TCCS 2022

Uma questão de DNA: o público-alvo pode salvar as revistas da crise editorial?

Vida conectada transformou imprensa de moda, mas publicações mais próximas dos leitores podem render grandes retornos

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Izabella Ricciardi

O público-alvo pode salvar as revistas de moda? Foto: Toa Heftiba/ Unsplash

A moda é hoje uma indústria global. Segundo Kate Nelson Best no livro A história do jornalismo de moda, a segunda maior economia em atividade global em termos de troca vale mais de US$ 1 trilhão. É também um setor muito concentrado. Estudo O estado da moda 2021, feito pela Mckinsey em conjunto com o portal Business of Fashion, mostra que, principalmente depois da crise econômica de 2008, a moda passou a ser controlada por grandes oligopólios, que vão de marcas de luxo — como LVMH e Kering — às de fast fashion — como H&M e Zara. E de que maneira tudo isso impacta o jornalismo — e a crítica de moda?

“A história aqui também é sobre controle, com o trabalho das grandes casas de moda cada vez menos filtrado por críticas jornalísticas ou spreads de revistas”, diz Suzy Menkes no artigo The circus of fashion, publicado no jornal americano The New York Times em fevereiro de 2013. “As roupas mais usadas pelas pessoas são as menos comentadas pela imprensa. As imagens agora vão diretamente para os clientes por meio de shows online com campanhas publicitárias como backup.”

Essa desconexão das revistas com o público não é recente. Na década de 1960, o tom conservador das publicações de moda começou a entrar em choque com um mundo que estava mudando e onde a contracultura abria espaço para outros tipos de revistas tomarem uma fatia do mercado. Grandes publicações independentes — como a inglesa Queen e a americana Interview — foram fundadas e ganharam popularidade durante esses anos. Uma característica em comum dessas revistas? Elas abraçavam o público-alvo com maestria, com um veículo criado para o leitor sem nunca se desprender dele.

A crise no mercado editorial de moda. Foto: Charisse Kenion/ Unsplash

Com os números de lucro e a circulação das revistas caindo, até mesmo grandes anunciantes começaram a olhar para as revistas independentes e estabelecidas com o leitor, destaca o ex-diretor de moda da Vogue Brasil Giovanni Frasson. Enquanto isso, as equipes nos veículos tradicionais se reduziam mais e mais. “Estamos esgotados, fartos, sobrecarregados e mal pagos”, dizia a frase de abertura de uma reportagem do Business of Fashion publicada em abril de 2022 sobre o trabalho nas grandes revistas e editoras — principalmente Condé Nast e Hearst.

No artigo Jornalismo de revista: Um olhar complexo, a autora Larissa Azubel explica que a crise no mercado editorial se alastrou porque as revistas dependem do funcionamento de diferentes células: leitores, concorrentes, anunciantes e o fator humano da produção.

“Cada uma dessas partes imprime suas marcas no todo, cria um simbolismo da revista para o leitor, as impressões que uma edição em particular pode causar e a simpatia ou antipatia que um título desperta”, explica.

Apesar do cenário complicado, o ex-diretor da Vogue Brasil acredita que existam “leitores órfãos” das revistas tradicionais de moda, mas elas se esqueceram do que eles estão buscando.

“Elas querem manter um público de alto padrão, só que não estão conversando com os próprios assinantes. Elas só conversam com a bolha. Então você tem uma classe alta totalmente desassistida porque elas não têm mais esse conteúdo.”

Foto: Charisse Kenion/ Unsplash

Algumas revistas, porém, já entenderam a nova forma de consumir conteúdo na vida digital e estão conseguindo monetizá-la de forma que até mesmo as vendas físicas representem grandes valores na receita. Elas repensaram sua estratégia de aproveitar todos os novos meios de comunicação e estabeleceram uma relação próxima com seu leitor.

Um ano depois de se desligar da Editora Abril, por exemplo, a Elle voltou ao Brasil com uma proposta bem diferente: edições semestrais impressas — maiores, com capa mais resistente e design inovador. No digital, uma edição mensal com reportagens extensas chamada Elle View caminha em conjunto com um site que prioriza mais a qualidade em vez da quantidade.

Editor de moda da Elle Brasil, Luigi Torre conta que quem encabeçou as negociações com a Elle França e os investidores sobre esse retorno foi a editora-chefe, Susana Barbosa. A linha editorial da revista já vinha sendo mudada aos poucos, desde 2015, até com um clima de experimentação. Mas eles ainda estavam dentro da Abril. “Começamos a perceber (a mudança do público e do perfil) e a nos perguntar sobre o que fazia mais sentido, o que as pessoas esperavam da Elle”, lembra Luigi.

