Por que há pouco espaço para as mulheres no cinema

Estudos apontam evolução da participação feminina, mas caminho para igualdade ainda é longo para alguns cargos; cineastas comentam as saídas para obter maior protagonismo

LabJor
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Cecilia Machado, Isabela Andrade, Mariana Mariotto e pedro a duArte*

O dia 22 de janeiro de 2020 é um marco na história do cinema nacional. Nele, Minha Mãe é uma Peça 3 alcançou a maior bilheteria do País, ultrapassando R$ 140 milhões. O filme é o único — entre os 10 nacionais mais populares — dirigido por uma mulher: Susana Garcia. Antes dela, Gilda de Abreu também conquistou uma multidão de espectadores com O Ébrio (1946) — estima-se que tenham sido 5 milhões nos quatro primeiros anos. Mas, considerando-se que as mulheres correspondem a 51% da população brasileira, é de se estranhar que apenas duas diretoras tenham conseguido recordes de bilheteria em 123 anos de história do cinema brasileiro.

Não se trata de uma questão apenas local. O Oscar 2020 não teve uma única mulher indicada na categoria direção de longa-metragem de ficção. Em 91 anos, o prêmio de cinema mais pop do planeta indicou apenas cinco mulheres para a categoria: Lina Wertmüller (em 1977), Jane Campion (1994), Sofia Coppola (2004), Kathryn Bigelow (2010) e Greta Gerwig (2018). Delas, só Bigelow levou a estatueta, por The Hurt Locker (no Brasil, Guerra ao Terror)

O Oscar 2020 também foi marcado pela forte presença de produções internacionais. Uma das indicações para melhor documentário foi Democracia em Vertigem, dirigido pela brasileira Petra Costa. Apesar de não ter sido premiada, ela se tornou a única mulher a já ter representado o Brasil. As outras seis indicações de brasileiros foram para homens.

A mulher geralmente aparece em segundo plano em grandes produções cinematográficas. A donzela em perigo, a namorada e a piranha são alguns dos estereótipos. Apesar de algumas exceções, o gênero feminino costuma ser mal representado ou pouco visto em filmes. E a questão que se levanta é: a presença da mulher como diretora ou roteirista pode mudar esse cenário? Para responder a essa pergunta e compreender o que envolve a questão da participação feminina hoje no audiovisual, o LabJor FAAP conversou com sete profissionais ligadas ao cinema, entre diretoras, roteiristas, produtoras e professoras. O resultado está abaixo.

Histórias criadas por mulheres

Da esq. para a dir., em cima, Malu Andrade, Tata Amaral e Tainá Xavier; na fileira do meio, Anna Muylaert, Alison Bechdel, Justine Otondo, Luciana Rodrigues, Geena Davis e Susana Garcia; embaixo, Laís Bodanzky, Coletivo Elviras, Petra Costa e Débora Ivanov. Arte: Mariana Mariotto

“Cada um constrói a narrativa de acordo com sua vivência e sua experiência. Aquilo que a gente se acostumou a compreender como uma narrativa ‘normal’ é uma narrativa de homens brancos heterossexuais”, comenta Tata Amaral, de 59 anos, diretora de Antônia (2006).

O filme conta a história de uma banda musical feminina de uma favela de São Paulo e de uma mulher que quer educar sua filha com sua arte. “A história foi construída a partir dessa minha experiência de ser uma artista, de fazer questão de buscar meios de lutar para educar minha filha — para cuidar dela nessa condição profissional e sobreviver disso com dignidade”.

Questionada sobre seu processo de criação de personagens femininas, Tata afirmou: “Vem do meu lugar, de onde eu estou e do que eu observo. Então de certa forma é natural. Mas é um natural construído também”.

Para a cineasta e presidente da Spcine, Laís Bodanzky, de 50 anos, estamos ainda numa etapa de aprendizado e mudança de hábito quando o tema é a participação feminina no audiovisual. O mais grave, em seu ponto de vista, é o fato de, mesmo com mulheres ocupando cargos importantes, as narrativas não necessariamente respeitarem as mulheres: “A gente está tão viciada na narrativa do ponto de vista masculino que reproduzimos esse discurso por força do hábito, sem nem perceber”.

Para Laís, é necessário apontar o dedo, no sentido positivo, para atitudes que podem ser degradadoras do papel da mulher. “Toda mudança de hábito é lenta até a gente interiorizar e isso se tornar automático”, comenta.

