momento de grande mudança. Isso para mim foi fascinante e fui procurar o que era esse Zen, dessa pesquisa no jornal. Por isso digo: 'O jornal para mim foi como se abrisse o tampão da cabeça, dos valores pequenos daquilo que eu tinha lido e estudado. Eu tinha muitos questionamentos. Eu já estava lendo Nietzsche nessa época, estava me questionando sobre ‘que sentido tem a vida?’. Você vê tanta morte, tanto crime, tanta diferença social… ‘Para que eu vivo? Qual o sentido da existência?’.

Aí eu começo a perceber um caminho que se chama Zen. E me acontece uma coisa interessante. Estavam começando a me treinar para ser aquilo que se chama de repórter especial. Aquele que faz matérias mais longas, que fica uma semana procurando, entrevistando muita gente. Me mandaram primeiro para o Nordeste, interior de Alagoas, onde um jovem matou o mandante da morte de seu pai quando fez 18 anos. Ele estava preso na maior euforia na cadeia porque tinha cumprido a missão de sua vida. No dia em que ele nasceu, o pai dele foi morto e a família o educou para vingar o pai. Essa visita ao interior do Alagoas, onde todos da cidade já tinham levado tiros, onde uma mulher prefeita me mostrava na perna as marcas de tiro de metralhadora que tinha levado, foi muito intensa também. Ver a casa de uma família muito pobre, onde de repente alguém bate na porta pedindo comida e a senhora que tinha um quilo de feijão tira metade e dá. Foi muito impressionante. A pele dela e do marido, que estava deitado na cama, era como uma sola de sapato, um couro seco, sem carne dentro. Eles diziam para mim: ‘Eles (o governo) mandam remédios para nós. Nós precisamos de comida’. Muitas casas no Nordeste tinham cruzes pretas na porta, porque as pessoas fugiam da seca.

Monja Coen Roshi fala de seus tempos de jornalista a alunos e professores da FAAP. Fotos: Gianna Staniscia

Esses aspectos vão me impressionar muitíssimo: a sociedade alternativa, a tecnologia que estava começando, a possibilidade de uma vida diferente da que estávamos vivendo, o Saponga que morreu. Coisas muito intensas para mim. Nesse texto que eu escrevi do Nordeste, teve até um cordel. De novo deu primeira e última páginas. Fiquei uma semana lá, tirei foto até do Bahia jogando. Nisso eles falaram ‘A moça virou jornalista mesmo’. Começaram a me incentivar a fazer matérias mais longas, mais trabalhadas.

Numa delas tinha um barco, que viajava de Santos para Angra do Reis. O dono do barco era amigo do (diretor do 'Jornal da Tarde') Ruy Mesquita. Ele queria divulgar o projeto de um turismo diferente, então fui eu e uma fotógrafa argentina. Estávamos lá no barco entrevistando as pessoas sobre o propósito de estarem ali. E tinha um menino, um adolescente cheio de espinhas, que se achava um horror, um feinho. Eu e ela levantamos a bola do menino, dizendo :‘Espinhas saem, você é lindo’. E terminamos a viagem amigas de todos.

Escrevi o texto. Um texto longo, muito trabalhado. Mas, quando vejo publicado no dia seguinte, ele tinha sido todo alterado — e assinado. Eu fiquei muito brava: ‘Vocês modificaram meu texto. Vocês ofenderam esse jovem’. Eu tinha escrito numa frase ‘fulano que se acha feio’ e eles colocaram ‘fulano que é feio’. Eu falei: ‘O que vocês fizeram pode acabar com a vida de alguém. Ele não vai mais confiar em ninguém. Eu e a fotógrafa que ficamos o tempo todo dizendo que ele não era feio e eu vou lá e escrevo que ele era feio? Isso é imperdoável. O resto não tem importância, mas isso pode afetar a vida de um adolescente para sempre e eu não aceito.’

