Um jogo vivo e de imaginação: Elenco fala sobre a peça ‘Órfãos’

Em cartaz no Teatro FAAP até 1º de agosto, montagem brasileira do clássico de Lyle Kessler acompanha dois irmãos que encontram um pai improvável

LabJor
LabJor
7 min readJun 22, 2024

--

Davi Krasilchik

O trio de personagens em cena da peça ‘Orfãos’. Foto: Divulgação Costa Blanca Films

Lançada originalmente em 1983, a peça Órfaos é reconhecida pelo seu sucesso internacional, tendo já percorrido mais de 20 países. Da França ao Japão, a obra, escrita pelo dramaturgo americano Lyle Kessler, acompanha a história de dois irmãos órfãos, Phillip e Treat, dois jovens muito diferentes que levam uma vida de dificuldades.

Curioso com o mundo ao seu redor, o mais novo, Phillip, passa os dias dentro de uma pequena casa, alimentando curiosidades por meio dos estudos. Por sua vez, Treat ganha a vida como um batedor de carteiras, buscando formas de sustentar e cuidar de seu irmão.

Certo dia, a dupla planeja o sequestro de um misterioso homem de negócios, Harold. No processo, acabam descobrindo uma improvável figura paterna, que desafia toda a situação.

“A história fala de assuntos universais. A falta, a luta pela sobrevivência, a busca pelo afeto são coisas que todo ser humano procura. São coisas que se buscam em qualquer país ou cultura”, comenta Lucas Drummond, intérprete de Phillip e idealizador da adaptação. Ele conta que o primeiro contato com a obra aconteceu em 2018, durante um curso em Nova York e a conexão com ela se fortaleceu após perder o pai.

“Foi um momento em que eu de fato me conectei muito com esses personagens. Em me conectei com essa falta, com essa orfandade, que permeia a vida dos três. Eu acredito que o teatro tem esse poder de cura, de você poder contar uma história que tenha relação com o que se está vivendo, e eu resolvi montar a peça como uma forma de curar aquela dor que estava sentindo.”

De um lado, a complexidade dos três personagens consegue despertar qualquer ator. Do outro, a simplicidade de trazer um elenco pequeno e apenas um cenário. Esses fatores viabilizam o longo percurso que a peça vem fazendo no Brasil, desde o final de 2022. “Rio de Janeiro, São Paulo. Do balneário à metrópole, o alcance da peça atinge todo mundo. É impressionante como esse tema da solidão nos alcança, independentemente do lugar e da região onde você mora”, acrescenta Ernani Moraes.

Dando vida ao magnata Harold, ele fala sobre a importância da preparação corporal do elenco. “O teatro é um processo incrível. Você vai artesanalmente fazendo página por página. Na minha primeira página, eu fico muito sentado. Na segunda página, eu tenho que andar um pouco. Na terceira página, eu tenho que andar e sentar. Então você é obrigado a construir um espetáculo que tenha essa dinâmica, e nenhuma cena se torna igual à outra”, explica Ernani.

Existe uma transformação orgânica no modo como os movimentos funcionam ao longo da peça. Ele cita o diretor, Fernando Philbert, e o preparador corporal, Toni Rodrigues. “Mesmo que a gente esteja sempre em um mesmo espaço, a forma como eles nos conduzem está sempre buscando novos caminhos, sem se repetir”, explica o ator. Lucas acrescenta que esse processo se mantém vivo a cada novo ensaio.

“A gente já está na nossa sexta temporada. Mesmo assim, entrando na sala de ensaio, o Philbert e o Toni vêm e mudam coisas. Esse processo de afinar a peça, para que ela fique cada vez mais redonda, entendendo todas as sutilezas, é um processo de carpintaria.”

Phillip (Lucas Drummond) dança em cena lúdica da peça ‘Órfãos’. Foto: Divulgação Costa Blanca Films

Completando o trio com seu impulsivo Treat, Rafael Queiroz destaca a liberdade a partir das marcações. “Não é uma preparação que depende só do “vai pra lá, vai pra cá”, dessa criação sobre o corpo. Mas sim de deixar a gente inserido, livre ali dentro. Até hoje a gente brinca em cena, descobre novos movimentos e pontos de emoção”, conta, revelando que inicialmente Fernando desejava que ele fosse uma figura completamente má.

“Logo de início, ele (Fernando) me coloca o Treat em um lado completamente oposto ao do Phillip, e isso ajudou na nossa construção. Depois começamos a colocar essa relação de uma outra maneira. Eu fui trazendo sugestões e aceitando outras, e a gente foi criando essa coisa sólida. Eu vejo um Treat que ama esse irmão, protege esse irmão, dessa maneira bruta que ele aprendeu e que permitiu que eles sobrevivessem.”

