Conversas com Donna Haraway: Como Sobreviver em (e com) a Terra

Entrevista feita por Andrea Ancira com Donna Haraway, publicada originalmente revista Terremoto e posteriormente no jornal Página 12

Still do documentário de Fabrizio Terranova, Donna Haraway: Storytelling for Earthly Survival (2016)

O cuidado dxs idosxs, a importância da universidade pública, a justiça reprodutiva, a crise ambiental, a ação política pensada a partir de pequenos atos. Todos esses temas atravessam as reflexões atuais de Donna Haraway, bióloga norte-americana e filósofa, famosa por ter popularizado o conceito de cyborg. Nesta conversa, com a devastação ambiental e a crise humanitária como pano de fundo, fala da necessidade de construir alianças entre xs oprimidxs do mundo mas também com xs não-humanxs como ferramenta para imaginar futuros melhores.

Donna Haraway, bióloga e antropóloga feminista, trabalha ao redor de ideias que seguem uma genealogia feminista, antiespecista e cyborg que se alimentam da ficção especulativa e a ficção científica como potências narrativas para propor um devir Chthuluceno, isto é, uma consciência e ética multiespécie ancorada na responsabilidade coletiva de habitar de modos audaciosos e criativos os efeitos do capitalismo atual.

No marco do Index Art Book Fair, esforço conquistado em conjunto com kurimanzutto, Donna Haraway visitou a Cidade do México em um contexto de deterioramento sócio-político paulatino, que recentemente tem se manifestado como violência em múltiplos aspectos, com uma particular dor na violência feminicida. Aproveitando sua visita, Andrea Ancira, pesquisadora e curadora, conversou com ela sobre a relação entre lxs acadêmicxs e a universidade como parte de movimentos sociais, justiça reprodutiva e políticas identitárias no marco de um pensamento situado política e socialmente comprometido.

Andrea Ancira: Há pouco tempo vi o filme de Fabrizio Terranova Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival. Me pareceu particularmente interessante o momento em que você destaca uma série de condições importantes para organizar a sua vida entre o trabalho acadêmico e o de escrita na casa que você divide. Partindo desse balanço entre o trabalho físico e o intelectual, considerando que as histórias que produzimos cada dia nos permitem falar e imaginar a partir de nossa posição e lugar, como você constrói conhecimento dentro e fora da academia, dentro e fora dos movimentos e redes políticas nas quais você pensa e atua? Como integrar o trabalho físico e intelectual, o cuidado e as parcerias, com a escrita? Estou pensando, por exemplo nas tensões entre a pesquisa socialmente comprometida e a academia em um contexto de crescente privatização do conhecimento e o epistemicídio que o acompanha.

Donna Haraway: No começo da década de oitenta, trabalhando já na universidade, um grupo de nós que tinha criado uma comuna, comprou um terreno e reformou uma casa velha. Procurávamos acionar juntxs uma imaginação coletiva através do trabalho da terra, conectadxs a diversos movimentos desse modo. Porém, não funcionou, ao menos não como imaginávamos. Foi um período importante de movimentos sociais no qual aqueles de nós com trabalhos acadêmicos começamos a compreender o grau do nosso próprio privilégio. Foi uma época relevante a nível pessoal, mas eu não o proporia como um modelo a ser seguido. No entanto, tenho fortes sentimentos em relação ao trabalho de conexão da universidade, criar conhecimento e ensinarmos uns axs outrxs na universidade. A universidade pública é uma instituição belíssima e insólita, o cuidado do aparato universitário implica trabalhar contra a hierarquização dos cargos universitários e a privatização das universidades públicas. Isso é ser acadêmicx. Pensando desde a minha experiência e ideologia, é extremamente importante se conectar com pessoas que trabalhem em distintas áreas. Por isso sou parte do Centro de Ecologias Criativas; do Centro de Pesquisa de Ciência e Justiça; e trabalho com artistas e ativistas dentro da universidade, assim como com etnógrafxs, literárixs, entre outrxs. O que quero dizer é que universidade deve estar em conexão com o que acontece na cidade que a acolhe. No caso da Califórnia, que é onde resido: moradias acessíveis, pessoas sem lar e a justiça da água na área central do estado. Tudo isso em relação aos problemas da migração. Apesar do meu afastamento, apoio e faço parte dos grupos de pesquisa mencionados, em menor medida. Mas isso não é suficiente. Muitxs de nós na universidade, estudantes e docentes, somos parte do Movimento Santuário na cidade, por exemplo. Além disso, trabalho com o programa de literatura de Santa Cruz, e ensino inglês a imigrantes que precisam aprender o idioma para sobreviver. Essas várias pequenas coisas que faço talvez não sejam um movimento social, mas me mantém conectada com meu entorno. Acredito que os movimentos situados em um lugar, conectados com outros movimentos situados em outro lugar, fazem com que tenhamos maior impacto. Nos tornamos grandes graças às conexões. Acredito que minhas ideias e, na medida em que posso, minha vida, são sobre gerar conexões. Uma pessoa tem uma vida só, por isso vai fazer algumas coisas bem e outras pobremente. Mas ficamos com os problemas e tentamos deixar nossas ideias serem, as quais são práticas por elas mesmas. As ideias não estão aqui e as práticas acolá, a criação de conhecimento é uma prática.

