TCCs 2022

Quais foram os seis maiores shows brasileiros dos últimos 50 anos?

Importância do espetáculo para a época, relevância até hoje, marco na carreira do artista e interação com o público foram critérios para a seleção abaixo. E você? Concorda com ela?

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João Pedro Adania

Do rock ao MPB, grandes artistas também são super performers, donos de megashows que fazem sua carreira ganhar outra dimensão. Foi na transição da década de 1960 para a de 1970 que o showbizz começou a levar ao público grandes apresentações com cantores que antes só eram ouvidos no rádio e/ou vistos nos programas de auditório da TV. E quais foram os seis maiores nesses últimos 50 anos?

O LabJor FAAP fez a seleção abaixo levando em conta quatro critérios:

  • importância para a época
  • relevância até hoje
  • marco na carreira que representou na carreira de cada artista
  • contato com o público, que transforma a experiência de ouvir cada músico numa interação única que fica na memória do espectador.

Confira abaixo e, se não concordar, crie também a sua.

NEY MATOGROSSO, 1981

No palco do Canecão, no Rio de Janeiro, Ney Matogrosso montou uma superprodução digna do início dos anos 1980. Com uma banda de nove músicos, bailarinos e produção do diretor teatral Amir Haddad, um dos fundadores do Teatro Oficina, o show de 3 de junho de 1981— que marcou o início da temporada de oito semanas de apresentações consecutivas na tradicional casa de shows carioca — foi fruto da divulgação do disco homônimo e de maior vendagem do artista. A capa do álbum trazia o rosto de Ney flutuando na silhueta de uma cidade, com uma águia de asas abertas sob sua cabeça e seu nome escrito por fechos de luzes cortando o horizonte. Com então 39 anos, Ney Matogrosso havia declarado para o jornal O Globo semanas antes do show que sua intenção era fazer um show que divertisse as pessoas: “Quero que vejam um espetáculo bonito e bem-bmfeito. Penso que nos momentos de crise o povo merece um pouco de diversão. Existe uma parte da inteligência que me cobra atitude, mas eu só quero divertir as pessoas. As pessoas estão sentindo”.

“Ney disse essas palavras 41 anos atrás, mas poderia ser hoje né? Momentos de crise, cobrança de atitude por parte da inteligência, nada muito diferente de 2022 enfim”, comenta Luiz Felipe Carneiro, biógrafo do Rock in Rio.

Pela primeira vez em sua carreira solo, Ney cantou músicas do seu tempo no grupo Secos e Molhados. “Sempre tive muito pudor em utilizar o Secos e Molhados, achava que estaria apelando, mas cheguei à conclusão de que eu fui Secos e Molhados”, declarou na mesma entrevista para O Globo. Por causa disso, o show abria com bailarinos pintados à la Secos e Molhados entoando Mulher Barriguda. E Ney se propôs a fazer nele uma retrospectiva nada saudosista de sua carreira, intercalando novos e antigos hits. “Resolvemos fazer uma retrospectiva da minha carreira sem coisa de ‘hora da saudade’ ou ‘a minha vida é assim’. Vou intercalando músicas antigas com as novas e também músicas que ouço no rádio”, disse.

Sobre a duração da turnê e o álbum fruto do show, Luiz Felipe Carneiro afirma: “Cara, bons tempos em que a gente tinha temporadas, porque hoje a temporada são dois shows, antigamente eram oito semanas. Mas parte desse show foi gravada depois nos estúdios da Rede Globo e se transformou num especial, o Ney de Souza Pereira, que você encontra facilmente no YouTube e no qual dá pra ter uma boa ideia de como foi esse show”. “Definitivamente o sucesso do show se refletiu no disco. Ney mudou de gravadora depois por causa do produtor, esse álbum é o de maior sucesso comercial — mais ou menos 350 mil cópias vendidas — e acho que gerou o maior sucesso dele, Homem com H.”