“Em 2018 (quando a Elle fechou), já não fazia muito sentido uma revista mensal”, explica. “Teria que ser uma coisa principalmente digital, com uma grande entrada nesse meio online, e a revista impressa que realmente teria de existir precisaria vir em outro formato, no qual acreditamos mais, com uma periodicidade um pouco mais espaçada, um produto diferente. Não dava para fazer qualquer revista: teria que ser um exemplar colecionável para fazer sentido com o custo que temos para tudo hoje.”

Capa da ‘Elle Brasil’, de dezembro de 2017. Foto: Reprodução Instagram Elle Brasil

Fundada por Hélène Gordon Lazareff, a Elle foi publicada pela primeira vez em 1945, meses depois do final da Segunda Guerra Mundial, e é uma das poucas revistas femininas criadas por uma mulher — antes, Hélène havia sido editora da Marie Claire e contribuído para a Harper’s Bazaar durante a guerra.

Primeira edição da ‘Elle’, de 1945. Foto: Reprodução Biblioteca Nacional da França

A volta da Elle Brasil é um resgate às próprias origens da Elle, que era uma revista mais cara do que as outras na época de fundação, com edições maiores e sofisticadas, e foi a primeira revista de moda a ter uma coluna política. É um resgate do próprio DNA da revista, adaptado para os novos formatos e formas em que a informação é consumida hoje.

Nova ‘Elle Brasil’, volume 9, lançada em 2022. Foto: Reprodução Instagram ElleBrasil

Outro exemplo de revista que está resgatando seu DNA para se conectar com o público-alvo é a Vogue Portugal. Editora-chefe da revista, Sofia Lucas mudou a linha editorial da edição europeia criando principalmente edições maiores — e dedicadas a um tema específico. Na edição de setembro de 2018, por exemplo, o tema completo da revista foi Divas, inspirado pela morte da cantora e compositora americana Aretha Franklin (1942–2018).

Editoriais de beleza com drag queens, matérias de decoração com banheiros exóticos da Old Hollywood , um perfil da atriz Natalie Wood, editoriais inspirados pela socialite Gloria Vanderbilt, a divisão de tendências das passarelas atuais de Greta Garbo a Liza Minelli e uma linha do tempo do relacionamento da princesa britânica Margaret e seu marido fotógrafo. A edição traz também uma discussão do que é ser uma “diva” no mundo moderno e exemplos de grandes personalidades exóticas que podem ser inspiradoras. Um conjunto que faz sentido quando se olha para a fundação da revista e o público-alvo que a consolidou no mercado.

‘Vogue Portugal’, de setembro de 2018. Foto: Reprodução Arquivos Condé Nast

A Vogue foi criada por Arthur Turnure em 1890, na chamada Era de Ouro de Nova York. Com a primeira edição lançada em 1892, conversava com a mais alta e classista das sociedades — e estranhamente vendia bem também na grande massa por representar uma possibilidade de escapismo e despertar curiosidade. Turnure apostava em sua presença exclusiva na sociedade americana — era por exemplo um dos poucos que sempre estava na lista de bailes da família Astor — e conseguiu consolidar e atrair um público que até hoje acompanha a revista.

‘Vogue Portugal’, de setembro de 2018. Foto: Reprodução Arquivos Condé Nast

“A intenção da Vogue era mais no sentido de falar de sociedade, sofisticação e tinha as coisas relacionadas à moda também”, comenta o professor de História da Moda da FAAP João Braga. “As outras revistas eram diferentes. Quando a Elle surge em 1945, por exemplo, já vem com a intenção de divulgar as novas propostas de moda. Então depende da própria intenção do veículo.”

Primeira edição da ‘Vogue’, em dezembro de 1892. Reprodução Arquivos Condé Nast

Segundo o professor, trata-se hoje de uma questão de olhar para os novos tempos e atuar num novo contexto de sociedade conectada. A revista deve ser um bem de consumo, um produto que seduz o leitor ao mesmo passo em que produz conteúdo, uma revista que é uma marca muito maior do que uma única edição. Para ele, é importante pensar no que o público gostaria de ver e acompanhar, pois no final existem revistas que sobrevivem sem grandes editoras, mas nunca sem os leitores.

“Inevitavelmente qualquer questão relacionada à regularização é uma questão de se atualizar”, finaliza João Braga. “Se você não se impõe com alguma coisa, você acaba permitindo que o outro se imponha. Então é nesse sentido o atualizar-se.”

*Esta reportagem foi feita a partir do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo na FAAP de Izabella Ricciardi. Intitulado ‘O espírito dos tempos: o jornalismo de moda na era digital’, teve orientação dos Profs. Drs. Rodrigo Petrônio e Maíra Zimmermann.

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