AA: Me parece muito sugestiva a ideia de compreender o compromisso político e a organização não como um grande movimento, sólido e unificado, mas como conjuntos, conexões, estratégias situadas, assembleias e alianças múltiplas. No entanto, me pergunto se essas alianças poderiam acontecer fora do Estado, e como poderiam materializar projetos de grande escala de infraestrutura, como abastecimento de água, educação pública, etc. Em que medida essas ideias se conectam, por exemplo, com movimentos autonomistas que questionam a existência opressora e colonial do Estado?

DH: Fora das instituições. Isto é, concordo com você, acredito que é necessário que as coisas aconteçam simultaneamente. Ninguém pode resolver tudo, mas podemos saber uns sobre xs outrxs e podemos fazer alianças onde seja possível, assim como podemos discordar uns dxs outrxs quando necessário. Acho muito importante trabalhar para dentro y para fora, e às vezes em antagonismo com a universidade, ter senso de humor. É preciso paciência com o antagonismo para que não seja o fim do mundo. O antagonismo pode gerar novas ideias. É muito importante que forças externas à universidade exerçam pressão sobre a universidade, por exemplo. Por isso realmente acredito que é vital não ter uma ideia purista sobre o local onde acontece a política. A política ocorre em todos os lugares onde as pessoas fazem acontecer. Estamos em aliança e conflito parcial. Um exemplo: Angela Davis, quem estava no mesmo departamento que eu na universidade durante muitos anos, criou um grupo chamado Women of Colour in Conflict and Collaboration. Me uno e apoio essa ideia: conflito e colaboração.

AA: Isto me faz pensar na “fricção”, uma metáfora que sugere Anna Tsing para compreender as diversas e conflitivas interações sociais e encontros entre as diferenças que conformam o mundo atual. A fricção não necessariamente pensada como resistência, mas como interação que define o movimento, as formas e as agências culturais através da qual a hegemonia se faz e se desfaz constantemente.

DH: Exato. Anna Tsing é incrível. Seu conceito de fricção gerativa aponta para a necessidade de nos friccionarmos uns contra xs outrxs. A cooperação é boa e necessária, mas às vezes é preciso fricção. Sem a fricção, tudo se torna muito insular e amável, não é? É importante não ser amável o tempo todo. Mas isso não significa que uma pessoa em particular tenha que fazer tudo isso porque temos diferentes sensibilidades, diferentes capacidades para o conflito e precisamos de nós mutuamente.

AA: A pergunta seguinte é sobre justiça reprodutiva, um tema muito presente no seu último livro Stay with the trouble. Sabemos que a liberdade e a justiça reprodutiva para as mulheres está em tensão com as demandas do patriarcado, do racismo, do colonialismo e do capitalismo. Frente à crise ambiental e à ausência generalizada de direitos sexuais e reprodutivos, como seria um exercício feminista e decolonial de liberdade reprodutiva e solidariedade com outras espécies?