Fui perguntar para o copy desk: ‘Por que você mudou?’ ‘Ah, porque eu estava com pressa. Minha mulher estava me chamando em casa’. ‘Não, isso nunca existiu aqui’, eu disse. Quando nós assumimos essa redação, depois que o pessoal saiu para a Veja, o jornalismo era muito romântico. Nós ficávamos até as 2 ou 3 horas (da manhã) se precisasse. Ninguém se importava com o tempo. Tinha uma coisa que era a arte, que era a notícia, que era o texto. De repente aquilo não era mais importante? ‘Minha mulher me chamou e eu matei o texto?’ Não pode. Meu texto foi assinado, então você não assinasse’.

Eu fiquei muito chateada e pedi uma licença. ‘Quero uma licença. Vocês me põem para entrevistar todos os estrangeiros que vêm visitar, então eu vou para a Inglaterra aprender inglês porque o meu não é suficiente para essas coletivas que estão me mandando’. Fui para passar acho que 3 ou 6 meses e resolvi que iria ficar lá mais de um ano. Aí escrevi uma carta colorida para o Ruy Mesquita avisando que eu não iria voltar. Tinha letras amarelas, vermelhas, azuis, um festival de cores, que era o que eu estava vivendo. Foi um desabrochar de ‘Nossa! Morar na Inglaterra!’. Estavam lá o Gil e o Caetano. Eu fui para o espelho mágico do mundo, para algo muito intenso que estava se vivendo lá, fiz experiência com drogas múltiplas, à procura de Deus, do caminho, do sentido da vida. Passei por todas essas experiências, voltei para o Brasil e o Dr. Ruy disse: ‘Seu lugar está aqui. Na hora em que você quiser voltar para a redação, sua posição está aqui’. Fui falar com o Murilo Felisberto, que era chefe de redação, e o Murilo disse: ‘Não, eu prefiro que você não volte, porque eu não gosto de gente que fica no vai e vem. Se você abandonou o jornalismo, se você foi em outra direção, desenvolva essa outra direção’.

E aí é que eu começo a procurar. Nessa procura, eu acabei me casando com um norte-americano, fui morar nos Estados Unidos e lá descobri o Zen. Eu gostava de meditar e o livro de meditação mais impactante que li foi o de uma jornalista norte-americana que chamava Ondas Mentais Alpha, no qual ela entrevistava inúmeras pessoas sobre o estado alpha mental, que pode ser acessado por meio de eletrodos ou através da meditação. Ela entrevista um monge e pergunta: ‘Monge, disseram que se não quiserem ficar meditando, que é cansativo, dói as costas, dói a perna, a gente pode ir numa clínica, colocar eletrodos e acessar o samadi, o mesmo nível de profundidade dessa experiência da meditação. O que o senhor acha disso?’. Ele então respondeu: ‘Se a ciência disse que é possível, é porque é. Mas por que vocês querem entrar pela janela?’.

Essa frase me pegou e eu falei: ‘Eu quero a porta’. Eu estava trabalhando, tinha arranjado um emprego no Banco do Brasil. Nos intervalos, eu escrevia livros, que era o que eu gostava de fazer, e falei ‘Vou procurar o Zen’. Procurei na lista telefônica e tinha lá “Zen Center”. Telefonei, tinha uma aula domingo de manhã, fui para essa aula e nunca mais saí. Isso de repente. Na hora em que eu entendi o que era o Zen, ele deu todo sentido às minhas experiências. Eu já estava com uns 28 anos de idade. Essas minhas questões tinham começado com 11 e se intensificado muito na redação com 19. Você veja, quase dez anos depois eu vou entrar no Zen Budismo e falar: ‘É isso aqui. Isso dá sentido para tudo o que eu estava me perguntando’. Aí eu fiquei. Pedi para me tornar monja e o professor que estava lá falou: ‘Imagine, você é de uma família cristã, como é que vai virar budista?’ Eu falei ‘Eu aprendo’. E minha mãe aqui no Brasil questionando: ‘Mas, minha filha, por que você não vai ser freira? Vai ser católica’. Mas minha mãe gostava muito de Psicologia, era pedagoga, trabalhava no Ministério da Educação e leu um livro do Erich Fromm que dizia ‘Zen é Psicanálise’. E porque o Erich Fromm apoiava o Zen ela me apoiou. E assim eu me tornei monja.

