Capa da publicação

Horizontes utópicos para os feminismos

Por Vanina Escales, publicado na coletânea Posnormales, terceira edição da ASPO

A proximidade do quinto aniversário do acontecimento que significou a concentração do 3 de junho de 2015, que deu origem ao movimento Ni una menos, fez das feministas as sujeitas políticas inesperadas e provocou uma mudança até a massificação dos feminismos, faz que estas palavras se inscrevam sob influência destes anos. A repercussão foi uma surpresa para todxs e talvez tenha respondido a uma mistura de mal-estar social, à falta de vozes oficiais claras perante os feminicídios e a uma estratégia de antecipação em uma comunicação da convocatória. Esta estratégia foi a única possibilidade que existia enquanto se elaborava o documento a ser lido, com uma caracterização da estrutura social da opressão — e suas narrativas mórbidas e morais — e uma lista de pedidos de políticas públicas consensuais.

Algumas das demandas desse momento estão pendentes. Ni una menos implicava e ainda implica, uma mudança a nível da cultura e da potencialidade dessa transformação no que chamávamos de vidas livres de violências. As demandas não foram securitárias, mas registraram o slogan “ni una menos” na mesma linha política do “nunca más”, quer dizer, na linhagem da luta por direitos humanos e com a mediação dos direitos humanos ao se dirigir ao Estado. A demanda foi tão revolucionária como poder dizer “não” sem castigo e poder nos afirmar em uma liberdade social que possibilite construir biografias de acordo com nossos desejos, com dignidade, sem coerções, paternalismos, infantilizações, tutelagens. O cenário se fez amplo e vasto para que dívidas históricas como o direito ao aborto pudesse estar no prime-time da agenda política. Em cinco anos, também podemos dizer — para usar uma máxima de Alice no país das maravilhas — que é muito difícil cuidar do sentido, porque ele segue seu próprio caminho, e pode ser que os sons sejam distorcidos.

Agora, naquele momento, denunciamos violência alojadas e permitidas, invisibilizadas e naturalizadas. Eram emergentes de um sistema de opressão quando a masculinidade hegemônica — cis e hetero — necessitava de validação. A complexidade que é o Estado buscou dar respostas a “casos” que, em geral, foram do tipo penal, os feminicídios começaram a se caracterizar deste modo e a perspectiva de gênero para explicar essa violência esteve presente; também existiram cotas de demagogia punitivista e corte de direitos. Um assunto não menos importante nesse esquema é a pergunta — bastante compartilhada por muites — sobre se essa resposta é reparadora. Em outro plano também existiram políticas de empoderamento, que tenderam a autonomia econômica de mulheres que haviam sofrido violências machistas, e um trabalho cujo impacto não se pode mensurar de prevenção social. Isso que se fez, tenhamos ou não pedido, se fez em nosso nome.

Hoje, o fato de que o Estado conte com um Ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade talvez permita que ao transversalizar as políticas haja ações mais afirmativas sobre a trama complexa da desigualdade e sobre modos de reparação que não sejam jurídicos. Precisamos de políticas que não reforcem a atomização, que habilitem a experiência coletiva, a reflexão sobre como se sustenta um sistema de precarização de existências e o valor social de tirar o corpo à cumplicidade que o submete, também, a identificação de ferramentas para fazê-lo — Programa Nacional de Educación Sexual Integral (ESI)*, por exemplo –.

As organizações sociais, coletivos ativistas de distintas faixas etárias e em distintos âmbitos buscaram maneiras de resolver os conflitos de forma coletiva, com um êxito ímpar. Esta caracterização, como se pode ver, tem traço espesso e não é generalizável, mas quer destacar que para muitos coletivos a identificação de formas de opressão, seu funcionamento como um sistema e a iniciativa de pôr em marcha modificações em sua engrenagem para fazer outra coisa, foi importante em todo processo. Envolveu entender o que é político no patriarcado e como é incompatível com as ideias de justiça social e de liberdade. Guattari diria que o indivíduo está ligado a um sistema de representação que coloca a libido sob a dependência da máquina capitalista. E que, ao contrário, em um dispositivo coletivo, com uma carga coletiva de desejo, as coisas são muito diferentes, já que se conectariam a multiplicidades maiores, sempre mais abertas ao campo social. Que os feminismos sejam o movimento político e social mais dinâmico e expansivo dos últimos anos significa também que se instalaram em vastíssimos grupos, organizações, pares, trabalhos e modificaram as formas de se vincular.

