Guaporé das artes: do abandono à vida

Jornalismo 2017
Laboratório da Notícia
8 min readOct 30, 2017

Artistas restauram de forma independente casarão abandonado há mais de 20 anos em Ceará-Mirim.

Casarão do engenho Guaporé (Foto: Mycleison Costa)

Por Mycleison Costa

Belo e imponente, esse era o casarão do engenho Guaporé, uma das mais importantes construções do século XIX encontradas em Ceará-Mirim. Abrigo de 21 cômodos entre elas 3 cafuás, apertados porões onde dormiam as escravas amas de leite, o casarão foi construído em 1868 por Vicente Inácio Pereira, deputado provincial e vice-presidente da província do Rio Grande, que recebeu do seu sogro, Manoel Varela do Nascimento, o Barão de Ceará-Mirim, as terras de Sítio Bonito como dote de casamento.

No auge da monocultura canavieira do vale verde, o espaço funcionou como casa de veraneio do Barão e recepcionou figuras do segundo Reinado, dos partidos Liberais e Conservadores, e do clero, como é documentada a visita episcopal do Bispo de Olinda e Recife, que foi hóspede no casarão.

Sede histórica e cultural do vale, essa foi a importância da casa durante determinado tempo na cidade. Após um longo período abandonado, a casa grande foi restaurada em 1979 pela Fundação José Augusto — FJA, que recebeu da Companhia Açucareira de Ceará-Mirim, atual dona das terras onde encontra-se o Guaporé, aval para trabalhar no prédio após um comodato que fornece a fundação 100 anos de administração do local.

Após restaurado, o Guaporé foi reinaugurado como o Museu Nilo Pereira, em homenagem ao ilustre jornalista e escritor cearamirinense, e em 16 de dezembro de 1988 foi tombado a nível estadual. Em 1996, a Prefeitura do Ceará-Mirim criou o projeto “Turismo Pedagógico”, que permitia a turmas do ensino público desfrutar de um dia no museu. Nesse período, o Guaporé também abrigava um anexo da Escola de Artes José Lemos de Oliveira.

Mais uma vez a pomposa construção vivia tempos áureos na imensidão do vale cearamirinense, parecia até que jamais seria deixado a própria sorte novamente… só parecia.

Impotente e resistente, esse é o Guaporé hoje. Após desacordos entre governo estadual, administrador do local após o comodato, e a Prefeitura do Ceará-mirim, parceira na administração do espaço, o prédio voltou a ser abandonado. Há alguns anos, no início dessa segunda fase de descaso, uma família de sem tetos ocupou o local e destruiu algumas peças históricas que lá estavam, entre elas um piano com mais de cem anos de idade proveniente da mobília original do Barão, que foi usado como lenha para cozinhar alimentos.

Após o despejo da família desabrigada, parte do acervo do museu foi saqueada e outras peças remanejadas para a Pinacoteca do estado onde se encontram até hoje. A casa grande do engenho Guaporé chora copiosamente nas mãos dos seus responsáveis legais, todavia enxerga um último lampejo de esperança na ação independente de artistas locais.

A iniciativa dos artistas em revitalizar o casarão

Por Ranyere Fonseca

Um dos responsáveis por este derradeiro lampejo de esperança foi o pintor e poeta Júlio Siqueira (28), que nos serviu de ponte para encontrar o idealizador do movimento: Fábio di Ojuara. “Eu participei da restauração, mas o líder era o Ojaura. Ele mora aqui perto”. Informou, o calmo Júlio de cabelos cacheados, trajando sandálias de dedo e camisa indiana.

Júlio Siqueira ao lado de sua obra no muro de casa (foto: Mycleison Costa)

A casa do artista plástico, pintor, artesão e performancer Fábio di Ojuara (59) denuncia que ali mora um artista contemporâneo: quadros provocativos e abstratos, objetos em formatos fálicos e uma decoração exótica tornam o lugar bem sugestivo.

Ojuara, trajando uma espécie de calça legging preta e uma regata vermelha, nos recebe e relata, com a propriedade de um historiador, os tempos de glória do Casarão: “Guaporé era a casa de veraneio do Barão de Ceará-Mirim. É histórica e era repleta de artefatos. A madeira era toda de jacarandá. Haviam peças da Inglaterra e de outros lugares”.

Atualmente, no entanto, apesar do empenho dos artistas, a casa histórica está longe de fazer jus a essa descrição dada por Ojuara. É um gigante desgastado, traído pelo tempo e pelos que prometeram guardá-lo. São janelas e portas quebradas, paredes deterioradas, até o piso fora roubado. O ranger das escadas dá a sensação de que uma queda é possível a qualquer momento.

“O acervo começou a desaparecer, depois vândalos depredaram a casa roubando a madeira de jacarandá, portas e janelas. Uma vez, cheguei e vi pessoas queimando um piano”, lamenta o artista plástico.

A mobilização dos artistas de Ceará-Mirim, para fazerem a revitalização do espaço, começou quando Ojuara interrompeu suas férias de carnaval na praia de Muriú para visitar o museu. “Cheguei lá e não tinha mais portas e nem janelas. Havia caixas imensas de maribondos, junto com cobras e morcegos. Me deu uma tristeza tão grande. Puta merda… eu chorei”.

Ojuara mostra sua “pintura preferida” no casarão (Foto: Mycleison Costa)

Fábio di Ojuara conta que começou a telefonar para seus amigos artistas para que, sozinhos e sem nenhum tipo de apoio, se juntassem a ele e limpassem o antigo museu, e estes se dispuseram prontamente. Foram eles: Miguel Neto, Francisco Vilela, Pedro Neto e o Júlio Siqueira. “Gastamos três mil reais só na limpeza, e demoramos uma semana”, relata Fábio.