Agora eu tenho um jornalzinho na comunidade, que é trimestral, eu organizo e faço com alunos. Escrevi durante algum tempo para a Folha de S. Paulo, tinha uma coluna no jornal Agora, que viraram dois livrinhos meus: Viva Zen e Sempre Zen. Escrevi para O Globo, no Rio de Janeiro, até que teve o impeachment da Dilma Rousseff e eu a comparei com a Cinderela — as pessoas que estavam fazendo o impeachment eram a madrasta e as irmãs malvadas. Eles não publicaram esse texto e me disseram: ‘Nós estamos dispensando nossos colaboradores’. Eu não podia negar minha posição naquele momento, aí parei de escrever para O Globo. Agora tenho uma coluna quinzenal no Zero Hora, do Rio Grande do Sul, e escrevi um monte de livros. Mas os livros não foram porque eu escrevia e ia atrás das editoras, ao contrário. As editoras começaram a me procurar e dizer: ‘A senhora escreveria um livro?’. E eu falava: ‘Tá bom’. Então tenho livros pela Planeta, pela Papiros, vou ter agora pela Vozes, pela Record. São solicitações dos editores para mim. Eu nunca escrevi um livro em que perguntei: ‘Quem vai editar isso?’. E é sempre aquela história: se não tem um contrato assinado e não tem um prazo, eu não faço. O que eu aprendi no jornal é isso: ‘Tem de ser para agora’. Isso foi muito bom. Outra coisa maravilhosa de trabalhar num jornal é que você trabalha uma semana num texto, fica lá mais um mês escrevendo aquela coisa, é quase um parto, algo difícil, você faz e no outro dia vê no açougue embrulhando um pedaço de carne.

É a transciência. Nada fixo, nada permanente. É o primeiro ensinamento de Buda: tudo está em constante transformação. Mesmo aquele texto que você achou maravilhoso é lixo no dia seguinte. Isso para mim foi muito forte. Trabalhar no jornal, ser repórter da Geral, sentir essa intensidade da vida, em que cada dia é uma novidade, você não sabe para onde vai, de que cena estará participando e, ao mesmo tempo, o fato de aquilo tudo que você pode fazer dali a dois dias ser lixo.

A vida é movimento e transformação e essa foi a transformação que aconteceu em mim. O que é a realidade? O que é a vida? O que nós estamos fazendo aqui? É possível mudar o mundo? Minha conclusão, através das práticas meditativas onde eu vou fazer meu voto monástico, é de que a transformação de cada um de nós é a transformação da sociedade e não são projetos políticos, econômicos ou sociais que vão fazer a grande transformação do mundo. É cada um de nós que muda. Foi aquele livrinho do Trotski, foram todas essas experiência que eu vivi. Aquele historiador de Israel que esteve aqui no Brasil, o (Yuval) Harari, vai dizer a mesma coisa que eu: A meditação vai ser a grande alavanca de transformação social-política-econômica do mundo. Porque é cada um de nós que acorda, que desperta, que percebe que nós somos esse todo manifesto. Eu não sou parte do todo, eu sou o todo manifesto e percebo que todas as formas de vida contribuem para a minha existência e para a existência desse todo. E você passa a ser alguém que cuida, cuida com respeito, sabedoria e compaixão. Essa é minha vida agora. Como é que eu transformo o mundo que eu queria transformar com 19 anos, sendo eu a transformação que eu quero? Sendo mais macia, mais acolhedora e procurando auxiliar as pessoas a despertar, a ter um olhar mais amplo da sociedade?