A palavra violência bate. A filósofa italiana Tamar Pitch remonta até a origem do uso da palavra por parte de ativistas feminista: violência substituiu opressão. Essa substituição repercutiu também nos termos da discussão já que, se opressão remete a linguagem política e falava de uma estrutura social na que o poder do heteropatriarcado buscava submeter às mulheres, as bichas, as lésbicas, as trans, ao falar agora de violência, os alarmes acendem e alguém cita o Código Penal. Não só isso, procura-se um culpado final: o agressor — note-se a essencialização do ato de agredir na pessoa –, solitário, responsável, separado do social. E não é só isso, mas também a vítima está essencializada como tal, sem margem política discursiva para sair dessa nova armadilha. Sua voz agora é escutada, mas parece ser uma das poucas possibilidades de escuta que a sociedade permitiria. Dito de outra forma, o app social desativou a opção de salvar solicitações que venham de fora da subjetividade da vítima, e a caracterização de “violência” está encoberta de uma legitimidade, que qualquer reinvindicação para se esforçar para ficar embaixo de seu guarda-chuva.

Pitch propõe complexificar a noção mesma de “violência de gênero”, já que a ideia da vítima está ligada à justiça penal e o binarismo vítima/agressor supõe um maniqueísmo que reduz a complexidade do sistema de poder e desigualdade que apoia o patriarcado. Quer dizer, são violências que não vão se resolver em um júri. A pesquisadora Catalina Trebisacce, em diálogo com Augustina Paz Frontera, tenta definir o significante que nestes cinco anos caracterizou o feminismo, e é violências: “ainda que haja outras demandas além da luta contra as violências contra pessoas subalternizadas pelo gênero, vemos serem traduzidas um montão de experiências em termos de violência”.

A violência sobre os corpos foi entendida em função de uma matriz de desigualdade social, de uma lógica particular de acumulação de riquezas e de condições laborais, de uma consideração desigual do Estado — enquanto não temos autonomia sobre nossos corpos –. Esse período de cinco anos também deixou experiências diversas, sobrepostas. Significou, em grande parte, a recuperação de uma memória social ligada à subalternidade e que se rompesse o silêncio intergeracional, para tecer afetações comuns. O pessoal é político deu densidade a essa micropolítica: pela primeira vez muitas atualizaram experiências que não puderam caracterizar no passado e as reorganizaram com novas palavras. Também se reconheceram e recuperaram as práticas coletivas do feminismo popular e se agudizaram os esforços interpretativos da trama patriarcal. Militou-se até o esgotamento para levar os feminismos ao interior de cada organização, sindicato ou local de trabalho. Claro que para 2015 já éramos um movimento, mas não éramos enxergadas.

Neste ponto, talvez possamos pensar se queremos vidas livres de violências ou simplesmente vidas vivíveis e desejadas. Pedíamos naquele momento políticas públicas e cinco anos depois, no meio de uma crise — não pelo rufar das asas de uma borboleta, mas por uma saborosa sopa de morcegos –, parece ser o momento de os feminismos pensarmos na utopia, imaginarmos um bem viver.

Por sorte, uma crise permite pensar nas transformações possíveis, a dependência fundamental de ume outre como condição inalterável, uma dependência como fortaleza, reconhecida como a base da comunidade política global. Com o resto da crítica que nos deixa o isolamento, podemos trazer a proposta até comunidades menores, vizinhas, de trabalho, de amigos, de afinidade e fazer que a política seja uma forma instituinte de novas liberdades sociais e de direitos por demais postergados.

Quando começou esse tempo de exceção, este isolamento social preventivo obrigatório, surgiram uma série de perguntas sobre as formas como levamos a vida e se é possível sair do espanto que nos afeta graças a imagens da morte, para reabilitar a crítica e imaginar horizontes emancipatórios. É provável que as perguntas que nos fazemos nestes dias sejam — como disse a artista e teórica Marcela Fuentes (Marsha Gall) — a configuração da base a partir da qual gerar transformações sociais, “os lugares, o ritmo, os afetos e as formas do coletivo que podem abrigar não só ideias, mas também fazer que as pessoas criem o mundo que anseiam”. São os passos preliminares da performance futura.

Se concordamos que o capitalismo nos vampiriza e se apoia em nossa existência, como vamos nos opor? Como saímos do jogo em que sempre perdemos? Qual é a outridade radical ao capitalismo? Frederic Jameson diz que não podemos imaginar nenhuma mudança radical em nossa existência social sem antes lançar visões utópicas. Também é possível nos perguntarmos se não há já utopias em marcha, se há políticas da diferença que escapam na prática de modos capitalistas.

