O valor do brincar como um direcionador de inovação

Pedro Limeira
Laboratório de Escuta e Convivência
6 min readSep 10, 2017

Artigo traduzido livremente do Farnam Street Blog. Para ler o original em inglês —The Value of Play As a Driver of Innovation — clique aqui.

Nota da tradução: no inglês, “play” vai além do sentido de “o brincar” que foi escolhido como tradução, significa também jogar ou divertir-se. Escolhi assim por julgar que brincar tinha mais a ver com o sentido do texto, de remeter a um jeito mais leve de lidar com a vida.

Inovação não necessariamente é o resultado de estudo sério e um processo agonizante. Como Steven Johnson eloquentemente argumenta no seu livro “O país das maravilhas: como o brincar fez o mundo moderno”, muitas das atividades e esforços que fazemos por prazer fomentaram uma quantidade excepcional de inovação e descobertas.

A história do brincar, de como isso entra na experiência humana, pode nos ensinar como abraçar as possibilidades que podem vir da leveza. Inicialmente, brincar pode parecer como uma indulgência, mas na verdade pode levar a desenvolvimentos incríveis. Como Johnson escreve:

A História é normalmente contada como uma briga longa por necessidades, não por luxos: a luta por liberdade, igualdade, segurança e auto-governança. Apesar disso, a história do prazer também importa, porque muitas das descobertas aparentemente triviais acabaram por levar a mudanças no universo da História Séria.

Brincar e Inovação Tecnológica

O desejo de ao mesmo tempo divertir o outro e a si mesmo pode levar ao desenvolvimento de tecnologias que tem aplicações diversas.

Johnson traça uma relação direta entre dispositivos descritos no “Livro dos dispositivos engenhosos”, escrito por três irmãos conhecidos como os Bana Musa em Baghdad do ano 760, e os softwares programáveis tão presentes em nossos cotidianos. O brincar é a conexão que liga as invenções vistas nas imagens antigas de instrumentos que tocam sozinhos ao relativamente recente desenvolvimento da Internet.

Alguns dos dispositivos mencionados no livro eram capazes de programar de maneira muito rudimentar. E essa foi a ideia que continha as sementes do futuro. “Conceitualmente, esse foi um enorme salto à frente: máquinas desenhadas especificamente para serem flexíveis em suas funções, máquinas controladas por código e não somente por mecânica.”

Essas máquinas foram desenhadas para entretenimento, mas para que isso pudesse se tornar realidade, alguns avanços tecnológicos significantes foram necessários. Tivemos que desenvolver os componentes físicos, o know-how de engenharia, a linguagem para criar máquinas que pudessem se mover por si próprias, e mais um monte de outras inovações. Johnson mapeia “o quanto a ideia de uma máquina programável foi mantida em circulação pela força propulsora da diversão” até que as habilidades e tecnologias vigentes pudessem nos presentear com, por exemplo, a máquina de escrever, a tecnologia de salto de frequência usada em navios da marinha e Bitcoins.

Esse poder do brincar de inspirar tecnologia que fazem mais que nos entreter nos lembra que não existe receita específica para a inovação. Novas ideias podem vir de um encadeamento de pensamentos e circunstâncias que não são óbvias em termos de que elas produzem. Considere a história de Charles Babbage, um dos pais dos computadores modernos. Sua mãe o levou para um Museu da Mecânica, um lugar para se divertir com instalações artísticas criadas com máquinas curiosas. Ele foi levado ao sótão para ver as mais peculiares, e a que mais chamou sua atenção foi uma bailarina mecânica.

O encontro no sótão dispara uma obsessão em Babbage, uma fascinação com dispositivos mecânicos que emulavam convincentemente as nuances do comportamento humano. Ele gradua-se em Matemática e Astronomia como um jovem acadêmico, mas mantém seu interesse em máquinas ao estudar os novos sistemas industriais que apareciam no norte da Inglaterra. Quase trinta anos depois de sua visita ao Museu, ele publica uma análise seminal sobre a tecnologia industrial “Sobre a Economia da Manufatura e Maquinário”, um trabalho que assumiria um papel principal no “Capital” de Marx duas décadas depois. Durante o mesmo período, Babbage começa a rascunhar planos para uma máquina de calcular chamada Motor Diferencial, uma invenção que o levaria para o Motor Analítico alguns anos depois, hoje considerado como o primeiro computador programável imaginado.

