UX para a Neurodiversidade — Primeiros passos

Raquel Zaghi
Ladies That UX PT
Published in
5 min readMay 17, 2021

Me descobri mãe de uma criança autista em outubro de 2020. Raul estava com 2 anos e 3 meses e, passado o baque inicial, eu quis entender qual é o panorama geral de acessibilidade digital para crianças e adultos neurodiversos e confesso que não me surpreendi com o que encontrei. Até porque, até então, eu era parte do problema. Eu nunca tinha considerado uma pessoa atípica como o usuário das minhas soluções.

Raul sorrindo para a foto. “Mas ele não parece autista!” é uma frase que ouvimos muito desde o diagnóstico e reflete os estereótipos que costumam ser retratados. Quantos autistas você conhece?

Como Joyce Renzi relata em sua experiência pessoal com o diagnóstico de Síndrome de Down do seu filho, o primeiro capacitismo que a pessoa deficiente enfrenta é o da própria família. Nós estamos muito mais acostumados a falar sobre os impedimentos do que sobre as capacidades e possibilidades que essas pessoas tem, muito por causa de uma construção social onde a pessoa com deficiência vivia pouco, não estava no ambiente escolar e muito menos no mercado de trabalho.

Uma das principais iniciativas da área de UX sobre o tema é o meetup Design para o Autismo, realizado pela Mergo nos anos 2019 e 2020. O Edu Agni também é papai de autista e sua fala na palestra “Quebrando o ciclo da invisibilidade” se tornou uma grande referência para mim, para o meu trabalho e para minha vida desde que assisti, porque ela escancara uma realidade difícil para além da romantização de viver com os nossos “anjinhos azuis” que precisa ser mais discutida para deixar de ser tabu.

“A gente não pode se dizer abençoado com todas as dificuldades que a gente tem de viver em uma sociedade que não é inclusiva de fato.”

Eu aprendi com o Edu o conceito do Ciclo da Invisibilidade — o Edu por sua vez aprendeu com a Aline Santos (UXPA SP, UX para Minas Pretas), e vou abordar aqui para que, possivelmente, novas pessoas aprendam a partir dessa publicação. A reflexão é necessária:

  • Se não temos espaços, produtos e serviços preparados para receber pessoas com autismo, essas pessoas não conseguem ter uma convivência consistente na sociedade e ocupar espaços, logo, não são vistas pelas outras pessoas.
  • O que a gente não vê, a gente não considera. A gente ignora. Como essas pessoas não são vistas, não são consideradas membros da comunidade.
  • Dessa forma, a gente tende a acreditar que a realidade de pessoas com deficiências cognitivas é algo muito longe da nossa realidade. Que são casos isolados, que não teremos pessoas próximas de nós com essa condição, e que portanto, a falta de acesso é uma questão particular. Assim, para que vou investir em acessibilidade na minha solução, se não existem usuários que necessitam dessa acessibilidade? Para que vou adaptar o meu espaço físico, se não existem deficientes que frequentam o meu espaço?
  • E se essas pessoas não tem acesso a bens, serviços e espaços acessíveis, elas não conseguem acessar, consumir e experienciar a vida da maneira que poderiam experienciar. Sem esse acesso, não há possibilidade de participarem da sociedade.
  • Sem participarem, essas pessoas continuam excluídas da sociedade e, pelo desconhecimento, são alvo de discriminação e preconceito. E assim funciona o Ciclo da Invisibilidade.

“Em diversas situações, somos levados a acreditar que pela maioria dos espaços não serem adaptados, devemos levar nossos filhos a espaços próprios para eles. E onde é o lugar próprio para ele, senão o mundo que ele vive?” — Edu Agni

Ao quebrar o Ciclo da Invisibilidade, assumimos a nossa responsabilidade ao considerar essas pessoas como consumidoras, como usuárias, como frequentadoras dos mesmos espaços que nós, para que a falta de acesso se torne um problema que incomode de fato.

Recentemente, na minha busca pelo que existe de material disponível sobre acessibilidade cognitiva no design de interfaces, terminei a leitura do Gaia — Um Guia de Recomendações Sobre Design Digital Inclusivo para Pessoas com Autismo, da Talita Pagani. O trabalho super completo da Talita foca no Transtorno do Espectro Autista, mas também trata de outras DCNAs (Deficiências Cognitivas Neuronais e de Aprendizagem), como TDAH, dislexia e discalculia, condições com diferentes níveis e formas de manifestação nas pessoas. Atender a um público tão diverso é um desafio enorme, mas é uma responsabilidade conjunta de equipes envolvidas na construção de produtos e serviços no que se refere à acessibilidade, usabilidade e a equidade do uso para um Design Universal.

O Design Universal (DU) é definido como o projeto de produtos e ambientes para serem utilizados por todas as pessoas, em sua máxima extensão possível, sem a necessidade de adaptação ou um projeto especializado.

Infelizmente, de modo geral, se possuímos pouco conhecimento sobre interfaces acessíveis no geral — indo pouco além do “arroz com feijão” da acessibilidade testando contraste de cores e consultando a WCAG, considerar as DCNAs está ainda mais longe da realidade da comunidade de desenvolvimento. Na pesquisa da Talita, ela descobriu que boa parte dos profissionais que possuem algum conhecimento sobre essas condições tem familiares ou pessoas próximas com alguma dessas deficiências, ou seja, o interesse em acessibilidade cognitiva parte de uma motivação pessoal, o que também foi o meu caso. Mas não precisa ser o seu.

Na prática

Acessibilidade é uma das facetas da usabilidade, e a menos que estejamos deliberadamente excluindo usuários com limitações visuais, motoras, auditivas e também cognitivas, não podemos definir nossa experiência como utilizável até que seja acessível. É difícil e é um trabalho colaborativo — e está em progresso.

Uma criança autista desenvolve tantas estratégias para sobreviver ao mundo que não devemos falar sobre necessidades especiais e sim sobre habilidades incríveis! (Autor desconhecido)

Se você chegou até aqui, o primeiro passo você já deu, que é se interessar pelo assunto e tentar entender qual o seu papel na construção de uma sociedade mais inclusiva.

  1. Continue aberto e disposto a aprender. Se você é da área de UX, sabe da importância da empatia e alteridade no nosso trabalho e quando se trata de deficiências, essas habilidades são ainda mais necessárias.
  2. Busque fazer um checklist de boas práticas com o que existe de material disponível sobre o assunto. Em uma futura publicação, vou trazer exemplos de aplicações utilizando o GAIA como referência, que você pode conferir aqui.
  3. Lance luz sobre o tema no seu ambiente de trabalho. Sugira workshops sobre acessibilidade para colaboradores de diferentes áreas e proponha iniciativas que promovam a diversidade, como pesquisas e testes de usabilidade com usuários deficientes, e mais importante, a contratação de pessoas neurodiversas nos times!

Vou finalizar esta publicação compartilhando com vocês um segredo que aprendi nesse meu pouco tempo de vivência no mundo da neurodiversidade: você se surpreenderá e aprenderá muito, e talvez fará um favor maior a si mesmo do que o que imagina estar fazendo para os outros.

Tornar o mundo mais adequado para que pessoas com DCNAs não precisem desenvolver tantas estratégias para sobreviver a ele, vai te proporcionar a riqueza da convivência com pessoas que enxergam as coisas de forma diferente de você.

Obrigada, Raul, por tanto.

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