A prática das assembleias feminista experimenta um modo de organização do heterogêneo, para criar a horizontalidade, para que seja um espaço onde todas as vozes contam, anti-hierárquico, solidário. Nem sempre é assim e costumam surgir tensões, como as que surgem da necessidade de autonomia que muitas exigem para os feminismos e o fato de que muitas companheiras se aproximaram do Estado, mas não são as únicas. As últimas mobilizações do 8 de março e do 3 de junho se organizaram na cidade de Buenos Aires na Mutual Sentimiento. Contudo, a experiência de assembleia mostra em sua forma o que quer como feminismo em prática, uma vontade horizontal, voltada à construção de consensos e organização e com disposição à escuta des outres. As assembleias têm faíscas de um cometa utópico? Se elas se sustentarão, dependerá de mantermos ou promovermos a capacidade crítica e, ao mesmo tempo, valorizarmos e cuidarmos do capital político que temos como movimento, que se autodenomina transfeminista, anti-racista, anticolonial e anticapitalista.

Um impulso utópico seguramente rege a vida das comunidades camponesas que produzem alimentos com uma ética do cuidado do meio ambiente. De suas granjas e campos não saíram vírus nem regaram a terra de agrotóxicos nem organizaram matanças de animais não humanos. A filósofa Donna Haraway, certa de que o apocalipse é uma possibilidade com muitas fichas, diz “‘nossas’ relações com a ‘natureza’ poderiam ser imaginadas como um compromisso social com um ser que não é ‘isso’, nem ‘você’, nem ‘ele’, nem ‘ela’, nem ‘eles’ em relação com ‘nós mesmas’”. Toda essa gramática é política. E se pergunta “Que outras possibilidades narrativas poderíamos encontrar em monstruosas figuras linguísticas para as relações com a ‘natureza’ em um trabalho ecofeminista?” Muitas das práticas sobre o bem viver, a ideia da soberania alimentar, provém das comunidades camponesas e indígenas — além de comunidades de zonas periurbanas –, não só a respeito da cultura do saber, da técnica, mas também do modo solidário, de codependência da vida. Nessa ordem, es defensores ambientais cuidam da terra, da água e das sementes, contra o extrativismo, os despejos e os avanços da monocultura. Nesta zona de afinidade poderiam se localizar o antiespecismo e o veganismo.

O fim da história é a impossibilidade de pensar utopicamente. Dito de outra forma, com Jameson, os contornos de uma prática política nova e efetiva para a época da globalização só são possíveis através da utopia. É um sintoma que essa ideia tenha se deslocado das retóricas militantes, porque é um princípio que desenha o mundo que desejamos e os valores nos quais deve se basear — e também organiza a recusa –. Propõe um caminho, uma ilusão, uma incitação à luta, o telescópio por onde olhar uma visão do mundo que não dê asco, a medida dos sonhos coletivos por vir, uma ânsia frente ao pessimismo estéril e o otimismo consumista. Talvez seja necessário esclarecer que não há necessidade de coerência interna ou de uma ideia de harmonia orientadora: como isso pode acomodar aqueles que vivem — nós vivemos — a contradição e o desconforto?

José Esteban Muñoz diz temos que buscar “prazeres novos e melhores, outras formas de estar no mundo”, em seu ensaio Utopia queer. O queer seria um espaço de futuro, um horizonte da ordem da potência, imaginável em certas produções culturais dissidentes, das quais nos aproximamos com a esperança como uma metodologia crítica para buscar em suas memórias saltos adiante. Ainda não chegamos à utopia queer. Esse impulso fantasma, isso que anima, é uma luta contra o presenteísmo, contra o aqui e agora; recupera o que nos roubaram e ocultaram do passado e se esforça a ter visões de futuro apesar de quanto inundam nossa existência os planos a curto prazo. A utopia é uma resistência. Não podemos nos resignar como sujeites politiques nem como movimento que não tem utopias; o queer se propõe como oposição a uma pulsão anti-relacional e como coletividade. Além disso, a utopia envolve uma ideia de felicidade e, embora às vezes seja frustrante, seguimos seus passos.

As experiências que recuperam a ideia de um bem viver não negam a possibilidade de tensões — nunca se exclui que não vamos ceder a políticas de prestígio ou burocráticas, entrar na patrulha ou entrar em paranoia –. Mas recuperar formas de vida comunitária, não regulamentadas pelo Estado, mas construídas a partir de grupos de afinidade política — feministas — perguntando sobre o sentido social de estar com outres, parece ser um desafio e uma obrigação ética para o futuro madmaxiano da pós-pandemia.

Texto originalmente publicado na coletânea Posnormales, terceira edição da ASPO. Tradução sem fins lucrativos feita por Estela Rosa e revisada por Mariana Patrício para o Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ.

--

--

Estela Rosa
Laboratório de Teorias e Práticas Feministas — PACC/UFRJ

Poeta e caipira, curadora da Mulheres que escrevem. Mestranda em Literatura-UFRJ e autora de Um rojão atado à memória (7 Letras) e Cine Studio 33 (Macondo).