“Porque o brincar é normalmente sobre quebrar regras e experimentar novas convenções” Johnson explica, “acaba sendo uma incubadora para muitas inovações que por fim se desenvolvem em formas mais robustas e significativas.”

Para muitos de nós, o brincar é um momento desconectado das nossas tarefas cotidianas. Mas pode abrir novas possibilidades uma vez que representa uma nova forma de interagir com o contexto cotidiano; essa abertura cria espaço para a inovação.

Brincar e Inovação Social

Johnson também demonstra como o brincar leva a inovação social. Alguns tipos de recreação, como assistir a uma peça de teatro, ver exposições de arte assombrosas, ou ir a parques de diversão, são experiências vividas em grupo. Foi revolucionário quando, como sociedade, começamos a abrir espaços como esses que proporcionavam experiências únicas para pessoas diferentes. As hierarquias sociais são temporariamente suspensas, uma vez que toda a audiência está lá para ter a mesma experiência de entretenimento, diversão e admiração. É igualmente assombroso para ricos e pobres, mulheres e homens.

Essa experiência compartilhada de diversão abriu novas possibilidades para a interação social. O estar junto em um ambiente de lazer sem objetivo pré-definido, além da própria diversão, possibilitou a colaboração. “Escapar o chamado do dever — e seu status oficial na sociedade — não apenas criou um novo tipo de lazer, também criou novas ideias que não poderiam ter emergido nos locais de encontro mais estratificados como o comércio, a religião ou a vida doméstica.”

Intervenção do PlayMonday: Transformadores de Instantes, no centro de São Paulo

Como um exemplo, pense nos bares. “O nascimento de um lugar para beber também marcou a origem de um novo tipo de espaço: uma estrutura desenhada explicitamente para prazeres casuais de lazer. A taverna não era um espaço para trabalho ou contemplação; tampouco um lar. Existia em algum lugar diferente do eixo da possibilidade social, um lugar para ir somente para se divertir.” Johnson argumenta que nesses espaços, os lugares em que vamos apenas para nos divertir, nasceram os movimentos democráticos, de igualdade. Em uma anedota, ele descreve como as tavernas foram diretamente responsáveis pelo sucesso dos colonialistas na Revolução Americana.

A busca do brincar nos levou a diferentes tipos de organização, a fazer conexões com aqueles que normalmente não teríamos interagido. Não é que isso necessariamente transformou cada um individualmente, mas mudou nossas ideias sobre o que era pertinente e correto, gradualmente permitindo que o conceito de um espaço comum se tornasse crítico na forma com que desenhamos nossas cidades e organizamos nossas sociedades.

Um último elogio ao brincar

Por que o brincar é tão poderoso? Johnson explica que “humanos — e outros organismos — desenvolveram mecanismos neurais que promovem aprendizagem quando passam por experiências que confundem suas expectativas. Quando o mundo nos surpreende com algo, nossos cérebros estão programados para prestar atenção nisso.”

No fim, o ponto do brincar é ser surpreendido. O fator incerto na brincadeira é parte do que nos entretém. O brincar é um portal para novas possibilidades. Seja por meio de uma nova música, um novo espetáculo, ou um novo turno de um jogo de tabuleiro, o brincar aguça nossos sentidos enquanto imaginamos o que vai acontecer nos próximos minutos. É por essa razão que Einstein definia o brincar como elemento essencial do pensamento produtivo. Sêneca também foi um fã da brincadeira combinatória.

O brincar pode nos transportar para fora do mundo “das-coisas-que-já-conhecemos” (o caminho para o trabalho, a importância de poupar dinheiro e de escovar os dentes) e de nos levar para o mundo “das-coisas-que-ainda-não-sabemos.” E é neste mundo onde a inovação acontece.

É nesse sentido em que Johnson sugere que o brincar é um portal para o futuro. “Muitos dos ‘países das maravilhas’ da história ofereceram um vislumbre de futuros desenvolvimentos porque esses eram os espaços onde o novo passou a habitar a vida cotidiana: primeiro como uma fuga dos nossos deveres para depois fazerem parte fundamental neles.”

Explorar o brincar é sobre entender que inovações podem acontecer quando impulsionadas pelo prazer e diversão. Inovação não necessariamente precisa ser uma busca pesada. Se você estiver em uma onda criativa, fresca, cheia de boas ideias, experimente brincar.

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