DH: Acho essa pergunta urgente. Me enche de esperança que muitxs de nós estejamos nos perguntando o mesmo. Como se enxerga e o que devemos fazer? Perguntas radicais. Há conquistas que estão claras e assim se mantém. Por exemplo, que os seres humanos não são obrigados a ter ou não filhxs. Essa coerção em todas as suas formas deve ser resistente. E esta coerção às vezes é sutil, usualmente estrutural, às vezes econômica. Isto se mantém se pensarmos em termos de justiça coletiva e não só em termos de direitos reprodutivos. A justiça reprodutiva também significa moradia e comida, capacidade e direito de viajar, assim como capacidade de se envolver na criação de conhecimento. Estou evitando a palavra “educação” porque é muito liberal, hahaha! Todos esses são direitos reprodutivos, essa é a justiça reprodutiva, especialmente para mulheres racializadas que insistem nisso faz mais de trinta anos. As feministas abolicionistas afrodescendentes entenderam que o cuidado de seus parentes e o cuidado das gerações são direitos reprodutivos em equidistância a práticas de linchamento e genocídio que são parte da vida reprodutiva. A capacidade de cuidar das gerações é crucial para a justiça reprodutiva. Assim comumente entendemos como direitos reprodutivos, em um sentido estrito, o acesso a bons anticoncepcionais (de tipos que realmente desejamos utilizar) e o acesso ao aborto sem qualquer tipo de coerção. Evidentemente, estes são direitos reprodutivos, são essenciais, mas não são suficientes. Não são justiça reprodutiva. Acho surgem duas novas causas dentro do trabalho feminista de justiça reprodutiva que articulam as trabalhadoras antirracistas, as feministas e nossas aliadas: começar a pensar seriamente em questões de justiça ecológica paralelamente aos números de população humana que são realmente difíceis. Tem sido aterrador pensar nisto porque nos coloca facilmente em posições racistas. É muito fácil ser racista se você está pensando em questões de população humana. Mas é necessário pensar nisso, acho, e correr o risco de errar. Muitas pessoas começam a criticar o capitalismo racial, a injustiça reprodutiva e o seu impacto na população pobre. Seu impacto nas pessoas racializadas em particular, especialmente nas mulheres racializadas. Sem perder esta crítica, devemos também começar a pensar criativamente sobre a densidade, a distribuição e o número de pessoas no planeta. Um pensamento em aliança com xs não-humanxs. Devemos pensar neles como espécies de vários tipos, como multiespécies. Devemos pensar no que os conecta axs seres humanxs e outros seres no mundo: xs vivxs e xs não-vivxs; xs mortxs; as pedras, as águas, as montanhas. Devemos olhar para aqueles que pensavam deste modo o tempo todo, como são, geralmente, mas nem sempre, os movimentos indígenas: seu modo de criar família e cuidar de outrxs parentes que não são humanos necessariamente. Certamente, existem comunidades de pessoas, falando dos EUA, onde cuidam uns dos outrxs pela opressão que sofrem. Por exemplo, xs afroamericanxs, famílias latinas, etc. Também acredito que as pessoas do coletivo LGBTQ+ entendem o que é criar família sem ter que recorrer à figura do bebê como fator central. Existem muitos modelos, muitas práticas, algumas antigas e outras novas, para compreender como criar família sem dar ênfase à reprodução para assim cuidar dxs bebês já nascidxs. Então, ser pró-bebê, mas não pró-reprodução. Acredito que estamos buscando descobrir como falar sobre isso de um jeito que abarque as múltiplas espécies, que não separe xs seres humanxs de todo o resto, e que não separe os direitos da justiça. Ainda não sabemos como fazer isso. Existem razões estruturais para não sabermos como fazê-lo. Mas tenho esperança.

AA: Concordo, falar de densidade e números de população é muito arriscado, principalmente se não levarmos em conta a desigualdade. Além disso, no contexto do México e sua história colonial, é uma perspectiva problemática se considerarmos as políticas e práticas de “controle” populacional através da esterilização forçada, uma prática muito comum no México e em outros países de América Latina. De 2001 até hoje, a Comissão Nacional de Direitos Humanos documentou vários casos de abuso, de diversas formas, em clínicas rurais de todo o país.

DH: E são todas histórias já conhecidas.

AA: Atravessadas pelo colonialismo interno…

DH: A partir do Estado, e de cima: a partir da sociedade de estrutura de classes, da história das simulações e da política anti-indígena. Tudo o que acabou afetando os corpos das mulheres. Um exemplo é o controle da população, as políticas e práticas com métodos contraceptivos que não estão sob o controle das mulheres. Assim, acredito que uma das reivindicações feministas deve ser contraceptivos controlados pelas mulheres. Não devemos deixar de priorizar este tipo de demanda. As pessoas nas comunidades entendem como o crescimento de números não é inocente, não é simples. Isto não é apenas uma ideia externa. Então, como as pessoas querem lidar com isso? Como queremos colaborar e cooperar com isso? Como controlamos a imigração instrumentalizada por lógicas coloniais que despoja territórios comunais para dar passagem ao desenvolvimento sob interesses do estado e do capital? Nós, como acadêmicxs e pensadorxs críticxs, temos ferramentas de conhecimento, mas não temos boas políticas para lidar com os problemas. Acho que as políticas migratórias são realmente urgentes em termos de política geracional: o direito à migração em paralelo à luta contra a imigração por deslocamento devido à pobreza ou à violência. Por tanto, a prática da justiça reprodutiva poderia consistir em abordar a migração forçada, não apenas sobre quem tem o controle da natalidade. Sem diminuir nenhum dos dois aspectos.