Professora do curso de Cinema e coordenadora da pós-graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisual da FAAP, Luciana Rodrigues, de 51 anos, debate a visão da mulher nos filmes e acha que as narrativas cinematográficas dominantes reforçam modelos femininos que precisam ser superados urgentemente. “Vão nos tratar como loucas, tontas, frágeis ou interesseiras, sempre gravitando em torno dos personagens machos viris”, afirma. “Essa valorização dos estereótipos da santa ou da bruxa em nada colabora com a luta pela emancipação das mulheres.”

Em 1985, a cartunista americana Alison Bechdel criou um teste que mede a representação do papel da mulher. Ele surgiu numa tirinha chamada The rule (do inglês, A regra) para a série Dykes to watch out for (em tradução livre, Sapatões para se prestar atenção), sobre a vivência lésbica da Nova York dos anos 1980. Simples, o chamado Teste de Bechdel avalia se um filme faz bom uso de personagens femininas. As regras são ter duas personagens com nome, ao menos uma cena em que elas conversem entre si e o papo não ser sobre homem. Alison creditou a ideia do teste a uma amiga, Liz Wallace, que por sua vez se inspirou no ensaio A Room of One’s Own (Um Teto Todo Seu), escrito por Virgínia Woolf em 1929.

“Ficou evidente que vários filmes não passariam no teste”, comenta a produtora Justine Otondo, de 45 anos. “Isso tudo acabou refletindo em decisões de estúdios de ter filmes protagonizados por mulheres e diretoras assumindo cargos até então delegados exclusivamente a homens.”

Malu Andrade, diretora de Desenvolvimento e Políticas Audiovisuais da Spcine. Foto: Acervo pessoal. Arte: Mariana Mariotto

Diretora de Desenvolvimento e Políticas Audiovisuais da Spcine, Malu Andrade, de 39 anos, lembra que a partir do teste a sueca Ellen Tejle criou um selo e passou a aplicá-lo no cinema que administra em seu país. Desde então, ele vem rodando o mundo.

Malu conta que no Brasil o selo chegou por meio da produtora Débora Ivanov, na época diretora da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que procurou Ellen para que ele fosse lançado pelo grupo Mulheres do Audiovisual Brasil. Hoje quem tomou frente para mantê-lo vivo foi o Coletivo Elviras, um grupo de mulheres que escreve críticas de cinema. “Gostaria muito de adotá-lo também em nossas ações de difusão na Spcine”, diz. “Espero que isso saia do papel em breve.”

Laís Bodanzky e Tata Amaral comentam que uma parte de seus filmes não passaria no teste. “E olha que desde os meus primeiros longas eu trabalho com o arquétipo exclusivamente feminino”, diz Tata. “É muito interessante porque traz a discussão. É uma coisa matemática, são parâmetros claros.” Ela imagina aplicar o teste ao contrário e buscar uma cena onde dois homens com nome tenham um diálogo que não seja sobre mulheres. “Você vai encontrar muito mais filmes. O teste ao contrário revela uma discrepância.”

Laís Bodansky, diretora, roteirista, produtora e presidente da SPCine. Foto: Diego Vara (Pressphoto). Arte: Mariana Mariotto

Malu, Laís e Tata destacam ainda a importância de se levar a história de mulheres negras para telas de cinema. “Minha função é dar mais espaço e visibilidade para as mulheres, negras principalmente”, diz Laís.

Para Malu, a presença de protagonistas, diretoras e roteiristas negras traz outros olhares, temas e formas de abordar um mesmo assunto. “A Geena Davis tem uma frase maravilhosa: ‘If she can see it, she can be it’ (‘Se ela pode ver isso, ela pode ser isso!’). Ou seja, a representatividade importa.”

Já Tata Amaral acredita que, quanto mais variedade de experiências e vivências as mulheres produtoras de conteúdo possuem, mais possibilidades de personagens femininos vão existir.

“À medida que o cinema é um meio de expressão, a subjetividade feminina pode oferecer outros olhares e sensibilidades para o mundo através dos filmes”, confirma a diretora financeira do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine) e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Tainá Xavier, de 42 anos.

Ela também chama a atenção para o papel da mulher negra: “O fato de habitar um corpo negro em um país racista como o Brasil faz com que essa mulher vivencie os mesmos espaços que a mulher branca de formas muito diferentes”.

