Lições do design italiano para produtos digitais em tempos de pandemia

Marina Neta
Ladies That UX PT
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7 min readJun 17, 2020

O país europeu não foi exatamente um modelo a ser seguido no confronto da COVID-19, porém, "il saper fare" italiano traz alguns ensinamentos que podem apoiar o desenvolvimento de produtos nesse momento

Cadeira "Plia", de Giancarlo Piretti (1967): o design democratizado. Fonte: MoMA.

A expressão "design italiano" parece ter um sentido único: a prática no país ganhou tanta relevância que usamos design italiano como um adjetivo, indo além da forma de projetar.

O que, então, ele tem de tão diferente?

Em entrevista para a CNN, o historiador e filósofo Leandro Karnal pontua que três coisas que impulsionam mudanças bruscas na nossa sociedade: revolução, guerra e vírus.

A Itália saiu derrotada da Segunda Guerra e a dominância econômica dos Estados Unidos na época tornava a recuperação ainda mais difícil para o país. É aí aonde o design ganha força: em um país destruído, impactado pela escassez de recursos, usar a tecnologia disponível como aliada e a criatividade como ferramenta principal fez com que o país não só conseguisse se reerguer, mas também se projetasse mundialmente em relação à qualidade de, sobretudo, seus automóveis, eletrodomésticos e móveis.

Olhando para o nosso contexto atual, a pandemia de COVID-19 resultou na demissão de 25, 30 e até 40% do quadro de funcionários de muitas empresas. A contenção de gastos foi inevitável, e muitas delas ainda correm o risco de quebrar. Além do desemprego, o distanciamento social, o medo e a insegurança estão trazendo impactos profundos na vida de todas.

O papel da pessoa designer será essencial nesse momento projetar soluções que resolvam problemas imediatos ao mesmo tempo que ajudam a criar um futuro com mais esperança.

E, afinal, como podemos buscar isso?

Colaboração e criatividade

Vamos considerar aqui como criatividade a utilização eficaz dos recursos disponíveis a fim de atingir o melhor resultado. Isso significa que ela está ao alcance de todas as pessoas–ser criativo não se limita a um determinado papel e também não se trata de um dom inato.

A Superleggera (muito leve, em português), projetada por Gio Ponti, é um dos ícones do design italiano pós-guerra e sela a união entre designers e artesãos na criação de produtos.

A cadeira é um exemplo de inovação: utilizando o mínimo de material possível e possibilitando a produção em massa por sua simplicidade, ela é reproduzida até hoje, mais de 60 anos depois. A colaboração entre design e artesanato possibilitou um resultado de alta qualidade, replicabilidade e baixo custo.

Publicidade da Superleggera. Fonte: Milano Good Design

O que podemos aprender: Quem são as pessoas que podem contribuir para que o seu produto seja capaz de gerar valor para o cliente final e para o negócio? Tentar buscar dentro da própria empresa pessoas que até então não contribuíam com o processo de design pode ser uma saída.

Esse é o momento em que o papel do designer como facilitador entra em jogo. Atividades como criação de jornada do usuário, co-criação, prototipagem serão mais do que nunca úteis, mas é necessário que a pessoa designer consiga guiar as pessoas participantes para que elas possam verbalizar ou desenhar o que estão pensando.

Soluções de longo prazo

O alumínio era um material utilizado em sua maior parte na indústria bélica. Após o período de guerra, porém, o material passa a ser incorporado à indústria geral. Isso possibilitou a criação de produtos de longa durabilidade, e alguns deles são peças indispensáveis até hoje em muitas casas.

Provavelmente você já tomou um café feito em uma Moka, também conhecida como “cafeteira italiana”. O que talvez você não saiba é que o primeiro protótipo dela foi feito em 1933, e ela passou a ser amplamente comercializada a partir da década de 1950, após Renato Bialetti, filho de Alfonso Bialetti (responsável pelo primeiro projeto da Moka) assume o comando da empresa.

A parte que se trata de um exemplo incrível de como podemos nos inspirar no que vemos em nosso dia-a-dia para pensarmos em novas soluções–ela foi idealizada enquanto Alfonso assistia à esposa lavar a roupa–, impressiona o quanto a cafeteira ainda é adorada e utilizada.

