Mulheres, o mundo não foi feito para você, literalmente.

Juliana Proserpio
Ladies That UX PT
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7 min readAug 8, 2020

Quantas dores e sangramentos desnecessários nós mulheres vivemos como normal?

Você sabia que estudos provam que mulheres têm índices de diagnósticos de doenças mais lentos do que homens? Será que simplesmente não se acredita na seriedade das suas queixas?

Veja bem, nós mulheres sangramos mensalmente, esse sangrar faz parte de um ciclo feminino, que foi reprimido por muitos anos e visto como sujo. Esse sangrar, como disse uma amiga minha querida é o que nos permite a vida, mas não estou falando desse sangrar. Estou falando do sangrar que não precisa acontecer, da dor que não é acreditada e que acontece, da falta de espaço e credibilidade com a dor feminina. Com a falta do espaço e conexão com o feminino que faz com que o nosso mundo, a nossa sociedade e os nosso serviços públicos e privados sejam menos eficientes, simplesmente porque ignoram o feminino, ou melhor colocado, porque eles contemplam somente o masculino.

No ano passado, depois de sangrar por quase um ano e reportar isso ao meu médico generalista e quem era especializado em saúde feminina, a resposta era sempre a mesma:

- “Vamos esperar mais três meses tomando essa vitamina.”

Por sorte, no início de julho, eu e meu marido pegamos uma gripe muito forte. Por insistência do meu marido fui a um outro médico com ele para tratar os sintomas da gripe. Ao final da consulta, comentei: — “Olha eu também estou com um sangramento que não pára e dores no peito.” A primeira pergunta do novo médico foi: — “Você tem certeza que não está grávida?”

Corte a cena, e acelere a história para 3 dias depois desta frase. Eu estava operando de emergência por conta de uma gravidez tubária de 6,5 cm que estava já explodindo.

Eu nunca vou me esquecer quantas vezes o meu novo médico obstetra me falou:

-“Você sabia que você poderia ter morrido?”

Será que só eu tive essa má experiência com meus sintomas? Será que eu estava sendo atendida por um médico ruim?

Que sorte a minha ter achado esses novos médicos maravilhosos! Mas o que essa situação me fez pensar foi: a minha possibilidade de morte está ligada a um erro médico individual ou a um erro de design do sistema médico?

O médico que não deu bola para as minhas queixas não é necessariamente ruim, a verdade é que as dores femininas são muito menos atendidas do que a dos homens e este é um erro do sistema. É um erro de design do sistema.

O design do mundo é ainda centrado nos padrões masculinos seja ele no âmbito da medicina, das estradas, da política, das leis, da educação, dos esportes, da língua e em tudo o que foi criado pelo ser humano. (Viu que eu escrevi ser humano e não HOMEM? Isso foi intencional!)

Você sabia que os protocolos médicos são na maioria das vezes escritos ou enfatizados a partir dos sintomas masculinos?

Vamos tomar por exemplo um problema de saúde como o infarto.

Quem você acha que tem mais infarte?

Pensou nos homens? Você acertou! Mas você sabia que o infarto em mulheres é mais fatal do que nos homens?

Aqui vão dados do HCOR (hospital referência em cardiologia em São Paulo):

“No mundo, as doenças cardiovasculares são a maior causa de mortes entre as mulheres, com 8 milhões de mortes por ano. Este número é oito vezes maior do que o de mortes por câncer de mama; apesar do alto risco, poucas mulheres visitam o cardiologista regularmente; no Brasil, as doenças cardiovasculares são a principal causa de morte entre as mulheres; os sintomas das doenças cardíacas nas mulheres geralmente são diferentes dos sintomas nos homens. Quando o homem vai ter um infarto, costuma sentir uma forte dor no peito que irradia para os braços. Já nas mulheres é comum sentir náusea, fraqueza, dores gástricas e falta de ar — sintomas que podem ser confundidos com outras doenças."

E ainda, tirado do site da HCOR:

“Segundo a OMS — Organização Mundial de Saúde — as doenças cardiovasculares são responsáveis por 1/3 de todas as mortes de mulheres no mundo, o equivalente a cerca de 8,5 milhões de óbitos por ano, mais de 23 mil por dia.”

Porquê não se fala mais do risco de infarto feminino? Vale lembrar, para os machistas de plantão, eu não estou falando para deixar de se preocupar com o infarto masculino, mas sim refletir e pensar PORQUÊ que o infarto feminino não é visto pela sociedade como um problema tão grande quanto o masculino?

Antes de compartilhar este texto por aqui, pedi para algumas amigas lerem e me dizerem o que acharam. A Fê (nome fictício) me respondeu assim: “Acabei de ler aqui e me caiu uma ficha muito grande! ISSO TUDO É VERDADE. Estou em choque!”

No ano passado, a Fê estava há dias com calafrios, tremedeiras e febres altas que iam e vinham repentinamente. Ela logo foi ao ginecologista e pediu para o pai a acompanhar, ela estava assustada. Durante a consulta o ginecologista sussurrou para seu pai, atrás dela, que na verdade ela só precisava de carinho e a encaminhou de volta para casa com Novalgina. Dois dias depois ela foi internada no hospital com pielonefrite aguda (uma infecção no rim). Como ela foi tarde para o hospital, a infecção do rim estava entrando pro sangue, e isso podia levar a uma infecção generalizada.