Para Tainá, seria importante expor olhares e experiências da mulher negra, tanto do ponto de vista estético quanto político, “já que historicamente esses olhares têm sido invisibilizados na nossa cultura”. Mas ela reconhece que a missão não será fácil. “Se a produção se direcionar majoritariamente para produtos comerciais com pouco espaço para expressões subjetivas, experimentações e olhares diversos, me pergunto se haveria espaço para essa variedade.”

Luciana Rodrigues sente a diferença de tratamento entre os sexos feminino e masculino: “As mulheres fazem filmes, mas proporcionalmente seus filmes são exibidos e premiados em uma escala bem menor do que os ‘bons filmes masculinos’”. Para ela, há um círculo vicioso onde filmes realizados por mulheres, com temáticas que fogem às dominantes e patriarcais, não são tão vistos. “Isso desestimula a participação de mulheres no mercado cinematográfico e as narrativas seguem sendo as dominantes.”

Evolução nas exibições de cinema

Entre 2013 e 2018, o porcentual de longa-metragens dirigidos por mulheres exibidos comercialmente em salas de cinema aumentou 9%. Se em 2013 23 dos 118 longas exibidos haviam sido dirigidos por mulheres, em 2018 tivemos 47 dos 164 filmes.

Esses dados foram obtidos por meio da análise de uma tabela disponível no site do Observatório de Cinema e Audiovisual (OCA). Ela mostra longa-metragens exibidos comercialmente em salas de cinema do País entre 2009 e 2018. A pesquisa eliminou filmes estrangeiros, bem como coproduções de Brasil e outros países, e focou nos anos de 2013 e 2018 (o filme precisava ter sido lançado e exibido naquele ano). Foi verificado tanto quem assinava a direção quanto o roteiro.

A análise apontou que, em termos de gênero cinematográfico, o Brasil produz de maneira quase equilibrada documentário e ficção, mas pouca animação — chegando a apenas um filme nos anos analisados.

Também há pouquíssimas obras brasileiras dirigidas ou roteirizadas por mulheres. Em 2013, 13,56% dos longa-metragens exibidos em salas de cinema comercialmente foram dirigidos por mulheres, ao passo que 80,51% tinham a assinatura de homens — os demais (5,93%) foram dirigidos em regime de coprodução (mais de uma pessoa assinando a direção) com gênero misto (pelo menos um homem e uma mulher). Já em 2018, 20,12% dos longas foram dirigidos por mulheres, enquanto 8,54% foram em regime de coprodução mista. Ou seja, houve um aumento de 9,17% na participação feminina.

Em roteiro, a presença das mulheres é um pouco maior. Em 2013, 12,71% dos filmes foram roteirizados por mulheres e 21,19% em regime de co-autoria. Em 2018, 14,02% dos filmes tiveram roteiro assinado por mulheres e 21,95% em regime de parceria, totalizando um aumento, tímido, de 2,07%.

É interessante notar que há mais mulheres trabalhando em documentário do que em ficção. Em 2013, 17,39% dos documentários foram dirigidos por mulheres (mais 8,70% em regime de codireção), ao passo que 11,43% das ficções foram dirigidas por mulheres (4,29% em regime de codireção).

A Ancine também disponibiliza em seu site estudos sobre a participação feminina no audiovisual brasileiro referentes a 2015, 2016 e 2018 e permite comparação com 2009 em diante. Os trabalhos incluem longas e curtas exibidos em salas de cinema e na televisão e analisam o porcentual de mulheres em funções como produção executiva, direção de fotografia e direção de arte, além de direção geral e roteiro.

Em 2018, 19% dos Certificados de Produto Brasileiro (CPBs) — licença para apresentar filmes em espaços de exibição — foram para obras dirigidas por mulheres. A presença delas era de 18% em roteiro, 34% em produção executiva, 53% em direção de arte e apenas 12% em direção de fotografia. Uma das explicações para a igualdade de gênero em produção executiva e direção de arte é o fato de essas funções serem tidas como mais apropriadas para mulheres. Observando-se a participação mista, é possível reparar que, de fato, a presença das mulheres na função de roteirista é maior do que na de diretora.

Separando por gênero cinematográfico, 24% dos CPBs emitidos em 2018 para filmes de animação foram para obras dirigidas por mulheres. Em documentários, esse porcentual era de 33% e na ficção, 22% — confirmando a maior presença feminina nos documentários.

Em um gráfico comparativo de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018, é possível notar a evolução da participação feminina em direção. O gráfico oscila, mas é possível perceber um aumento de 12% nesse quesito entre 2014 (10%) e 2018 (22%). No gráfico comparativo de roteiro, ocorre o mesmo: o aumento entre 2014 (14%) e 2018 (22%) foi de 8%.

