Símbolos da pandemia marcam filmes da 45ª Mostra Internacional de Cinema

Impactos da covid-19 aparecem de maneira direta ou indireta em muitas das obras selecionadas no festival

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Barbara Marques

Algumas imagens e palavras viraram símbolos mundiais em 2020 e 2021. Máscaras de proteção, álcool em gel, vacinas, distanciamento social, lockdown, isolamento e quarentena são apenas algumas delas. Muito impactada pela pandemia, a indústria do audiovisual também acabou refletindo esse cenário de pandemia, presente de maneira direta ou indireta em vários filmes selecionados para a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Cena de ‘Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental’, de Radu Jude. Foto: Divulgação

Diretor do filme O Melhor Lugar do Mundo é Agora (Brasil, 2021), Caco Ciocler usou gravações de videochamadas com atores para uma narrativa cujo objetivo era discutir “a morte do cinema, da arte e do teatro e a inutilidade dos artistas durante o isolamento”. No V Fórum Mostra — Ainda É Tudo Cinema?, realizado em 28 de outubro no Canal da Mostra no YouTube, ele lembrou da tragédia diária que muita gente viveu na pandemia. “Não é que eu fui produtivo por causa da pandemia. Acho que, como artista, foi uma resposta a um trauma. E eu quis que essa resposta fosse em forma de filme, de arte.”

Encontro do V Fórum Mostra — Ainda É Tudo Cinema?, com mediação de Guilherme Genestreti e presença do ator e diretor Caco Ciocler, do produtor Luís Urbano e da atriz Andréa Beltrão. Foto: Barbara Marques

Na mesma mesa, falou Luís Urbano, produtor de Diários de Otsoga, de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro (Portugal, 2021). Exibido na 45ª Mostra, o filme trabalha com o cinema de forma metalinguística, uma vez que tem sua trama desenvolvida em torno da gravação do projeto, enquanto também tangencia as relações em meio à pandemia. Com incorporação de situações reais e de um brainstorming da equipe, a obra inicialmente tinha apenas duas questões em pauta: seria exibido como um diário de confinamento em ordem cronológica inversa, ou seja, iniciado pelo fim da história, e, neste final, um borboletário seria construído.

Cena de ‘Diários de Otsoga’, de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro. Foto: Divulgação

O produtor comentou que o projeto nasceu de uma necessidade de estender a mão a colegas de trabalho desamparados por causa da covid-19. A partir de uma conversa, ele e os diretores decidiram fazer o filme com uma pequena equipe, seguindo os protocolos de segurança. Gravado na chácara da produtora Filipa Reis, para reduzir gastos as decorações do local viraram objetos de cena. Membros da equipe se hospedaram no próprio sítio e, mesmo em dias de folga, não podiam sair da propriedade. E, para otimizar o elenco, colaboradores do filme acabaram virando personagens ficcionais.

Urbano também contou ao LabJor FAAP que muitos elementos presentes na obra surgiram de constatações feitas no mês e meio em que ficaram isolados para gravação do longa. “Tem duas coisas que eu, particularmente, amo no filme. A mensagem de que ainda podemos fazer coisas juntos — e isso não serve só para a lógica de pandemia, mas para toda a evolução contemporânea da sociedade e da virtualização — e, no final, o fato de você ficar com vontade de dançar”, contou. “O filme acaba sendo uma espécie de antídoto.”

NO TEMPO DAS MÁSCARAS E DO ÁLCOOL EM GEL

Nem todas as obras da 45ª Mostra dialogam com a pandemia, mas algumas procuram estabelecer uma conexão com o momento, não apenas por meio do que é falado, mas a partir de objetos, como máscaras de proteção e frascos de álcool em gel.

É o caso, por exemplo, do filme Antígona 422 A.C. de Maurício Farias (Brasil, 2021), que consiste na gravação da peça de Sófocles, interpretada por Andréa Beltrão, em conjunto com outras histórias gregas. Apresentada de forma presencial em teatros antes da pandemia, a obra pontua seu período como sendo entre 2020 e 2021 por meio de apenas duas cenas — no início e no encerramento do longa, a atriz veste sua máscara e utiliza o álcool em gel para limpar as mãos.

Outro filme que não fala em momento algum explicitamente sobre a pandemia é O Gravador de Haruhara-san, de Kyoshi Sugita (Japão, 2021). Ele conta a história de Sachi, uma jovem mulher que, após a morte de sua parceira, muda-se para um novo apartamento e começa num novo emprego, em uma cafeteria, onde, por meio do contato com clientes e com apoio de seus tios, procura reencontrar a felicidade. Embora não mencione a pandemia, a obra gera uma dúvida em relação à temporalidade, uma vez que a utilização de máscara facial e álcool em gel é recorrente. No entanto, o questionamento é provocado por se tratar de um filme que se passa no Japão, onde tais medidas preventivas já eram tomadas antes mesmo da covid-19.

