A Arte de Amar: a biografia da sexóloga Michalina Wislocka (PARTE 2)

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Aviso aos navegantes: Este texto é a Parte 2 sobre o filme A Arte de Amar.
Se você chegou aqui por acaso e não quer ter spoilers sobre a história, seu lugar é na Parte 1. Caso você já tenha assistido ao filme ou queria saber mais sobre a vida de Michalina Wislocka e o que o filme deixou de contar, vem comigo pra gente conversar mais.

Quando comecei a pesquisar sobre Wislocka, li várias entrevistas que sua filha Krysia deu próximo ao lançamento do filme e fiquei bastante surpresa como alguns acontecimentos mais pesados foram romanceados no filme. Me questionei sobre a decisão de terem tirado alguns fatos importantes para a construção e coerência da personagem; inclusive quando assisti pareciam falhas de roteiro que deixaram pontas soltas mesmo.

Antes, um breve resumo da história toda: Michalina casou-se ainda jovem nos anos 40 com Stach Wislocki. Após alguns anos casados, ela convence seu marido a trazer sua melhor amiga de infância para viver com eles e assim vivem em um triângulo amoroso. Anos mais tarde as duas engravidam, porém as crianças são registradas sendo filhos gêmeos de Michalina. O triângulo se desfaz, cada um vai para o seu lado, e Michalina se dedica ferozmente à carreira de médica ginecologista.
Em um de seus trabalhos, conhece o professor de ginástica Jurek, de quem se torna amante e mantém um relacionamento amoroso por anos. É com ele que Michalina vai aprender a gostar de sexo, a conhecer seu próprio corpo e a partir dessa descoberta, vai passar a disseminar a importância do prazer sexual para suas pacientes. Jurek é também sua principal inspiração para escrever o livro A Arte de Amar, o qual foi feito baseado em suas experiências sexuais e que ensina às mulheres sobre o clitóris, masturbação, orgasmo, posições sexuais e por aí vai.

Isso posto, vamos problematizar. A começar pela história do triângulo amoroso. O filme insinua que as duas eram bissexuais, mas na verdade o marido transava com as mulheres (separadamente) e as mulheres não transavam entre si. Aliás, uma coisa que o filme não explora é o quão tóxico era esse marido. Stach era biólogo e via sua esposa como uma futura assistente para os seus trabalhos, além disso era machista e bastante possessivo não permitindo que Wislocka saísse de casa, tivesse amigos e nem mesmo fosse com a sua mãe ao cinema.

Trancafiada e infeliz, é aí que ela sugere a vinda da melhor amiga da infância para morar com eles. Wanda representava o padrão de mulher ideal para a época. Era bonita, vaidosa e gostava de cuidar da casa. O filme retrata bem essas características e acentua o contraste dos seus vestidos vermelhos e femininos com as roupas terrosas e masculinas de Michalina.

Sabendo da possibilidade do marido e Wanda se atraírem sexualmente (o que realmente acontece), Michalina abre mão da exclusividade em prol de ter uma vida mais livre. Aliás, ela realmente não fazia questão da exclusividade pois não sentia prazer nenhum fazendo sexo com o marido; inclusive, segundo as entrevistas de sua filha, Michalina associava o sexo com algo traumático e sentia culpa e dor por isso, via sua relação com Stach em um nível espiritual. Em uma discussão no filme, ela diz ao marido sobre Wanda: "era para você fazer sexo com ela e amar só a mim". Complicado né?

Wanda, dentro da casa, não vivia sobre as mesmas regras. Ela tinha um quarto separado (que só quem podia entrar era Michalina) e era a responsável pelas tarefas domésticas enquanto o casal trabalhava e estudava. Quando vieram os filhos, a coisa se agravou ainda mais. Esta história das crianças é bastante triste, mas foi bem retratada no filme. Após vários anos morando juntos, nem Wanda nem Michalina engravidavam, estavam desconfiadas de que Stach fosse estéril. Na vida real, Stach usava o coito interrompido como método contraceptivo, mas ao saber que estavam desconfiando de sua fertilidade — o que naquela época era bastante ofensivo e vergonhoso — fez questão de ir até o fim e engravidou Wanda.

Como Wanda, para a família e vizinhos, era apenas uma mulher que estavam ajudando por um período, não era uma boa ideia que ela aparecesse grávida sem ser casada. Ela quis abortar, mas Michalina a convenceu de que não e logo engravidou também. No filme não mostra, mas para seguirem com as gestações, se mudaram para o interior e ficaram lá até os partos. Wanda teve um menino, Michalina uma menina. Para evitarem os rumores e as explicações desnecessárias, as crianças foram registradas e batizadas como gêmeos nascidos de Michalina e assim foram criados. Wanda era a babá e empregada, Michalina e Stach os pais ausentes.

Wanda já estava sobrecarregada por cuidar das duas crianças e de todas as tarefas domésticas quando começou a se afastar de Michalina. Segundo a filha Krysia, Wanda gostava do ambiente doméstico mas não dava conta de cuidar de tudo sozinha, além disso a menina sentia o desprezo da babá que dava mais preferência e atenção ao seu irmão. Stach, ainda atraído sexualmente por Wanda, a propôs em casamento, mesmo que já fosse oficialmente com Michalina, combinaram de ir embora levando seu filho biológico, deixando pra trás Michalina e a menina.