Tata Amaral, diretora e roteirista de cinema. Foto: André Michilles. Arte: Mariana Mariotto

“Se a gente tem 19% de mulheres dirigindo e escrevendo filmes de longa-metragem lançados comercialmente, você já tem uma distorção da realidade, porque as mulheres são 51% da população brasileira. Então nós estamos sub-representadas nas telas”, diz Tata Amaral, lembrando que o abismo aumenta quando se trata de negras e indígenas na direção. “Temos muito o que fazer enquanto sociedade para ter uma representação que espelhe a sociedade brasileira, que é diversa e composta por maioria de mulheres e pessoas negras. O que não quer dizer que as pessoas LGBTs e as indígenas não devam também estar representadas no audiovisual, representadas e produzindo. Por que é importante a gente produzir e contar histórias? Porque cada um conta do seu jeito e cada um constrói a narrativa de acordo com a sua vivência e a sua experiência.”

Já Débora Ivanov acredita que a presença feminina no audiovisual é bastante intensa, mas não em cargos de liderança na construção das narrativas (roteiro e direção). “Nós temos uma grande participação em cargos de liderança na produção.” Para ela, há mais mulheres em documentário e curta-metragem por uma questão orçamentária. “Quando você tem obras de menor valor como curtas e documentários, a presença feminina nesses cargos de liderança das narrativas é maior. Quando você passa para longa-metragens e séries, que são os mais caros, nossa participação é menor. Então sempre que há mais recursos a gente tem mais dificuldade de acesso. Isso não é um sentimento, é verificado por números.”

Crescimento na sala de aula

Coordenador e professor de Cinema da FAAP, Humberto Neiva tem visto um número grande de mulheres entrando no curso. “Eu tenho turmas de Cinema com mais mulheres do que homens e grupos que se formam para fazer um filme só de mulheres”, comenta, lembrando que o número de mulheres no curso de Animação também é grande.

Segundo ele, a situação hoje é bem diferente da época em que cursou a faculdade. “Na minha turma, eram muito mais homens do que mulheres. Tinha a Laís Bodanzky, a Ana, a Alessandra… Eram pouquíssimas.”

No Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), Humberto lembra que dirigiu o filme e Laís fez a fotografia. Mas nas reuniões discentes para propor melhorias da faculdade, ela era muito atuante: “Não à toa a Laís é hoje da Spcine, que é outro nome forte e tem uma preocupação muito grande com a luta da igualdade da mulher nas funções do audiovisual”.

Luciana Rodrigues também lembra de sua época como aluna de Cinema da FAAP. “Era um período de grande refluxo do Cinema e minha turma se formou com apenas oito pessoas. Eu dirigi o único curta de TCC, talvez por ser mais velha (já era advogada) e porque sempre fui de ‘colocar o pé na porta’, mas lembro de que na época mulheres diretoras de curtas não eram tão comuns como agora, embora na FAAP a presença de estudantes mulheres sempre foi forte e atuante.” Ao olhar para outras escolas, ela repara, no entanto, que a FAAP é uma exceção: “Ainda há muitos relatos de que os curtas são dirigidos quase que unicamente por estudantes homens, o que é um tremendo sinal de que o preconceito ainda está bem presente, inclusive num ambiente que deveria ser de colaboração e modernidade, como é o de ensino e cultura”.

Luciana Rodrigues, professora de Cinema e coordenadora da pós-graduação em Gestão de Produção e Negócio Audiovisual na FAAP. Foto: Aline Canassa (FAAP). Arte: Mariana Mariotto

Débora Ivanov destaca que há mais mulheres com formação e pós graduação do que os homens no audiovisual. “Mesmo assim, elas são minoritárias em postos de liderança. Isso é interessante, né?”

Para Tainá Xavier, hoje em dia a participação de mulheres nas universidades é maior que a de homens, mas poucas lideram pesquisas. “Um processo similar acontece no mercado audiovisual. A área da direção de arte é a de maior presença feminina nas equipes, mas, quando se analisa a chefia dos filmes lançados em salas de cinema, vemos que essa presença não se reflete proporcionalmente: há mais diretores de arte homens ou projetos assinados em parceria de homens e mulheres do que diretoras de arte mulheres assinando esses filmes.”