Os irmãos discutem em cena da peça na FAAP. Foto: Divulgação Costa Blanca Films

Diferentemente do cinema, o teatro oferece um tempo muito maior de ensaio. Lucas explica que isso viabiliza uma série de revelações, que permitem aos atores perceberem novas nuances e até novas interpretações para os seus personagens. “A gente sabia desde o início que essas personalidades eram muito distintas. Mas existem descobertas sobre eles até hoje. Até hoje a gente tem momentos em que a gente bate o texto e pensa numa nova ideia”, explica.

Ernani acredita ter sido Treat o personagem que mais se modificou durante todo o processo. “Ele é um marginal, é um batedor de carteiras, é um ladrão de celular, mas ao mesmo tempo ele tem um humor na peça, você ri dele. Isso tudo foi obra do Rafael Queiroz, que batalhou para inserir isso no personagem”, conta o ator.

Ele também fala da importância da plateia no processo da peça, que pensa ansiar pela experiência do teatro.

“Acho que, principalmente depois da pandemia, as pessoas querem essa experiência. É uma forma de combater essa solidão. Elas querem a parada ao vivo. Elas querem ver o ator suar, salivar, errar. Os teatros têm estado mais cheios que os cinemas. Só no teatro você vê algo que vai ser diferente todo dia.”

Harold (Ernani Moraes) prega uma peça em Treat (Rafael Queiroz) em cena da peça ‘Órfãos’. Foto: Divulgação Costa Blanca Films

Diferentemente de outras versões, a montagem brasileira de Órfaos propõe algumas quebras de linguagem, caso das sequências musicais que exploram a felicidade momentânea em alguns pontos da trama. Luzes azuladas interrompem a atmosfera dramática, e certas passagens desafiam diretamente o imaginário do espectador.

“O teatro, por si só, é um pacto que se estabelece com a plateia, em que a imaginação é o ponto central. Muitas coisas aqui da peça a gente precisa da imaginação da plateia para que aconteçam. São coisas que surgem na nossa cabeça e a gente precisa convencer o público a embarcar nessa mesma jornada”, conta Lucas. Ele amplia a importância desse exercício fantasioso para Phillip e o descreve como um modo de sobrevivência para o personagem que vive enclausurado.

“Esse universo da fantasia, da imaginação, foi algo que o Fernando trouxe, que não estava ali no roteiro. Ele trouxe esses momentos de quebra na encenação e que marcam muito essa versão do espetáculo. O Lyle Kessler teve a oportunidade de assistir à nossa montagem no Rio de Janeiro, adorou e confirmou que isso nunca tinha sido feito com a peça antes”.

Ao final, predomina a ideia de um coletivo, entre personagem e público, autor e diretor, sempre buscando novas perspectivas. “Eu sempre sou escalado para fazer o lado sujo da humanidade. Eu falo alto, eu berro. Eu tenho uma potência vocal para interpretar os brutos. São poucos os diretores que olham pra mim e pensam que eu posso fazer um papel com mais sentimento”, compartilha Ernani.

Ele elogia a direção de Fernando, que soube encontrar a elegância do ator e seu personagem, e os seus colegas de elenco, que o ajudaram na busca pelas complexidades de Harold.

“A gente nunca tinha trabalhado junto. Nem com o diretor. Com ninguém. O Lucas fez um ‘Frankenstein’, pegou um iluminador com quem nunca tinha trabalhado, dois atores com quem nunca trabalhou e juntou esse bolo. Em cena, a gente desenvolveu uma intimidade espetacular.”

Atores brincam com seus personagens em ensaio de divulgação da peça. Foto: Divulgação Costa Blanca Films

Em uma das passagens mais marcantes da peça, Harold se refere a Treat como um “anjo de cara suja”, descrevendo uma figura bruta na aparência, mas cheia de bondade em seu interior.

Sobre esse mesmo processo de colaboração, Rafael acredita que a descrição serve para todos do trio, que encontraram uma forma única de se expressar por meio do teatro.

“Essa minha impulsividade, desde muito jovem, me levou para esses caminhos que em muito me ensinaram. A gente só tem dois jeitos de aprender, com o amor ou com a dor. Hoje, com 40 anos, eu acredito que evoluí bastante, mas sempre serei um anjo de cara suja”.

SERVIÇO

‘Órfãos’
Teatro FAAP: Rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo (SP)
Ingressos: R$ 80 (inteira) / R$ 40 (meia)
Temporada: até 1º de agosto, sempre às quartas e quintas, às 20h
Classificação indicativa: 14 anos

Formado em Cinema, Davi Krasilchik é aluno de Jornalismo da FAAP

--

--

LabJor
LabJor
Editor for

Um laboratório de informação: Descobrimos e contamos histórias que dão sentido ao presente.