Fonte: Archcook

O que podemos aprender: em contextos ágeis, sobretudo, muitas soluções são desenvolvidas para resolver um problema pontual existente. Mas isso pode ter um preço alto no futuro. Nesse momento, principalmente, é importante lembrarmos que os recursos estão limitados, débitos técnicos podem acarretar grandes problemas e os hábitos e necessidades serão outras.

Ao pensarmos em soluções paliativas, é interessante também tentarmos projetar no futuro como essa solução pode ser evoluída e como ela continuaria sendo válida, tanto para o cliente quanto para o negócio. A nossa dificuldade em antecipar problemas pode ter um custo muito alto nesse momento.

Estética e função correm juntas

Achille Castiglioni é um dos mais renomados designers italianos do período pós-guerra. A clássica banqueta "Mezzadro" tem um assento de trator, uma composição simples e lúdica que, além de funcional e econômica, se destacava nos ambientes.

As pessoas designers na Itália compreenderam que cumprir a função não bastava, que as pessoas precisavam de mais: o produto precisava provocar emoções positivas.

Banqueta "Mezzadro" (1957)

O que podemos aprender: esse momento de clausura está despertando sentimentos ruins como medo, insegurança, perda de controle e estresse em boa parte das pessoas. Já parou para pensar o quanto o seu produto ou feature está contribuindo para atenuar ou acentuar esses sentimentos?

A estética aqui assume um papel importante na vida das pessoas, já que em momentos de tristeza existe uma tendência à busca pelo que é bonito, por formas harmoniosas e que tragam boas sensações.

Em casos de baixa no quadro de pessoas desenvolvedoras de software, é provável que muitas limitações técnicas comecem a aparecer. E isso pode acarretar também uma perda na "consistência" da interface e experiência do usuário. O papel do designer aqui, ao meu ver, é compreender quais são essas possíveis limitações técnicas e como podemos tirar vantagem delas.

Olhar para dentro

Talvez umas das criações mais famosas do design italiano seja a Vespa, da Piaggio, e seu lançamento aconteceu justamente logo após o término da Segunda Guerra, em 1946.

A scooter tinha como principal objetivo atender o povo: dos trabalhadores que precisavam se locomover e não tinham dinheiro para comprar um carro às mulheres que precisavam ir ao mercado comprar algo para cozinhar. A abertura central, inclusive, foi pensada para que mulheres pudessem dirigir mesmo de saia.

A Vespa, na verdade, reúne muitos elementos característicos do design italiano pós-guerra. Nessa talk eu falo um pouco mais sobre essa relação: https://www.youtube.com/watch?v=lm3CIJsqMGo.

Gregory Peck e Audrey Hepburn em "Roman Holiday". Fonte: Italian Ways.

O que podemos aprender: não precisa ir muito longe pra saber que a pandemia está sendo vivenciada de formas diferentes por cada um, e as diferenças são marcadas principalmente pela desigualdade social. Um estudo recente mostrou, por exemplo, que 66% das pessoas que morreram em decorrência da COVID-19 ganhavam menos de 3 salários mínimos.

Parece óbvio, mas muitas soluções são baseadas apenas em benchmarks e em soluções propostas em outros países, o que se torna muito arriscado nesse momento. Para uma situação tão específica e complexa, as soluções serão igualmente específicas e complexas.

Allora?

Para concluir, é possível resumir todos esses pontos em três princípios já bastante conhecidos por nós, designers: a solução precisa ser desejável, viável e possível. Essa tríade do Design Thinking é uma lembrança de que precisamos colocar as necessidades das pessoas em evidência, e isso dentro das possibilidades tecnológicas e de negócio.

Se conquistamos espaço nas empresas nos últimos anos, talvez agora seja o momento de realmente enterrar a ideia de que design se trata apenas de um acessório dentro do processo. Todos os exemplos citados acima demonstram o quanto o design foi um aliado não só para as companhias que produziram esses produtos, mas também provocou uma mudança cultural muito grande em todo o país.

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