O Forcine é uma sociedade civil sem fins lucrativos que congrega e representa instituições e profissionais brasileiros dedicados ao ensino de cinema e audiovisual. Ele foi criado com a intenção de ajudar cursos do País a elaborar programas conforme as mudanças no setor. Atualmente, um dos pontos no radar é se existe discriminação de estudantes de audiovisual e sob quais formas. Ex-presidente do órgão, Luciana afirma que “isso certamente dará muito material para superarmos o desrespeito com a diversidade”.

Tainá revela que o órgão pretende criar diretrizes para implementar políticas de diversidade nas escolas de Cinema e audiovisual do País. Um questionário será enviado a todos os cursos. O plano é mapear a composição dos corpos docente, discente e técnico por gênero, raça e necessidades especiais. Também serão levantadas iniciativas como coletivos e projetos de extensão e pesquisa voltados à diversidade. “Num segundo momento, elaboraremos um questionário para levantamento de demandas discentes e outro questionário para mapeamento de produções e egressos.” Após esse diagnóstico, a ideia é propor as diretrizes em diálogo com as escolas e membros de um conselho consultivo composto por professores, técnicos, alunos e profissionais de mercado.

A ideia inicial era fechar 2020 já com uma primeira minuta do documento, mas a pandemia do novo coronavírus fez a entidade estender os prazos. Enquanto isso, Tainá lembra que é importante que professores estejam atentos para não deixar se perpetuarem nos cursos estruturas culturais que fixam determinados lugares e papéis para mulheres e homens. “É preciso valorizar estudantes mulheres e incentivá-las a se expressar, ocupar lugares decisórios e integrar equipes técnicas especializadas onde há menor participação feminina, como direção de fotografia.”

O desafio do mercado profissional

Pesquisas recentes apontam para uma presença feminina menor em diferentes áreas do audiovisual além de direção e roteiro. Como a direção de fotografia. Tainá Xavier acha que existe “uma construção cultural baseada no patriarcado que considera determinados trabalhos que lidam com a dimensão do cuidado e do ambiente doméstico como ‘naturalmente’ femininos, enquanto aqueles ligados à tecnologia e à liderança estariam relacionados com uma dimensão masculina.” O mesmo se reflete nas áreas de atuação no audiovisual.

Tainá Xavier, diretora Financeira do Forcine e professora. Foto: Acervo pessoal. Arte: Mariana Mariotto

Num artigo sobre a presença feminina na edição 2019 da Rio2C — evento sobre criatividade e inovação — , Tainá reflete sobre a distribuição de funções entre gêneros no audiovisual ao questionar o porquê de certas áreas serem tidas “naturalmente” como femininas. No texto ela escreve que os números apresentados nos estudos de Participação Feminina no Audiovisual Brasileiro, realizados pela Ancine, parecem indicar que as funções com maior presença feminina são aquelas cujas atribuições estão ligadas a habilidades de gerência, organização e cuidados, como as de produtora e produtora-executiva, enquanto a presença masculina é dominante em funções relacionadas a técnicas mais específicas, seja relacionadas a manejo de equipamentos (como na direção de fotografia), seja nas funções de direção e roteiro (responsáveis pelo eixo narrativo).

Para Débora Ivanov, a menor presença de mulheres em posições de liderança pode ser explicada pela disputa maior por esses cargos. Ela acredita num viés inconsciente por trás disso, que passa por representações que vêm da infância (dos livros infantis à criação dada pelos pais), comportamento social e uma série de referências de figuras masculinas, que, armazenadas no cérebro, levam à tendência de entregar a liderança a homens. "Mesmo quando a gente se vê como feminista, como humanista, quando a gente defende valores de igualdade, acaba traindo esses conceitos e optando por homens quando tem (de tomar) uma decisão na prática”, afirma. “Se você tiver de entregar um projeto importante, caro, e tiver de decidir entre um homem e uma mulher com mesmo currículo (mesma faculdade, mesmo mestrado, mesmo doutorado, mesma prática no mercado), sua tendência é decidir por um homem. Isso é comprovado por estudos de RH de empresas no mundo inteiro. A gente tem de romper essas barreiras porque isso não é racional.”

Débora diz ter observado um outro fenômeno quando esteve na Ancine que se repetiu depois em outros lugares: o de mulheres, negros e LGBTs serem interrompidos quando começam a falar numa mesa de reunião. "Isso acontece não apenas nos espaços corporativos, mas em equipes também: a não ser que a mulher esteja com o mando do dinheiro, seja a produtora do filme, seu espaço como profissional é mais difícil. Eu vivi muito isso. É muito difícil ser uma líder mulher num espaço majoritariamente masculino.”

