Design para Apropriação: o que é e por onde começar
Nós, designers, nos vemos diariamente engajados(as) em buscar entender os(as) usuários(as). Para isso, atuamos em diferentes especialidades, desde UX Researchers, UX Writers, UX/UI Designers, etc. Somos treinados(as) a ter empatia, a entender o contexto, a mapear ao máximo a jornada e o fluxo de interações. E isso naturalmente nos leva para um caminho onde queremos/pretendemos/tentamos prever todas as ações e interações dos(as) usuários(as) no produto em que estamos trabalhando.
Mas a verdade é que nem tudo sai como o planejado. E está tudo bem!
Os(as) usuários(as), em algum momento e em algum grau, vão usar os produtos para fins que jamais imaginávamos, e isso não é, de forma alguma, sinal de fracasso. Tirando casos em que o uso é intencionado para atividades ilegais, discursos de ódio, ou quaisquer intenções de prejudicar algo ou alguém, em geral estas reinterpretações que os(as) usuários(as) fazem são algo positivo.
Existe um termo para essas ações que acontecem no contexto de uso: apropriação. A apropriação é quando os(as) usuários(as) utilizam um produto para fins diferentes dos quais ele foi projetado e desenvolvido. Alan Dix comenta que essas improvisações e adaptações em torno da tecnologia mostram que a tecnologia foi domesticada, que os(as) usuários(as) entendem e se sentem confortáveis o suficiente com a tecnologia para usar seus próprios caminhos.
Alguns dos pontos positivos que a apropriação pode trazer para um produto incluem:
- Se um produto puder ser utilizado para mais de um uso, é provável que tenha uma maior longevidade;
- Se os usos alternativos forem populares — eles também podem levar ao aumento das vendas do produto;
- O produto, assim como as marcas, deve ter um quê emocional para se conectar com os(as) consumidores(as). A apropriação auxilia nessa conexão emocional, trazendo senso de pertencimento, posse e criatividade.
Ok? Mas e na prática, como é a apropriação?
Bom, existem vários exemplos, mas vamos trazer aqui uma das ferramentas de comunicação mais utilizadas pelos brasileiros: o WhatsApp.
Já conheci pessoas que criam um grupo no WhatsApp e adicionam apenas elas mesmas para salvar links, imagens, e itens compartilhados na rede. Aposto que quem projetou o WhatsApp não previa que as pessoas poderiam utilizá-lo como um "bloco de notas". Este tipo de uso é relativamente comum, e existem até tutoriais ensinando a fazer isso.
Há também quem programe o envio de mensagens no WhatsApp fora do horário de trabalho para causar aquela impressão de “Nossa, fulano(a) está trabalhando até tarde”. Aqui também tem um link com tutorial de como fazer isso.
É bastante possível que estes usos não tenham necessariamente sido planejados nem previstos pelos(as)designers nas etapas de construção do WhatsApp. Porém, estas apropriações aumentam o valor percebido pelos(as) usuários(as) em relação ao produto.
Embora não possamos prever todas as maneiras como os(as) usuários(as) irão interagir e o que eles(as) irão fazer com o software que estamos construindo, existem recursos que podemos implementar para aumentar as possibilidades de que as apropriações aconteçam.
Alan Dix, comenta que existem estratégias para se fazer Design para Apropriação, ou seja maneiras pelas quais nós designers podemos dar suporte para que as pessoas apropriem. Vou trazer de uma maneira resumida e com alguns exemplos quais são estas estratégias para facilitar o entendimento:
1. Permitir Interpretação
Muitos sistemas negam ao(à) usuário(a) a capacidade de interpretar como algo pode ser usado. Permitir a interpretação pressupõe que você deixará pelo menos algumas partes do produto abertas para o(a) usuário(a) determinar como elas devem ser usadas.