Quando Michalina a vê fazendo as malas e percebe o que está acontecendo, se sente traída e bastante decepcionada, não tanto com Wanda, mas com Stach. Ela então revela ao marido que sabia dos casos extraconjugais e das mais de trinta fotos que ele guardava de suas amantes nuas. Wanda desconhecia essa história e, ao saber, desiste de partir com Stach, mas em seguida segue seu próprio caminho. Stach, que foi colocado contra a parede e expulso de casa por Michalina, vai embora naquele momento mesmo, mas antes, em uma cena bastante comovente, reune os dois filhos, que já tinham uns sete anos, e diz que de agora em diante eles não têm mais pai, que não deverão nunca o procurar ou entrar em contato, e isso tudo, claro, por culpa de Michalina.

Essa parte apesar de ser bastante triste, dá início a uma nova etapa na vida de Michalina Wislocka. Após a separação dos filhos com a partida de Wanda, Wislocka, agora já médica e pós graduada, se concentra na carreira e viaja para o interior em um novo trabalho.

Para mim, este é um momento em que o filme peca ao ignorar a existência da filha, que fica sem ser mencionada até a vida adulta. Lendo suas entrevistas, soube que depois desses acontecimentos, ela cresceu sem a presença constante da mãe, foi deixada aos cuidados de babás e da avó e também passou anos em hospitais pois vivia doente. Krysia revela, inclusive, que há grandes chances de Wislocka ser autista com Síndrome de Asperger. A suspeita existe porque na época não se pensava nessa possibilidade, mas Krysia é diagnosticada com esse espectro do autismo, assim como sua filha e neta. Sabendo que o comportamento e muitas características se assemelham às da mãe, se supõe que ela também tivesse. Uma das dificuldades é a de se relacionar, de ter intimidade e de criar vínculos; mas uma vez feito, duram para sempre (ou até que algo grave aconteça — como foi com Wanda). Outra característica é a sinceridade extrema e a postura transparente. E nesses sentidos esses traços são bem explorados no filme. Wislocka não via o sexo como um tabu, falava dele abertamente e enfrentava de maneira franca e direta qualquer um que fosse de encontro com seus ideais.

Mas continuando… Quando Michalina vai para o interior trabalhar como médica ginecologista em um hotel, conhece Jurek (Eryk Lubos), um ex marinheiro que também trabalha no mesmo local e que havia viajado o mundo todo, se envolvendo com muitas mulheres diferentes, aprendendo, inclusive, sobre sexo tântrico e o prazer da mulher. Jurek era casado mas isso não impediu que os dois se relacionassem por anos. Foi com ele que Wislocka descobriu que gostava de sexo sim e que era possível ter prazer nele sim. Faltava conhecer seu corpo, entender o que lhe dava prazer, aprender a estimular o clitóris, buscar atingir o orgasmo, e sobretudo, ter um parceiro com quem pudesse dividir essa intimidade. E Jurek foi esse homem.

Michalina Wislocka foi pioneira no tratamento da infertilidade e se dedicou aos estudos de crescimento assistido e do método in vitro. Durante a pós graduação, quis estudar sobre a citologia hormonal para se aprofundar sobre a menopausa, mas seu professor não se interessou por esse tipo de pesquisa, já que não atingia o interesse da maioria (leia-se: dos homens).

Outra coisa importantíssima é qu eWislocka também era uma grande defensora do controle reprodutivo com o uso de contraceptivos, e o que o filme não mostra é que para conhecer suas eficácias, ela testou em si mesma, resultando em três gestações indesejadas. Duas foram frutos de sexos causais com homens irrelevantes e a terceira com um que até quis assumir o filho, mas tinha a expectativa de que ela se dedicasse às tarefas domésticas e à criação da criança. Wislocka não tinha interesse em abdicar de sua profissão por conta da maternidade, tinha plena consciência da sua inaptidão para ser mãe, haja vista que sabia não estar fazendo um bom trabalho com a filha que já tinha; e portanto, decidiu pelo aborto nas três gestações.

Ela era ginecologista, e a achava que se uma mulher estivesse grávida, o filho deveria nascer, e por isso mesmo tinha um interesse tão grande em informar a todos sobre os métodos contraceptivos, a fim de que as mulheres pudessem explorar sua sexualidade sem correr o risco de gerar um filho toda vez, tendo controle sobre seus corpos e escolhendo o momento ideal para serem mães, se assim o desejarem.

A ideia de publicar o livro A Arte de Amar já estava quase sendo abandonada mas, segundo é mostrado no filme, foi graças às mulheres que foram suas pacientes ou receberam seus conselhos, que pressionaram seus maridos influentes e conseguiram viabilizar a publicação do mesmo. Não encontrei nada a respeito disso na vida real, mas gosto de pensar que essa retribuição existiu. Seu livro foi um sucesso de vendas alcançando mais de 7 milhões de cópias vendidas e 13 edições ao longo de 40 anos; porém infelizmente ainda não temos uma versão traduzida para o português. Aguardamos ansiosas.

Me questiono sobre a escolha de ignorar tantas partes importantes que construíram a história de Wislocka. Tenho plena ciência de que não dá pra colocar tudo no filme e que deve-se fazer cortes. Mas penso que se o roteiro tivesse sido assinado por uma mulher, talvez algumas das pautas femininas não teriam sido apagadas. Poderíamos ter visto mais do controle psicológico e da possessividade do ex marido, e menos da sugestão de bissexualidade que alimenta o fetiche masculino; saberíamos sobre suas dificuldades em relação à maternidade e sua a consciência nas decisões de seus abortos.

Michalina Wislocka era uma mulher à frente do seu tempo, não há dúvidas. Deixou sua marca na história polonesa como a primeira sexóloga e autora de best-seller, e quem sabe agora com seu filme disponível na maior plataforma de streaming, marque também a vida de mais pessoas que deixarão seu nome e seu legado vivos.

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