Débora Ivanov, produtora e ex-diretora-geral da Ancine. Foto: Reprodução. Arte: Mariana Mariotto

No período em que dirigiu a Ancine, de outubro de 2015 a junho de 2017, Débora diz ter adotado como extremamente importante a questão da equiparação de homens e mulheres no audiovisual. Mas a batalha não foi fácil. "Na época em que entrei, a diretoria comigo teria duas mulheres e dois homens. Quando cheguei, nós nos fortalecemos sendo duas e colocamos essa pauta. Mas ela foi assimilada com bastante dificuldade porque sempre temos temas mais importantes, sempre temos uma emergência para resolver, e essa pauta fica como a última da fila.”

Uma das dificuldades surgiu quando as duas propuseram criar uma comissão de diversidade no planejamento estratégico da agência: “Eram núcleos em diversos setores opinando sobre o planejamento estratégico e todos esses núcleos eram contra a implementação da diversidade”, lembra. "Foi muito difícil, mas nós conseguimos incluir a paridade de gênero na comissão dos editais. A gente estava destinando milhões para o fomento da produção e as comissões eram majoritariamente masculinas. Então é natural que você como homem se identifique com uma narrativa mais masculina. Só com a paridade de gênero nessa seleção, a gente conseguiria fazer diferença.”

Após conseguirem a paridade de gênero na comissão dos editais, elas queriam avançar. “A gente queria propor também que o resultado fosse paritário. Mas aí não conseguimos nem sequer propor que tivesse um ponto a mais se fosse mulher, negro ou LGBT. Tem uma barreira ali difícil de ultrapassar.”

Para Débora, para reduzir a desigualdade, é preciso "promover a valorização da mulher, pautar o tema em todos os festivais de cinema no Brasil e no mundo, premiar mulheres e dar a elas espaço e voz”. “Tem também de trabalhar a auto-estima das mulheres para que elas se coloquem mais, se vendam mais, acreditem mais no seu potencial e disputem sim esse mercado. Parece simples, mas é uma chave difícil para nós — está no nosso inconsciente. Acreditamos que fomos criadas para ser coadjuvante, não protagonista.”

Tata Amaral acredita ser necessário também destacar a relevância do papel das mulheres. “É preciso lembrar as grandes bilheterias de filmes de mulheres, a começar por O Ébrio”, diz, citando ainda Susana Lira, Susana Garcia, Julia Rezende e Carolini Fioratti. “Ou seja, o sucesso das mulheres precisa ser reafirmado. É como se nós não tivéssemos direito ao sucesso. Essas informações não são faladas. Fica meio: ‘Abafa o caso’."

Foi pensando nesse apagamento histórico das conquistas realizadas por mulheres no audiovisual brasileiro e mundial que as autoras desta reportagem decidiram lançar no Instagram o perfil @molieresnocine, dedicado à divulgação das realizações femininas.

Para Tata, é preciso não só lembrar as conquistas como reafirmar que as mulheres estão em todos os gêneros. Como o terror, feito por Juliana Rojas, por exemplo. “O filme de ação está constantemente associado a homens. Sequestro-Relâmpago (dela própria) é um filme de ação também. E nós (mulheres) gostamos de filme de ação, assim como gostamos de terror. É importante valorizarmos as conquistas e vermos aonde chegamos”.

Em busca de um equilíbrio

As entrevistadas ressaltam que uma das maneiras para se obter um número maior de filmes dirigidos e roteirizados por mulheres nas salas de cinema é garantir a presença delas em cada uma das etapas de produção.

Para que um roteiro possa ser gravado, ele passa por um júri de seleção nos editais de captação (usados para levantar o orçamento de um filme). “Se no júri que vai escolher os projetos você não garante a presença de mulheres, você já vai ter um viés que não corresponde à sociedade. Garantir, por exemplo, que metade do júri seja mulher já é um primeiro passo para você direcionar um olhar mais atento à narrativa feminina.” Laís acredita que uma mulher é muito mais sensível ao tema de outra mulher do que um homem por essa ser a sua realidade. Isso, a seu ver, aumenta a chance de não cair numa caricatura ou se envolver com determinadas temáticas estereotipadas. "Para garantir a diversidade, um júri também tem que ter diversidade.”

O mesmo ocorre na distribuição de um filme. Para que ele seja escolhido, é importante ter a presença de uma mulher no processo de seleção. Quando pensamos na curadoria de um festival, a questão é similar. "Não é escolher só por escolher, é um processo de identificação."