No filme ‘Madeira e Água’, a protagonista Anke explora Hong Kong em meio aos protestos pró-democráticos de 2019. Foto: Divulgação

Além dos japoneses, outros povos asiáticos eram conhecidos pelo uso das máscaras antes da pandemia. Numa parte do filme Madeira e Água, de Jonas Bak (Alemanha, França, Hong Kong, 2021), a personagem principal, Anke, uma senhora alemã que vai a Hong Kong visitar o filho, experimenta pela primeira vez uma máscara. Embora o filme não tenha sido realizado na pandemia, uma vez que são mostrados os protestos pró-democráticos de Hong Kong em 2019, ele estabelece uma conexão com o momento pelo uso da máscara e pelo ano de lançamento.

Máscaras também estão presentes no longa-metragem francês Os Anos 20, de Elisabeth Vogler (França, 2021) — em inglês, Roaring 20s. O título faz referência não somente à década em que estamos, mas ao momento histórico pós-Primeira Guerra Mundial (1914–1918). A obra não faz referência à pandemia, mas apresenta uma menção do lockdown, quando um casal de amigos discute o desgaste de seus relacionamentos. Pouco depois, eles entram no metrô, onde vestem suas máscaras. São exibidos outros grupos de amigos e a pandemia volta a ser mencionada novamente na conversa entre um agente e seu cliente, quando um ator diz: “Mesmo estando sozinho em casa, eu uso máscara. Eu prefiro. E, quando me olho no espelho… Você vai me achar louco. Eu me acho mais interessante, mais autêntico, mais bonito até. Isso é extraordinário na máscara, ela não expressa nada”.

Cena do filme ‘Os Anos 20’, de Elisabeth Vogler. Foto: Divulgação

No curta-metragem Ato, de Bárbara Paz (Brasil, 2021), exibido na noite de abertura da Mostra, o tema principal é a necessidade de afeto em um momento pós-pandemia. Na metade da obra, de 20 minutos de duração, os dois personagens utilizam álcool em gel. Embora a covid-19 não seja mencionada explicitamente, na sinopse da obra disponibilizada pelo projeto Teatro em Movimento é dito que a trama consiste na história de um enfermeiro que, após perder sua esposa para a doença, procura os serviços de uma mulher cujo trabalho é proporcionar afeto a seus clientes. A pandemia também pode ser evidenciada na passagem em que, ao se deitarem juntos, os personagens aparecem com um plástico entre seus corpos para que não se toquem diretamente.

BRASIL OU ROMÊNIA?

Outra obra escolhida para ser exibida na noite de abertura foi Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, de Radu Jude (Romênia, 2021). O filme também foi disponibilizado como a primeira cabine para jornalistas, após a coletiva de imprensa realizada pelos organizadores do festival em 16 de outubro, na qual a diretora da Mostra, Renata de Almeida, comentou que via fortes semelhanças entre aquilo que era retratado no filme e a realidade do Brasil nos anos 2020 e 2021.

O longa-metragem acompanha uma professora de História que tem um vídeo íntimo vazado nas redes sociais. Dividida em três partes, a trama apresenta três momentos distintos: o trajeto da protagonista de sua casa até a escola onde trabalha, composto pelas paisagens da cidade de Bucareste e por seus habitantes em meio à pandemia; um dicionário imagético irônico daquilo que é dito e exposto no filme, como o termo “aquecimento global” exposto na gravação de um grupo enorme de pessoas em uma piscina de ondas; e a reunião de pais e mestres, em que há uma espécie de julgamento para que se decida se a personagem continuará lecionando na escola após o vazamento do vídeo.

Katia Pascariu interpreta Emi, uma professora que tem um vídeo íntimo divulgado nas redes sociais, no filme ‘Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental’. Foto: Divulgação

A relação entre a situação vivida na pandemia pelos romenos e os brasileiros pode ser estabelecida, uma vez que na primeira e última parte filme máscaras aparecem sendo usadas de maneira incorreta e fake news espalhadas por personagens secundários. Em uma passagem do filme, é dito que foi cientificamente provado que incenso pode curar câncer e, pela fé em Deus, nenhum participante da comunhão havia contraído covid-19. O filme também discute a eficácia do distanciamento social, ironizado na segunda parte do filme, em que pessoas medem a distância entre si com uma régua. Em outra passagem, a diretora da escola pede que os pais respeitem as normas de distanciamento social e ouve que esta não foi considerada pela professora em seu vídeo íntimo.

Em conversa em 25 de outubro no canal da Mostra no YouTube, o diretor romeno disse que, para fazer o filme, teve apenas de observar a realidade à sua volta, de desrespeito aos protocolos de segurança e resistência à vacinação. Segundo ele, na Romênia surgiram discussões — a seu ver “ridículas” — sobre a “ditadura da medicina”, levantadas por pessoas que não se opuseram no passado à repressão política, esta sim verdadeira.

Outra questão levantada pelo filme é a da culpa atribuída a mulheres vítimas de vazamentos sem consentimento de vídeos íntimos. Conforme o diretor contou na live, o mais importante para ele era produzir uma história que retratasse o mundo contemporâneo e seus problemas.

Barbara Marques é aluna do sexto semestre de Moda na FAAP e também escreve para o Blog FAAP Moda no E+ do Estadão

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