Ney Matogrosso, no show de 1981. Foto: Instagram Ney Matogrosso

Na plateia do Canecão estavam artistas como Chico Anysio, Caetano Veloso, Tônia Carrero, Martinho da Villa e Elke Maravilha. Cubanakan, Bandido Corazon e Bandoleiro levaram o público ao íntimo de Ney. Depois veio a toada sertaneja de Raul Seixas Mata Virgem, Amor Objeto, de Rita Lee e Roberto de Carvalho — Ney havia encomendado uma música ao casal e recebeu essa grande canção —, e Deixa Menina, de Chico Buarque. O clássico striptease de Ney aconteceu ao som de Viva a Vida, de Morais Moreira, que juntamente com Viajante, de Thereza Tinoco, também fez parte do disco. Homem com H e Folia no Matagal encerravam o show de maneira apoteótica. Quando a plateia ensandecida pediu bis, Ney respondeu “Não aguento mais, tchau” e foi embora dois quilos mais magro. O desempenho de Ney Matogrosso rendeu a manchete do Globo de 5 de maio daquele ano: “A ousadia e a sensualidade de Ney Matogrosso no Canecão”.

DESFILE DA MANGUEIRA, CARNAVAL 2012

Ivo Meirelles assumiu a presidência da Estação Primeira de Mangueira com a intenção de deixar sua marca mesmo que isso representasse uma impopularidade incontrolável. Sua ideia era fazer a arriscada “paradona” — isso significava que a bateria da escola de samba ficaria dois minutos em silêncio enquanto o público e as outras alas do desfile entoassem o samba-enredo em plenos pulmões. O mestre de bateria Odilon foi contratado para assumir a responsabilidade e Ivo dizia sem parar: “No regulamento (do carnaval) está ousadia e criatividade. Então essa vai ser a nossa ousadia”.

O enredo de 2012 era uma homenagem ao bloco Cacique de Ramos e contou com a participação de 4 mil integrantes. A princípio, a “paradona” foi encarada com estranheza pela plateia — apenas o carro alegórico em que estavam os artistas Alcione, Xande de Pilares, Dudu Nobre e Luizito continuou tocando, com volume bem baixo, o que dava a impressão de falha. Na transmissão da televisão os apresentadores reforçaram que a estratégia era ensaiada e não um problema técnico. Na Sapucaí os espectadores não tiveram queixas porque a emoção e o clima criado pela escola foram mais significativos do que a falta de instrumentos.

A inovação técnica foi acompanhada pela mudança do nome da bateria para Surdo Um, iniciando a fase em que a marcação da batida do samba era com uma batida no surdo e não um tempo de quatro batidas como em um samba de avenida tradicional.

A repercussão do desfile foi controversa — os jurados não se empolgaram muito com as inovações propostas por Ivo — , e a Estação Primeira de Mangueira ficou em sétimo lugar. Mas a “paradona” entrou para a história do carnaval.

MARÍLIA MENDONÇA — 2020

Marília Mendonça, em live na sala de casa durante quarentena na pandemia. Foto: Reprodução YouTube

Não bastava cantar, Marília Mendonça era recordista em quebrar recordes. Nascida em 1995 em Cristianópolis, no interior de Goiás, carregava raízes sertanejas desde pequena. O início de sua carreira foi compondo letras para duplas como Henrique e Juliano. Mas a cantora falecida em novembro de 2021 num acidente de avião ficou mesmo conhecida do grande público ao fundar um movimento chamado feminejo, do qual também fariam parte as cantoras Maiara & Maraisa, Naiara Azevedo, Paula Fernandes e Simone & Simaria.

O subgênero do sertanejo tematiza a visão feminina no contexto sofredor do sertanejo e foi possível pela maciça presença de mulheres na cena desde 2010. “Elas já vinham compondo desde 2010, mas compondo para homens cantar, como por exemplo Cristiano Araújo. O estilo musical era dominado muito mais pelos homens do que pelas mulheres. Mas elas foram conseguindo dar voz às suas músicas de uma maneira até muito intima”, disse a jornalista Paula Valdez, que cobriu a carreira e a morte de Marília Mendonça.

A goiana chegou a ser a cantora que mais recebia royalties do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) por ter composto grandes hits sertanejos, como Minha Herança, de João Neto & Frederico, Muito Gelo, Pouco Whisky, de Wesley Safadão, e Calma, de Matheus & Kauan.

Junto com as gêmeas Maiara e Maraisa, Marília criou o show A Festa das Patroas, uma verdadeira exaltação do feminejo. “Elas levaram a história das mulheres para cima do palco, a identificação dessas mulheres, colocando tanta coisa de lado, tantas cobranças que temos, de aparência, de corpo”, comentou Paula.