“A diretora tem um projeto, que mandou para um edital, que foi avaliado, alguém escolheu e ela foi contemplada. Depois ela fez esse filme e esse filme, depois de pronto, tem de conseguir uma distribuidora. Alguém vai escrever uma crítica, vai falar sobre ele e esse filme vai chegar ao público. Em todas essas etapas, se você não garante a participação de outras mulheres, o projeto não avança”, enumera Laís.

A pequena quantidade de mulheres trabalhando como críticas de cinema também pode influenciar. Um exemplo disso foi a crítica feita por Inácio Araújo ao filme francês Retrato de uma jovem em chamas (2019), dirigido por Céline Sciamma. Em sua avaliação, “o filme só se salva do fracasso no final”, mas não explica exatamente como o filme teria fracassado. Em resposta a Araújo, Marina Person, crítica de cinema, escreve um artigo dizendo ter reparado que, enquanto o filme não pareceu ser grande coisa aos olhos de parte do público masculino, foi apreciado pelo público feminino.

Na era dos grupos e coletivos

“A luta das mulheres no cinema é correspondente à crescente luta das mulheres do mundo por emancipação. Mais mulheres em todas as áreas estão impondo sua presença e o audiovisual não foge a essa regra. Ainda bem!” (Luciana Rodrigues, professora)

Integrantes do Coletivo Elviras. Foto: Reprodução. Arte: Mariana Mariotto

Na luta pela maior participação feminina no audiovisual, têm ganhado espaço coletivos como o Mulheres do Audiovisual Brasil, criado por Malu Andrade. “O grupo surgiu após o café da manhã que promovi na Spcine para algumas mulheres do setor”, conta ela. Em seguida, foi criado um grupo no Facebook, que já tem cerca de 22 mil integrantes e frequentemente traz dicas de bolsas, editais, cursos e filmes. Há ainda uma página no Instagram. “Ele foi muito importante como incubador de outros grupos, coletivos e redes que surgiram pois é um espaço de troca. Várias mulheres que não se conheciam tiveram a oportunidade de se conhecer por causa dele", explica Malu, que hoje o administra com outras quatro profissionais: Krishna Mahon, Giselle Jordão, Barbara Cunha e Juliana Lira.

Justine Otondo comenta que, sempre que está em busca de profissionais para algum trabalho, recorre ao grupo. Para Humberto Neiva, esse núcleo foi um diferencial para aumentar a visibilidade e a empregabilidade das mulheres no setor.

Criado em 2014 por Manoela Ziggiatti, Lillah Halla, Caru Alves de Souza, Iana Cossoy Paro e Moara Passoniha, o Coletivo Vermelha é outro desses grupos. Formado por diretoras e roteiristas paulistanas, tem a proposta de estudar e entender qual espaço as mulheres ocupam no meio audiovisual. A primeira ação do coletivo foi promover um seminário em 2016, com palestras e debates sobre a participação feminina no audiovisual. A diretora Tata Amaral participou de uma das palestras em Campinas e questionou valores e símbolos por trás dos produtos culturais que consumimos, enfatizando as estatísticas de feminicídio e estupro no Brasil.

Mais antigo, o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), criado em 2008, tem por objetivo produzir conhecimento sobre a ações afirmativas a partir de estudos sistemáticos sobre iniciativas de diversidade implementadas em universidades brasileiras que assinaram o Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade e da Cultura de Paz e Direitos Humanos.

Para Débora Ivanov, esses esforços em grupo fazem toda a diferença. “Ao sair da Ancine, eu reuni um grupo de líderes femininas que estão em cargos de diretoria em sindicatos, associações e coletivos para que pudéssemos criar uma rede de colaboração e ampliar oportunidades para outras mulheres”, conta, lembrando algumas realizações do grupo. “Nós conseguimos realizar durante três anos seguidos um seminário internacional onde trouxemos experiências de políticas públicas e de movimentos da sociedade civil para inspirar ações do Brasil. No último ano, nós trouxemos o British Film Institute com a Amanda Neville, que apresentou sua pauta de diversidade já implantada e inspirou ações da Spcine.”

Experiências e movimentos de outros países também foram compartilhadas. “Eu fico muito satisfeita em ver que corporações internacionais estão atentas a essa pauta.” Segundo ela, a Netflix, por exemplo, chegou a criar uma vice-presidência de diversidade. Vernā Myers, uma mulher, foi a escolhida para o cargo.