Eu acho que essa é a função do jornalismo. Se eu conto um crime, um assassinato, eu conto também sobre aquele que não assassinou, aquele que ficou com vontade e não fez, aquele que foi capaz de se controlar. Se eu conto que houve um desmoronamento, de Mariana, por exemplo, eu também vou contar a vida desses maravilhosos bombeiros que salvaram tanta gente e da outra usina, em algum outro lugar do mundo, que percebeu a falha e consertou antes que arrebentasse. O outro lado da moeda tem de ser posto e a gente não põe. Só agora é que estão começando a falar de quantos se contaminaram (com covid-19) e sararam, porque só falavam dos contaminados que morreram. Mas nós temos de dizer quantos foram contaminados, porque o número é muito maior do que o dos que morreram. Claro que a gente tem de lastimar cada morte. Mas também tem de lembrar que há curas, que há meios de curar. Que médicos, enfermeiros e cientistas estão encontrando remédios para as várias covids, que não são uma só. Então, se a gente dá o lado da tragédia, da morte e do horror, a gente sabe também do outro lado, daquilo que está sendo desenvolvido e de que tem gente se curando. Não é pôr uma peneira no sol, mas mostrar que tem luz e sombra em todos os lugares. Porque as pessoas ficam muito desesperadas. As notícias são só assassinato, os bandidinhos que estavam quietinhos e de repente voltaram. Estão assaltando, estão roubando, estão matando. Feminicídio. E dizer que foi por causa da pandemia que aumentou o feminicídio e o abuso em casa… Mentira, já existia. É que agora tem mais denúncia. A única diferença é essa, sempre houve. Dizer que criança que vai à escola não vai ser abusada. Criança é abusada em escola por professores, por orientadores, por outras crianças. Então dizer que a escola é o meio de salvação, não é bem assim. A gente sabe como pode ser. Vocês que trabalham aqui na FAAP sabem disso. Adolescentes podem ser muito cruéis com outros adolescentes. Podem excluir socialmente e a gente tem de trabalhar para que isso não aconteça, para que a gente perceba que, mesmo que venha de uma classe social diferente, você pode acolher o ser humano. Se a gente não trabalhar com o princípio básico da educação, que é a formação de seres humanos livres e responsáveis, não é só passar matéria, não é currículo que vai fazer o crescimento no ser humano. Jornalismo é isso. Não é apenas passar uma informação de qualquer jeito. O que está formando o quê? Está formando opinião. Dar oportunidade para as pessoas terem sua opinião. Não a minha opinião, a opinião de quem está escrevendo apenas, mas para fazer pensar e ter opiniões diferentes que façam as pessoas se lembrar de que é possível criticar até aquele que você mais admira e ter pensamentos que vão enriquecer nossas possibilidades de escolhas. Então não pode ter jornal que só pensa assim, comentaristas que só pensam assim, mas ter a multiplicidade de olhares, para que cada um de nós possa escolher o caminho. E esse caminho não é definitivo, você sabe que em um determinado momento você pode pensar diferente, alguma experiência pode mudar a sua maneira de ser no mundo e você com facilidade poder ir para esse olhar.

Uma vez eu estive em um encontro de professores. Um deles, de Portugal, dizia assim: ‘Quando você tem um dinheirinho, um cartão de crédito, você compra uma coisa e o dinheiro que você tinha não tem mais. Quando você tem uma ideia e troca essa ideia com alguém, você fica com duas ideias. Você não precisa brigar com o outro. Você aprende que tem outras ideias e a sua capacidade de conexões neurais vai expandindo. Quanto mais conexões neurais, mais inteligência e mais capacidade de discernimento correto’.

Acho que essa é a função principal da mídia, do jornalismo, da comunicação: fazer com que as pessoas façam mais conexões, não menos. Mais. Para ter mais expansão de consciência. Quanto mais pessoas inteligentes, hábeis, com discernimento correto, mais saudável a sociedade.