Já com sucesso garantido, Marília entrou na onda das lives durante a pandemia de covid-19. Em 8 de abril de 2020, o YouTube registrou a maior audiência entre todos os shows transmitidos: a sofrência do feminejo foi vista por mais de 3,31 milhões de espectadores que acompanharam atentos as três horas e meia de músicas cantadas na sala de estar da anfitriã.

Outros artistas também fizeram lives nesse período, mas nenhum deles arranhou a superioridade de Marília. Gusttavo Lima transmitiu ao vivo de sua casa-castelo para 2,77 milhões de fãs, Jorge & Mateus para 3,24 milhões e o tenor italiano Andrea Bocelli para 2,86 milhões.

CAETANO VELOSO, 1968

O cano gelado de um fuzil batia nas costas de Caetano Veloso que andava nas ruas escuras de uma vila militar. O cantor não sabia onde estava e seu pensamento variava entre a certeza da morte e as lembranças de sua prisão. Durante o 3º Festival de Música Popular Brasileira, transmitido pela TV Record em 21 de outubro de 1967, entre um violão arremessado e outro, Caetano levou à final a marcha pop Alegria, Alegria com o conjunto argentino Beat Boys. Seu colega Gilberto Gil apresentou Domingo no Parque e ficou em segundo lugar no concurso — Caetano ficou em quarto. A fagulha do movimento tropicalista havia sido lançada. A rapaziada, comandada por Rita Lee, dos Mutantes, já balançava o movimento com suas guitarras elétricas e, ao lado de Nara Leão, Torquato Neto, Rogério Duprat, Tom Zé, Gil e Gal Costa, lançou o disco Tropicália: ou Panis et Circences. O álbum trazia elementos do Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e logo se tornou o “manifesto” do Tropicalismo.

Os artistas não eram os favoritas da burguesia de esquerda e a introdução da guitarra elétrica gerou críticas e acusação de “americanização” da música brasileira. Pelo lado do Exército, Caetano Veloso e seus Blue Caps nunca nem tiveram a simpatia do governo. O caldeirão estava fervendo.

Domingo, 15 de setembro de 1968, Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA): a música É Proibido Proibir foi recebida com vaias e papel higiênico jogado da plateia lotada. Os Mutantes, que acompanhavam Caetano, começaram a introdução em meio a tomates, ovos e alguns galhos jogados por um público alterado. Sem demonstrar pudor, Caetano rebolava eroticamente exibindo suas nádegas cobertas por uma calça de plástico enquanto colares de pedras preenchiam seu pescoço. Gil portava um glamuroso bigode. Mutantes, Caetano e Gil ouviram a mais icônica vaia da música brasileira. A plateia, depois de vandalizar o palco, virou as costas para os artistas. Gil levou uma madeirada na perna e mordeu um dos tomates jogado no palco.

Ninguém se deu por vencido, mas Caetano resolveu dar o chilique mais clássico da história e começou a declarar. “Vocês têm a coragem de aplaudir este ano uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir ano passado. São a mesma juventude que vai sempre sempre matar o velhote inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada”. E continuou: “Vocês estão por fora, vocês não dão para entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? (…) Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? São iguais àqueles que foram no Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E, por falar nisso, viva Cacilda Becker! Vocês estão querendo policiar a música brasileira.”

Um ano depois, em 1969, o trio Mutantes, Gil e Caetano realizou seu último show juntos. Nesse show na Boate Sucata, no Rio, a bandeira brasileira foi supostamente desrespeitada e, em determinado ponto da apresentação, foi substituída pela famosa obra do artista Hélio Oiticica que estampava os dizeres “Seja Marginal, seja herói”. O hino nacional teria sido subvertido por Caetano que o cantou com ritmo da canção Tropicália, o que ele nega. Após a apresentação, Caetano e Gil foram presos.

Na noite em que Caetano pensava ser sua última, ele, na verdade, estava sendo levado para raspar seus longos cabelos. Após sentar-se na cadeira de um cabeleireiro militar e passarem por sua cabeça a máquina no nível 1, Caetano iniciou um período de abstinência de comida, espelho e masturbação. Noo documentário Narciso em Férias (2020), ele conta que, já de volta à cela, não conseguiu comer a comida que lhe serviam, não conseguia olhar-se no espelho por não saber encarar a figura “herculeamente” nua e não conseguia se masturbar por ter tido sua alma, o que ele definiu como gozo, separado de seu corpo.

