Por dentro da Ocupação 9 de Julho, um símbolo da luta habitacional em SP

LabJor FAAP visita prédio com 124 famílias que tem galeria de arte, horta comunitária e almoço aberto ao público aos domingos

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6 min readJun 23, 2022

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Beatriz Negrão

Um antigo prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) localizado na Avenida Nove de Julho é hoje o lar de 124 famílias, distribuídas em 14 andares. O espaço onde vivem cerca de 500 pessoas conta com brechó, marcenaria, cozinha coletiva e refeitório, sala de convivência, biblioteca e brinquedoteca, galeria de arte, quadra, horta comunitária e estacionamento. Por mais de 20 anos, ele permaneceu vazio e degradado até ser ocupado em 1997. Após processos de reintegração de posse e desocupações, ele foi novamente ocupado em 2016 pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e se tornou a Ocupação 9 de Julho.

Almoço dominical é aberto ao público. Foto: Bia Negrão

Quem coordena tanto o espaço quanto o MSTC é Carmen Silva, uma baiana que chegou em São Paulo nos anos 1990. Mãe de oito filhos, ela decidiu se arriscar sozinha em busca de uma vida melhor após ser vítima durante anos de violência doméstica. Carmen conta que, ao chegar à cidade, percebeu que as oportunidades “tinham cor, sotaque e CEP”. Depois de algum tempo lutando para pagar aluguel e contas, a baiana não viu outra opção a não ser morar nas ruas. Durante período como sem-teto, conheceu dezenas de mulheres como ela. Principalmente negras, mães solo, trabalhadores que tinham de escolher entre comer ou pagar aluguel. Foi neste momento, diz, que entrou para o movimento dos sem-teto. Urbanista prática, a ativista dá aulas de Urbanismo no Insper e tem parceria com a Escola da Cidade, além de receber especialistas de várias áreas nas ocupações que prestam assessoria técnica ao MSTC.

A ativista Carmen Silva. Foto: Rodrigo Zaim/ Instagram Carmen Silva

A Ocupação 9 de Julho fica no bairro da Bela Vista, a uma quadra da Rua Avanhandava, famosa por seus restaurantes. Também está a alguns quarteirões do Parque Augusta e da Praça Franklin Roosevelt, área repleta de prédios com altos aluguéis. Em aula magna dada no curso de Arquitetura da FAAP em 5 de abril, Carmen Silva elucida a importância da localização de um CEP:

“Por que morar no centro? Além da questão do endereço, a correlação do endereço com o trabalho, nós tínhamos já o saneamento e não precisávamos ir para longe, jogar lixo na beira dos córregos. Morar no centro é ter acessibilidade. E ter acessibilidade é ir a pé até o trabalho, ou muitas vezes pegar um transporte que não dura tanto tempo, é ter acesso a uma creche, é ter acesso à educação, a uma faculdade, a uma escola, ter acesso a uma diversão, até porque a cultura é fundamental” .

O LabJor FAAP visitou a Ocupação 9 de Julho em 22 de maio e encontrou um prédio quase camuflado no meio de tantos edifícios comuns. Sua fachada tem com muro grafitado e um pequeno portão que leva ao seu interior. A primeira coisa que se vê é um pátio aberto que dá acesso aos apartamentos, à quadra, à horta e a outro pátio que, aos domingos, recebe dezenas de visitantes para um almoço a céu aberto, feito na cozinha da ocupação e que recebe periodicamente chefs gastronômicos. Custa R$ 35 por pessoa. Além dele, ocorre também uma pequena feira, onde são vendidos itens de moda, livros e até uma cerveja produzida pelo MSTC.

Cenas da ocupação e a cerveja produzida artesanalmente pelo MSTC. Fotos: Bia Negrão

Carmen explica como começa uma ocupação. “Primeiramente nós formamos grupos de base para as pessoas entenderem que não somos a solução nem uma imobiliária. Nós estamos ali em uma briga política, que é a efetivação da política pública habitacional, então tem toda a parte burocrática e de documentação. A primeira coisa que nós fazemos é a ressocialização, é mostrar às pessoas que temos de ter documentos. Nisso vamos colhendo um relatório de todas as necessidades de quem chega até nós e vamos abrindo negociações com os órgãos competentes.” Com a parte documental resolvida, o MSTC vai atrás de prédios abandonados e com grandes dívidas de IPTU. Segundo ela, o Estado de São Paulo tem um espólio devedor de R$ 162 bilhões de IPTU e ISS. “Muitas vezes quando entramos nesses prédios abandonados as pessoas chamam a polícia e nos chamam de vagabundos, mas não somos nós que estamos fora da lei”, afirma.

A formalização da ocupação ocorre quando a polícia chega e leva as lideranças do movimento para a delegacia. Lá é feito um boletim de ocorrência e se espera o pedido de reintegração de posse. É nesse meio tempo que o movimento começa a orientar as pessoas a se estabelecer no território, fazendo por exemplo um cartão na Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima, matricular as crianças nas creches e escolas da região etc. Também é iniciada a limpeza do local. “Nós retiramos toneladas de lixo e fazemos a limpeza do prédio sem nenhum auxílio do município”, diz Carmen. Tanto para essa limpeza inicial quanto para a conservação do prédio cada família paga um valor mensal de R$ 220. A contribuição engloba também contas de água e luz, portaria 24 horas, câmeras de seguranca, extintores e alarme de incêndio.

Carmen Silva conta que a ideologia básica de quem mora na Ocupação 9 de Julho tem de ser sempre deixar o espaço melhor do que quando entrou. Assim, o lugar sempre estará pronto para receber o próximo morador.

Horta da ocupação, geladeira com livros e homenagem à vereadora carioca Marielle Franco, assassinada no Rio. Fotos: Bia Negrão

Fernanda Soares tem 33 anos, mora na Ocupação 9 de julho desde 2020 e já tem uma antiga ligação com a luta habitacional. “Desde que me entendo como gente, sempre vi minha mãe participando de diversos movimentos por moradia em São Paulo”, lembra. “Minha história no movimento começou depois que fiz amizade com a (ativista) Preta Ferreira. Éramos do mesmo bairro e tínhamos os mesmos amigos. Ficamos muito próximas e a partir daí conheci o MSTC e a Carmen. Eu só não morava nas ocupações porque na época trabalhava e, apesar das dificuldades, eu e minha mãe tínhamos condições de manter um aluguel.”

Fernanda conta que saiu de São Paulo por causa de seu trabalho e chegou a morar no Rio de Janeiro e em Curitiba. Com a pandemia, perdeu o emprego e foi morar na Ocupação 9 de Julho. “Consegui emprego com a Carmen no centro de pesquisa educacional Casa Verbo. Ajudava no escritório e logo me convidaram para trabalhar. Também comecei a auxiliar na cozinha, onde vivi uma experiência maravilhosa. O MSTC sempre fortalece as famílias, seja empregando, seja com atividades inclusivas e/ou com doações.”

Fernanda Moraes, moradora da Ocupação 9 de Julho. Foto: Acervo pessoal

Para ela, as desvantagens de morar no local são bem menores do que as vantagens. “Às vezes o que se torna negativo é que não temos nossa legalização de água e luz, algo que é importante em qualquer cidade. Outro ponto é a falta de informação das pessoas quando falamos de uma ocupação e de morar no centro. Mas aqui as pessoas se ajudam e lutam juntas. Uns cuidam dos outros. Esse é um sentimento que só vi aqui.”

Beatriz Negrão é aluna de Jornalismo da FAAP

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