Eu adoro as redes sociais. Elas podem ser bem profundas. A gente tem o (Luiz Felipe) Pondé, a gente tem o (Mário Sérgio) Cortella, a gente tem o professor Clóvis de Barros Filho, a gente tem a Maria Homem, a gente tem uma multidão de literatura, de poesia, de filosofia, de história nas redes sociais. A superficialidade é daqueles que estão superficiais, mas às vezes até essa superficialidade pode alcançar profundezas incríveis. Então não é 'abaixo às redes sociais', não. O que a gente perdeu é um pouco do hábito da leitura. A gente quer textos bem curtinhos, coisas bem imediatistas. Mas é interessante. O professor Clóvis está lançando uma proposta de leitura de textos clássicos e ele disse que, se mil pessoas se inscreverem, ele vai acessar um milhão de pessoas, porque ele vai oferecer isso gratuitamente em todas as escolas públicas e para todos os professores. Professores que não leem não ensinam aluno a ler. Então tem alguma coisa a ver com educação quando a gente fala das redes sociais. Agora nós vamos aprender a ter aulas pelas redes sociais. Veja que coisa importante: rede social é elemento de comunicação em massa. Nós temos que aprender a usá-las para o bem coletivo. Não só para brincadeira. A brincadeira existe e é importante, lúdica. Mas ela também pode fazer as pessoas refletirem, ter pensamentos mais lógicos, questionamento sobre a própria existência. Ela não é só superficial. Você pode encontrar coisas maravilhosas nas redes sociais e na tecnologia para nos ajudar. Não para nos controlar, mas para podermos usar essa tecnologia para o bem, a educação, a saúde, a reflexão. É maravilhoso, não tenho nada contra.

Deus eu encontrei e perdi. Porque é maravilhoso. Dentro do Zen Budismo nós não temos o conceito de Deus. Buda dizia que tudo o que existe tem causas e condições. E alguém pergunta: ‘Qual era a causa primeira?’. Seria um conceito de Deus e Buda silencia. Ele não diz se existe ou não existe. Em outro momento, ele diz assim: ‘A mente humana é muito pequena para compreender aquilo que é muito maior do que a mente humana’. Então não existe uma negação, mas o Budismo é uma religião não teísta. É uma das poucas religiões do mundo, talvez a única, não teísta, não tem conceito de Deus. Buda não é Deus. Buda é um ser humano que acorda e desperta, que vê a realidade como ela é e trabalha nessa realidade para que o maior número de seres acordem, despertem e vivam com coerência ética. Isso vai ser assim um dia para toda a humanidade? Talvez. Eu trabalho para isso, muitos trabalham para isso. Eu vou ver acontecer? Não, não vou. E por que eu não vou ver não vai acontecer? Não sei. O que eu posso fazer é colocar essas sementinhas. A busca por Deus é muito importante e eu gostaria que todos vocês se perguntassem: o que é Deus? O que você chama de Deus? Onde está? Como se manifesta? Será que é alguma coisa separada de você? Será que está em algum lugar de você? Ou será que se manifesta em cada partícula e no todo? Será que é onipresente ou onisciente? O que é isso? O que é onipresença e onisciência? Pergunte-se. Não pegue só uma palavra e fique usando como um jargão que não tem sentido, que só está repetindo expressões que sua avó te ensinou. O que é? Isso leva a pessoa a despertar. 'A procura é o encontro, o encontro é a procura.' Essa frase eu ouvi, achei maravilhosa, comecei a repetir e descobri recentemente que era de um bispo argentino, que hoje se chama papa Francisco. O papa Francisco quando era bispo falou essa joia: 'A procura é o encontro, o encontro é a procura'. Por isso eu digo que a gente encontra e continua procurando.

Sejam grandes comunicadores. Mas saibam que aquilo que você passa você tem de acreditar primeiro. Porque se você não acolhe no seu coração vai ficar meio falseado. Questione-se, pergunte-se, vá adiante!”

Monja Coen e alguns dos participantes da conversa virtual na Semana de Comunicação. Foto: Luciana Garbin

* A edição do relato da Monja Coen Roshi em texto e vídeo foi feita por Isabela Guaraldi e Gianna Staniscia, alunas de Jornalismo da FAAP, sob supervisão da Prof. Luciana Garbin

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