JOÃO GILBERTO, 1983

Lama e gente pelada, o Festival de Águas Claras se propunha a ser o Woodstock brasileiro. Os quatro amigos e fundadores do festival improvisaram um palco de madeira na Fazenda Santa Vírgina, em Iacanga, interior de São Paulo. O local era da família de Antonio Checchin Júnior, o Leivinha, um ex-estudante de Engenharia que largou o curso para viajar pela América do Sul acompanhando festivais de música. É curioso saber que o festival de Iacanga tenha sido organizado com a autorização do delegado Silvio Pereira Machado, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), durante a ditadura militar. O papel timbrado que os organizadores assinaram era um termo de comprometimento a não atentar contra a “moral e os bons costumes”. Não se sabe como o delegado achou que um festival aos moldes hippies não atentaria ao bom costume de não fumar maconha nem consumir ácido enquanto se rolava na lama sem nenhuma roupa.

Observando os festivais que aconteciam no momento, Leivinha e seus blue caps sentiam uma atmosfera de quermesse — globo da morte, barraca de algodão doce, palhaços distribuindo doces, artistas circenses fazendo piruetas e mímicos com maquiagem de lágrima escorrendo pela bochecha eram o parâmetro. Os preparativos montados pelo quarteto de amigos foram feitos mirando uma cerimonia mais íntima. A intenção inicial era estrear uma peça de teatro montada por amigos e a ideia de chamar artistas da música foi encorajada pelos amigos-músicos Liminha e Sérgio Dias — eles montaram o line-up da primeira edição. O ingresso para ver shows em um palco de 10 metros de altura por 20 de largura custava 30 cruzeiros. Duas ambulâncias e uma tenda de atendimento foram contratados e 50 banheiros, improvisados. A cidade registrou a maior venda de artesanatos do planeta: souvenirs, chaveiros, porta-copos, cinzeiros, cachimbos e peixes empalhados podiam ser calculados em quilos ou drogas — a depender da quantidade e variedade de substâncias na corrente sanguínea. O sucesso foi claro, garantindo a segunda edição dois anos depois.

João Gilberto se apresentando no início da manhã no Woodstock brasileiro. Foto: Reprodução de imagem do documentário ‘Barato de Iacanga’ (2019)

Em 1983, artistas como Hermeto Paschoal, Alceu Valença, Raul Seixas e Luiz Gonzaga já estavam confirmados, mas ainda havia o sonho de levar João Gilberto para o festival. Caseiro convicto, o pai da bossa nova era cheio de manias: só tomava banho na banheira com água a determinada temperatura, não suportava aspargos selados no azeite, mas apenas na manteiga, prezava por uma qualidade sonora nas caixas de som de seus shows que deixaria Roberto Carlos com inveja e não se apresentava depois das 2 da madrugada.

Levar João Gilberto ao interior de São Paulo também seria difícil — os organizadores fretaram um ônibus que o levaria até Iacanga, num investimento que comprometeu o orçamento de Leivinha pelos próximos dois meses e fez o ex-futuro engenheiro se alimentar de comida enlatada até conseguir se recapitalizar.

João Gilberto impôs uma condição para se apresentar no festival: chegar em uma limosine branca e blindada. Isso nunca aconteceria, mas os organizadores se comprometeram a satisfazer o cantor. Já na fazenda, João se esqueceu da limosine e sua exigência passou a ser chegar ao palco sem se sujar ou se molhar muito — havia chovido durante os quatro dias do festival e o que um dia tinha sido gramado já era um pantanal hippie.

Esperando a chuva dar trégua e pensando em como conseguir fazer João Gilberto alcançar o palco, começou uma transação de ácidos de mão em mão até que uma cartela de LSD chegou às mãos que deveriam estar dedilhando Garota de Ipanema para as 30 mil pessoas que o esperavam. Todos chapadíssimos, tiveram a ideia de pedir emprestados a carroça e o burro que a puxava ao vizinho de fazenda. Acordaram o vizinho em um diálogo mais ou menos assim — :

— Oi, vizinho, estou com o João Gilberto aqui e preciso levar ele até o palco, mas o caminho está todo cheio de lama. Tem como me emprestar a carroça?

— Quem é João Gilberto?

— É um cantor que contratamos para um show que já deveria ter começado.