Um exemplo são as caixas de texto para colocar uma bio no perfil de uma rede social, por exemplo. Nesse campo de texto o usuário tem liberdade para atribuir o significado que quiser, colocando o tipo de conteúdo que quiser. Há quem use como bio mesmo, há quem use como maneira de promover um conteúdo recente gerado em outra plataforma e há que use como um campo para gerar engajamento.
2. Forneça visibilidade
Fornecer visibilidade significa fornecer mais informações sobre um estado do sistema do que o usuário espera. Isso significa dar detalhes sobre itens específicos, para que o(a) usuário(a) saiba como agir para atingir seus objetivos.
Um exemplo, que o próprio Alan Dix traz é o sinal de celular. Na prática, os(as) usuários(as) precisam saber apenas se tem sinal de telefonia ou não. No entanto, o indicador de força permite que o(a) usuário(a) procure um sinal melhor se a sua chamada estiver ruim.
3. Expor Intenções
Dependendo do público e do segmento do produto, uma das preocupações existentes é de que o sistema seja subvertido. A subversão é quando o(a) usuário(a) utiliza o sistema para fins que são contrários ao que ele se propõe (por exemplo, um tempo atrás tinha um antivírus para o Windows que poderia ser usado justamente para inserir vírus nos computadores).
Se você deseja se proteger contra a subversão, pode ser muito útil esclarecer suas intenções para o uso de um produto; isso funcionará como uma nota que pode ajudar a manter a apropriação dentro de limites aceitáveis.
Por exemplo, o Mercado Livre deixa claro as intenções da ferramenta antes do(a) usuário(a) enviar uma mensagem para potenciais compradores(as) dos produtos que estiver vendendo:
4. Suporte, não controle
Trata-se de equilibrar o que será ou não automatizado dentro do sistema. Às vezes isso pode significar ter um processo menos eficiente, mas fornecer aos(às) usuários(as) maior controle, o que permite que eles(as) apropriem-se desse processo.
Um exemplo disso são as atualizações de sistemas. Em geral, a maioria dos sistemas oferece atualização automática, mas é importante que essa decisão seja tomada pelo(a) usuário(a). Talvez a intenção do(a) usuário(a) é justamente não atualizar o sistema porque isso pode interferir em algum outro programa que usa e está integrado, por exemplo. Por isso, muitas ferramentas oferecem a possibilidade de não fazer atualizações automáticas.
5. Integrações e configurações
É possível projetar produtos com a intenção de que os(as) usuários(as) possam modificar livremente esse produto: por exemplo os jogos de computador ou sistemas open source.
Exemplo disso são jogos como o Super Tux Cart, um jogo de corrida de kart gratuito e de código aberto, e que está no ar desde 2003 porque existe uma comunidade que atende a constantes modificações do jogo.
6. Incentivar o compartilhamento
Quando os(as) usuários(as) se apropriam de um sistema, pode ser muito útil incentivá-los(as) a compartilhar essa apropriação com os(as) demais. Hoje, isso é mais fácil com o advento das redes sociais.
No início deste texto eu forneci exemplos de blogs e portais que compartilhavam apropriações feitas no WhatsApp. Nesta situação, uma das maneiras como nós designers poderíamos fazer Design para Apropriação, seria incentivar, compartilhar e até recompensar essas reinterpretações.
7. Aprenda com a apropriação
A etapa final do processo é aprender com a apropriação. Se você descobrir como seus produtos estão sendo apropriados, você pode começar a adotar estas apropriações no seu sistema.
Muitas apropriações podem se tornar funcionalidades, o que pode ser útil para outros(as) usuários(as) e também para o crescimento do seu produto.
Nós não podemos planejar absolutamente tudo, e isto é ótimo! Dar espaço para as pessoas criarem e assumirem papel de protagonismo no seu contexto de uso, pode ser também o resultado de um bom design.
Não se trata de projetar o produto perfeito. Mas de projetar um produto que atenda às necessidades dos(as) usuários(as) — intencionalmente ou não.
Referência:
Dix A. Designing for Appropriation. Proceedings of the 21st BCS HCI Group Conference. 2007 vol: 2 (September)