A vez das políticas públicas

Outra maneira importante para se atingir o equilíbrio entre homens e mulheres no audiovisual brasileiro é a proposição e implementação de políticas públicas. Nesse sentido, Luciana Rodrigues parabeniza a iniciativa da Ancine que, sob direção de Débora, fez um levantamento fundamental sobre a ausência de diversidade e implementou medidas para ampliá-la, com cotas de gênero e raça em chamadas públicas e paridade de gênero nas comissões de seleção do Fundo Setorial do Audiovisual.

Luciana Rodrigues cita como exemplo de política eficaz para combater a discriminação no cinema a adotada pelo British Film Institute. Anualmente, a entidade organiza um evento chamado Woman with a Movie Camera Summit, que visa reforçar a conversa sobre igualdade de gênero na indústria cinematográfica. Laís Bodanzky afirma que usou como modelo os projetos implementadas pelo instituto britânico para propor as políticas afirmativas de diversidade na Spcine. “Nós escrevemos uma política afirmativa da empresa que norteia todas as nossas ações, os nossos editais, os nossos cursos de formação. A política afirmativa tem como objetivo aumentar a presença de mulheres, de gênero e raça nas várias áreas do setor audiovisual. Então ela nos guia e nos coloca uma meta.”

Outros exemplos importantes são o da Alemanha, onde o audiovisual já adota um sistema de cotas, e da Suécia, onde já se alcançou a paridade de gênero (50% homens, 50% mulheres) no cinema.

“É importante que a gente, como sociedade, pleiteie as políticas públicas, como também as mulheres nas funções de decisão, de poder. Não adianta ficar lá dizendo “coitadinha”, “quero mais”. Tem de estar lá no lugar que decide para onde vão os recursos”, resume a cineasta Tata Amaral.

No dia a dia do trabalho

E no trabalho? Que pequenas coisas podem ser feitas para dar mais visibilidade às mulheres do meio cinematográfico? Tainá Xavier acredita que, como professora, valorizar e incentivar suas estudantes é importante, além de alertá-las sobre como as estruturas patriarcais são prejudiciais. "Como pesquisadora, procuro estudar o tema, bem como produzir e difundir reflexões que conscientizem as pessoas sobre a necessidade de mudar o panorama de distorções que se apresenta hoje.”

Luciana Rodrigues admite que precisa estar mais atenta para não valorizar obras que prejudiquem raças, classes, gêneros e orientações sexuais: “Tenho muito para aprender ainda, mas sei que posso contar com essa nova geração de estudantes e cineastas para isso. Que ela seja a coveira de todas as formas de discriminação”. Como professora e coordenadora, ela procura valorizar debates em sala de aula, sem tabus, além de garantir que o ambiente seja seguro e ninguém sofra nenhum tipo de discriminação.

Para Justine Otondo, é importante sempre buscar projetos femininos, estar atenta a jovens profissionais que estão ingressando no mercado e trazê-las para atuar como estagiárias dos filmes. "Dar oportunidade a mulheres, sempre. Não pensar nos nomes mais óbvios que irão satisfazer o investidor. Apostar em nomes novos, incentivar e instrumentar meninas que estão se formando. Empoderá-las”, enumera.

Como professor e coordenador, Humberto Neiva procura equilibrar professores homens e mulheres: “Eu acho que é uma contribuição, pode ser indireta, mas é uma contribuição”. Já como programador do Espaço Itaú, defende que a chave é dar oportunidade. "Isso não deixa de ser uma maneira de se posicionar bem na área.”

Como diretora da Spcine, Malu Andrade implementou com sua equipe um programa de diversidade pioneiro no País: “Todas as nossas ações levam em conta critérios de ações e raças, não só editais. Nossos júris são paritários e diversos”. Ela ressalta que essa movimentação só foi possível com o apoio da presidente, Laís Bodanzky, e o trabalho em grupo da coordenação, formada por Barbara Trugillo, Letícia Santinon, Raul Perez e Ricardo Prada.

Nas salas de aula, Malu diz que já revela logo de cara que sua bandeira no audiovisual é a da equidade de gênero. "Tento puxar mais das meninas para que falem, sempre trago exemplos e indico o grupo para elas entrarem, porque lá sempre tem vagas de emprego. Então é uma boa rede de contatos”.

Cecília Machado, Isabela Andrade, Mariana Mariotto e pedro a duArte são estudantes de jornalismo na FAAP.

*Sob supervisão do Prof. Rafael Sbarai

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