— Tá bom, mas me devolve amanhã.

— Pode deixar.

“João, sua limosine chegou”, disse Leivinha montado no burro. João subiu na carroça e fazendo sinal de joinha com os dois polegares e repetindo a palavra “barato” sem parar para todos que o acompanhavam chegou ao palco sem sujar o terno. Seu show começou às 5h40 da manhã e acompanhou o nascimento do sol até as 7 horas. Dois terços dos espectadores do show haviam pulado a cerca da fazenda e não pagaram ingresso. Para um público sedento por rock e subversão, João Gilberto entregou os maiores sucessos da bossa nova sem encarar uma cara feia.

O youtuber Bruno Ascari, do canal Som de Peso, comentou: “Entre os grandes artistas veio o grande mestre João Gilberto subir ao palco. Inclusive, na hora em que o João aparece, acho que era cerca de 6 horas da manhã ali, ele sobe ao palco com seu violão e com o sol nascendo. Cara, é uma das cenas mais lindas, mais emocionantes, que mais deixam você arrepiado”.

LEGIÃO URBANA, 1990

Tudo desmoronava, a euforia do Plano Cruzado já estava acabando e com ele o preço dos discos subia cada vez mais. A poupança estava sendo confiscada, muita confusão na casa da Dinda (residência do então presidente Fernando Collor de Mello), Chacrinha já apertava sua buzina no andar de cima, a lambada tomava lugar na TV e nas rádios, o Globo de Ouro acabou e a geração do Brock (jovem rock brasileiro) tinha sua primeira morte, Cazuza. A autoestima do brasileiro estava abaixo da média e a primeira eleição direta do Brasil redemocratizado contava com 22 candidatos — entre eles Mario Covas, Paulo Maluf, Luiz Inácio Lula da Silva, Leonel Brizola e o morador da casa da Dinda, apresentado como “caçador de marajás”.

Da noite para o dia, o brasileiro não tinha dinheiro para comprar algumas bolachas, muito menos bolachões (discos), e LPs encalhavam nas poucas lojas que não fecharam. A trilha sonora daquele tempo obscuro foi o sertanejo — o Brock que dominou a década anterior estava sendo desmoralizado e começou a ser escanteado por rádios e TVs.

O cantor Lulu Santos até tentou argumentar dizendo que o governo Collor havia tirado espaço dos roqueiros na mídia, mas as pessoas e a Dinda estavam muito ocupadas com o novo programa da dupla Leandro e Leonardo para ouvir as reclamações de Lulu. E, no meio dessa confusão, Cazuza descobriu ser soropositivo e sua entrevista exclusiva para a revista Veja saiu na capa com a manchete: “Uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”.

A Legião Urbana fazia poucos shows e, carregando o fardo de uma confusão generalizada registrada numa apresentação no Canecão em 7 de julho de 1990, a banda liderada por Renato Russo já havia marcado show para o mesmo dia em que Cazuza morreu. Entre as opções de desistir da apresentação ou subir no palco, celebrar a vida e dedicá-la ao colega, Renato decidiu-se pela segunda. Suas palavras foram acompanhadas de gritos da plateia. “Boa noite, Rio de Janeiro. Eu quero falar algumas coisas aqui. Eu vou falar de mim. Eu tenho mais ou menos 30 anos, eu sou do signo de Áries, eu nasci no Rio de Janeiro. Eu gosto da Billie Holiday e dos Rolling Stones, eu gosto de beber pra caramba de vez em quando. Também gosto de milk-shake, eu gosto de meninas, mas eu também gosto de meninos. Todo mundo diz que eu sou meio louco, eu sou um cantor numa banda de rock’n’roll, eu sou letrista e algumas pessoas dizem que eu sou poeta. Agora eu vou falar de um carinha, ele tem 30 anos, ele é do signo de Áries, ele nasce no Rio de Janeiro, ele gosta da Billie Holiday e dos Rolling Stones, ele é meio louco, ele gosta de beber pra caramba, ele é cantor numa banda de rock, ele é letrista e eu digo: ele é poeta. Todo mundo da Legião gostaria de dedicar esse show ao Cazuza.”

*Esta reportagem foi feita a partir do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da FAAP de João Pedro Adania. Intitulado ‘Guia do rock brasileiro dos anos 90’, teve orientação do Prof. Dr. Rodrigo Petrônio.

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