Após limparem a casa grande, os artistas decidiram pintar nas paredes obras que relatassem a cultura cearamirinense. “Foi uma sala dedicada a personalidades, outra a paisagens, outra a lendas urbanas e outra a movimentos artísticos da cidade”, explica Ojuara. Depois do asseamento e da confecção das obras de arte, o grupo propôs celebrar os seus feitos com eventos promotores de cultura para a população.

Shows musicais, apresentações culturais, exposição de trabalhos artísticos e uma minifeira de artesanato marcaram o retorno das atividades culturais realizadas no casarão. O evento aconteceu nos dias 30 de setembro e 1 de outubro, e foi denominado “Sarau de reinauguração — Guaporé das artes”.

Sarau “Guaporé das artes”. (Fotos: Acervo pessoal do Júlio Siqueira)

A vontade dos artistas é que o governo revitalize a casa grande do engenho Guaporé, no entanto, que a deixe livre para a realização de eventos culturais. “A nossa intenção era salvar o engenho e conseguimos. Meu medo é que eles peguem o que fizemos, coloquem portas e janelas, encham de birôs e tranquem o espaço para os artistas”, declara Fábio di Ojuara.

“Barão”: a personificação de Ceará-Mirim

Por: Pedro Afonso e Ruthiane Basílio

“É mais vontade de querer fazer do que qualquer outra coisa”, afirma Francisco Ferreira (26) com a indumentária de nobre senhor do século XIX, essa que o faz deixar por algumas horas de ser pedagogo e o possibilita tornar-se um legítimo barão do período escravocrata. Na realidade, ele continua exercendo sua função de ensinar, porém em um outro ambiente: nos engenhos de Ceará-Mirim.

Francisco Ferreira vestido como o Barão de Ceara-Mirim (Foto: Acervo pessoal do Francisco)

É notório que seu ar passa pelos canaviais e suas forças se sustentam nos prédios coloniais. Assim como é claro que o abandono por parte do poder público a essa rica história é como chaga que mácula seu íntimo, pois o sentimento de pertencimento ao município é perceptível em todos seus gestos e suas frases. “Ela [Ceará-Mirim] é minha grande paixão”, declara.

O Barão nasceu há uma década, mas foi fecundado quando Francisco tinha oitos anos e visitou pela primeira vez o belo casarão do Guaporé. A sua caracterização é uma forma lúdica de convidar os turistas à uma viagem no tempo vivendo a experiência dos costumes da época: “O lugar e a caracterização fazem com que os visitantes vejam o personagem e se sintam em uma novela que se chama Ceará-Mirim”, explica.

Sobre a intervenção dos artistas no museu Nilo Pereira, ele diz estar muito feliz com tudo que eles conseguiram realizar e afirma que isso já faz parte da história do palácio. “Hoje, quando a gente visita o Guaporé, faz com que quem nunca conheceu a história de Ceará-Mirim, só em vê os painéis, já tenha uma noção do que era aquilo. O trabalho ficou perfeito”, disse encantado. “Espero que o governo não apague o trabalho se um dia for restaurá-lo novamente. Faça o que é para ser feito e preserve os painéis”, comenta esperançoso.

Painéis representando o período escravista vivenciado em Ceará-Mirim (Foto: Mycleison Costa)

Francisco luta pela valorização da cultura de sua cidade, e ajudar na formação de cidadãos conscientes é o que o motiva. Com semblante de decepção, comenta sobre a falta de afinco do poder público municipal em ensinar a história do município a população local. “Como eu vou cobrar um pertencimento cultural se eu não enraízo na mente do povo?”, indaga.

A quebra de braço entre prefeitura e governo do estado

Por José Filho

Prefeitura Municipal e Governo do Estado travam uma quebra de braço pela responsabilidade sobre o engenho. A Fundação José Augusto (FJA) iniciou um plano de restauração no início de 2014 quando lançou a licitação, vencida por Raimundo João de Araújo, para recuperação do mobiliário. “A Fundação [José Augusto] restaurou os móveis, mas não seria prudente deixar lá. A estrutura estava comprometida assim como a segurança do casarão. Por isso, deixamos na pinacoteca”, falou Ivanira Machado diretora da Fundação, em entrevista concedida à Tribuna do Norte em outubro de 2012.

Todavia, o plano parou por aí. A falta de recurso e os entraves jurídicos impediram que o casarão voltasse aos seus tempos áureos. A prefeitura tenta a tutela do engenho junto ao Ministério Público para realizar reformas. “A Fundação abandonou totalmente o engenho por falta de recursos. Porém, é de nosso interesse a reforma, mas só podemos realizá-la se a posse for nossa. Eu não posso entrar na casa de outra pessoa e reformá-la, entende?”, indagou Rosimeire Dantas, secretária de Turismo de Ceará Mirim.

Foi realizada uma audiência pública de conciliação. Na ata, consultada pela reportagem, não consta a presença da FJA. “Nós fomos avisados muito próximo da reunião e não deu tempo de preparar a nossa proposta”, afirmou Moisés Lima, assessor de imprensa da Fundação. Quanto aos demais temas abordados, Moisés nos informou que não obtinha informações suficientes sobre o assunto e que iria nos retornar. Até o fechamento dessa reportagem não obtivemos o retorno.

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