A minha outra amiga, médica, contou que durante a sua graduação como médica, os sintomas femininos do infarto são chamados de atípicos. Lembrem que temos mais de 50% da população no Brasil feminina, como que os sintomas de uma doença que mata tantas mulheres pode ser chamada de atípica?
Ela também passou por uma situação similar de descrédito de sua dor, e demorou anos para diagnosticar uma endometriose severa, onde ela sentia muita dor e que era vista desde a sua infância como normal. No final das contas, foi ela mesma quem teve de fazer o seu próprio diagnóstico para conseguir ser atendida.

A gente pensa que já evoluiu tanto em relação a igualdade de gênero, quando na verdade ainda estamos engatinhando. Um estudo publicado pela Nature Communications diz que as mulheres são muito menos diagnosticadas que os homens. Em relação ao câncer por exemplo, os pesquisadores dizem que mulheres demoram 2 anos e meio a mais do que os homens. Quando falamos de diabetes então, a pesquisa mostra que as mulheres são diagnosticadas 4 anos e meio mais tarde do que os homens. Deu para entender?

Você pode ver a matéria da pesquisa na íntegra por aqui: https://www.nature.com/articles/s41467-019-08475-9

Segundo Søren Brunak, PhD, professora na Universidade de Copenhague, e pesquisadora na Novo Nordisk Foundation Center Protein Research, e autora principal deste estudo — “Nós não podemos mais usar o modelo de “tamanho único — one size fits all”. Mulheres negras sofrem ainda mais disparidade”. E ainda conclui: “Mulheres e homens experimentam muitas doenças e distúrbios de maneira diferente. Tanto o sexo quanto o gênero podem ter um impacto significativo em nossa saúde e bem-estar ”, explicou ela. “Esse ainda é um problema que muitas vezes é esquecido, mesmo dentro da educação e treinamento médicos”.

Estamos sendo mal-tratadas por design, ou seja a partir da concepção dos sistemas, dos modelos de educação, das práticas e processos.

Ao começar a escrever este texto hoje, minha playlist no Spotify colocou ao acaso a música RESPEITO (RESPECT) da Aretha Franklin (é o mínimo que pedimos né?), e também ao acaso, lembrei que o primeiro episódio que eu ouvi do podcast 99% Invisible, foi o episódio 363 chamado Mulher Invisível (Invisible Woman).

O problema do mundo ter sido projetado (designed) para os homens não está somente na medicina, mas sim em tudo o que foi alguma vez projetado.

No episódio, a autora do livro “Invisible Woman” Caroline Criado Perez conta sobre casos aplicados do uso de dados que são tendenciosos para favorecer o homem, e assim deixam as mulheres de fora do padrão da criação e de fora também da linha de segurança. No episódio ela conta por exemplo sobre os testes de segurança em carros. “Os manequins de teste de acidentes de carro também são geralmente do sexo masculino, com base em um homem comum, o que significa que eles apresentam tamanhos e proporções diferentes das de uma mulher comum. A suposição tácita (para essa escolha de design e de teste de segurança) é que o homem cis significa 50% da população, deixando mais da metade da população fora dos padrões de segurança dos carros. Essa abordagem ignora diferenças anatômicas, além de circunstâncias individuais específicas, como uma pessoa que está grávida. Esses testes afetam o design e fazem parte do motivo pelo qual as mulheres têm muito mais probabilidade de se machucar ou morrer em um acidente de carro. Mesmo em lugares onde bonecos “femininos” são trazidos para testar carros, esses números geralmente são bonecos masculinos em escala reduzida com a mesma forma básica. Às vezes, também, esses manequins são testados apenas em assentos de passageiros.”

Você pode ouvir mais sobre este casos e vários outros casos no podcast aqui: https://99percentinvisible.org/episode/invisible-women/

Ou então ler o livro “Invisible Woman”, da autora já mencionada anteriormente Caroline Criado Perez.

O mundo não foi projetado para nós mulheres, isto já está bem claro.

A minha natureza, mulher, designer, indignada e otimista ao mesmo tempo só me dá um caminho. Me abrir com vocês para curar e co-construir para evoluir. Esse texto faz parte do meu processo de construção e criação para evolução e eu espero que ele também ajude a quem o estiver lendo. Venho pensando bastante sobre a essência humana e a essência feminina. A natureza humana está ligada em sua essência ao criar. Nós humanos, somos os únicos seres capazes de criar intencionalmente, de transformar e construir novas realidades com um ponto de vista e com uma direção.

É por isso, que nos resta agora agir como designers do mundo onde vivemos (que sempre fomos) e então atuar como intervencionistas de ação. Acelerarmos o tempo de transformação para explorar e promover soluções inclusivas independente dos gêneros. Este já seria um bom começo. Este texto é um convite para que você possa construir e influenciar soluções mais inteligentes e inclusivas, independente de onde você atua.

Antes que eu me esqueça, por favor, não sangre à toa! Sangrar literalmente ou emocionalmente não é normal! Se você estiver com qualquer tipo de dor tente achar alguém que ajude a chegar a raiz do problema e te ajude a saná-la. Não vamos nos deixar enganar que dor é parte da natureza feminina. Ela não é.

Dor é dor para qualquer um.

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Juliana Proserpio
Ladies That UX PT

Designer, entrepreneur &innovator. I’d rather be constantly changing than being that same old person. Founder Echos — Innovation Lab