AA: Que outras lutas estão relacionadas ao exercício da justiça reprodutiva ou da liberdade reprodutiva? Estou pensando em todas as formas de vida forçada, por exemplo, no complexo agrícola industrial…

DH: Acho que é extremamente interessante o fato de que el crescimento de números humanos na Terra está relacionado com a curva J, esse famoso aumento de números do final da Segunda Guerra Mundial até agora. Além disso, aconteceu exatamente ao mesmo tempo que a agricultura industrial; a produção industrial de animais, a intensificação do minério, a extração e a conversão da terra. Modificação da terra, por meio de desapropriação e comprometimento dos direitos sobre ela. Esses processos são simultâneos, são co-temporais. Penso em todxs xs que nascemos a partir da Segunda Guerra Mundial, xs que fomos producidxs pelo crescimento forçado. Expulsxs da terra, afastadxs do controle e da integridade das nossas comunidades. Tudo se traduziu em situações nas quais o cuidado das crianças é impossível, ou onde é necessário ter outra criança para poder pagar nossos impostos sobre a terra. A reprodução forçada foi uma prática que provocou o tipo de crise de crescimento da população humana atual. Trata-se de escolha — acredito que escolher é uma palavra importante e não quero descartá-la. No entanto, pensar na escolha reprodutiva é reduzir, mas pensar na reprodução forçada não é o tipo de necessidade que será abordada pelo programa de controle da população. Ao mesmo tempo, as comunidades e as pessoas devem ter acesso a anticoncepcionais saudáveis e acessíveis.

AA: Além disso, e quanto aos métodos contraceptivos tradicionais que não são mediados pela medicina alopática? Essas são tecnologias situadas que frequentemente são apagadas ou descartadas quando os sistemas de saúde pública impõem seus próprios métodos no lugar de integrar essas tecnologias locais no aparelho…

DH: E fortalecer o aparelho comunitário. Porém, acho que as pessoas precisam e querem ambos. Algumas vezes os aparelhos tradicionais não funcionam muito bem, e outras vezes sim. Acredito que as pessoas somos capazes de pesquisar e de perguntar se estas circunstâncias são adequadas agora . Quem tem esses conhecimentos e como os fortalecemos? Quem quer ter acesso a uma clínica de saúde? Queremos ambos? Como os conseguimos e utilizamos em nossos termos?

AA: A última pergunta tem a ver com uma possível interseção ou fricção entre as políticas de identidade e o cyborg. As políticas de identidade geralmente buscam reivindicar uma maior autodeterminação e liberdade política para grupos marginalizados, mediante a compreensão da natureza distintiva de cada grupo e o questionamento de tipificações impostas externamente, em vez de se organizar unicamente em torno de sistemas de crenças ou afiliação de partidária. No entanto, nos últimos anos surgiu um discurso reacionário da identidade que percebe raça, gênero e sexualidade como essências muito apreciadas, que se auto definem e se justificam por si mesmas, o que reforça o recorte binário de classe/identidade e também dá lugar a uma imaginação política sufocada na qual a política baseada na identidade só pode ser contextualizada dentro de uma lógica (neo)liberal-capitalista. Em outras palavras, a identidade como ponto inicial e final da política, em vez de ser considerada parte do trabalho de construção de uma solidariedade significativa e construtiva entre os grupos oprimidos. Diante dos binarismos sobre os quais se constrói a ontologia ocidental (homem/mulher, natureza/cultura, humano/animal ou humano/máquina) propõe uma hibridação transhumanista chamada cyborg. Onde estariam situadas as políticas de identidade e de minorias a partir do horizonte cyborg?

DH: Nunca chamei de transhumanista. Evito estas palavras porque se contaminam muito rápido. Tendo a inventar palavras porque esse outro tipo de palavras como transhumanista ou pós-humanista realmente me incomodam pelo seu humanismo-centrado, no entanto, não sou contra um certo tipo de pequeno humanismo envelhecido. A política identitária pode se tornar muito separatista, rápida e pura. Por outro lado, tento não ser absolutista. A política identitária tem um lugar nas práticas que desejo ver florescer. Isso é importante, se reunir com pessoas que se reconhecem e se agradam para afirmar histórias e identidades, mas em conexão com outrxs. As identidades devem voltar a criar conexões, para que as políticas de identidade não se convertam em um modo de separatismo, mas em um modo de se situar. Estamos aqui, mas não em todas partes. Esta história não é todas as histórias. Realmente nos importa esta história, mas é relacionada com o que é importante para outras pessoas. E como encontramos os pontos de contato para nos reunirmos? Tendo a pensar dessa maneira no lugar de condenar políticas identitárias.

Esta entrevista foi publicada originalmente na seção online “reports” da revista Terremoto, uma publicação dedicada à divulgação do pensamento teórico crítico ao redor da arte contemporânea nas Américas, e posteriormente no jornal argentino Página 12. Tradução sem fins lucrativos feita por Luciana di Leone e revisada por Estela Rosa para o Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ

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Estela Rosa
Laboratório de Teorias e Práticas Feministas — PACC/UFRJ

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).