Mudbound — Lágrimas Sobre o Mississipi: as quatro mulheres que deram poder a uma história

#INDICOUMFILME

Quem tem medo do protagonismo negro? Essa semana quero indicar para vocês assistirem Mudbound — Lágrimas Sobre o Mississipi. Eu tô atrasada nessa recomendação, eu sei. O filme estreiou no Brasil no começo desse ano e concorreu a quatro Oscars, ficando fora da corrida de melhor filme, o que foi uma pena já que era melhor que outros da categoria.

Mudbound se passa nos Estados Unidos dos anos 40 quando havia a segregação racial e conta a história de duas famílias, uma negra — os Jacksons, e outra branca — os McAllans. A família dos brancos se muda para uma pequena fazenda em Delta, no Mississipi, onde a família dos negros trabalham para eles. Enquanto Ronsel Jackson e Jamie McAllan vão defender o país na Segunda Guerra Mundial, quem fica na cidade precisa lidar com o dia a dia de uma vida miserável em que o racismo parece ser um abismo invencível.

Tomei cuidado para não falar nada que estrague a experiência do filme, ele é muito mais do que escrevo, aqui é só um gostinho pra deixar você com vontade de conhecer essa história. Os motivos pelos quais quero recomendar são muitos, mas os principais têm nome e sobrenome: Dee Rees, Rachel Morrison, Mary J. Blige e Carey Mulligan. Elas são as principais responsáveis por potencializar a história desse filme.

Começamos pelo começo.

Dee Rees é a diretora do filme. Junto com Virgil Williams, adaptou a história do livro homônimo de Hillary Jordan, lançado em 2008. A cineasta concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2018 sendo a primeira mulher negra a ser indicada ao Oscar em uma categoria de escrita. É diretora também do maravilhoso Pária (2011), um dos meus filmes estado-unidenses favoritos o qual também super recomendo assistirem.

Dee Rees nasceu em Nashville, Tennessee, e fez pós-graduação na Universidade de Nova York tendo Spike Lee como professor e mentor. Na adaptação de Mudbound se inspirou nas experiências de seu avô que serviu o exército e de sua avó que sonhava em ser estenográfica e que guardava diários com fotos de seus ancestrais escravos e nomes de quem lutou em guerras. Dee Rees constrói os personagens com densidade trazendo veracidade em cada gesto e em cada palavra que dizem. A mulher é foda.

Rachel Morrison assina a direção de fotografia, cargo raramente ocupado por mulheres. Ela foi a primeira mulher a ser nomeada para o prêmio de melhor fotografia no Oscar, e também foi a diretora de fotografia de Pantera Negra (2018). Seu trabalho em Mudbound é magistral, a escolha dos planos e as cenas reiteram as similaridades entre as duas famílias cuja a diferença racial insiste em separar. A paisagem rural, o anoitecer, a terra, e especialmente a lama ganham tanta importância quanto os próprios personagens.

Mary J. Blige foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, tornando Dee Rees a primeira diretora negra tendo um ator ou atriz indicado ao Oscar. Sua atuação é um evento especial nesse filme. Uma de suas inspirações para compor a personagem Florence Jackson foi sua tia, que também criou os filhos de uma família de brancos. Florence é mãe de quatro filhos em que um deles é escalado para a guerra; é a esposa de um homem bom, que a respeita e a quer bem. É uma mulher segura, observadora e sábia. Sua atuação é primorosa: o tempo, o silêncio, o olhar, tudo nela é equalizado de uma maneira que não necessita muitas ações e diálogos para compreender sua força. É segurando discretamente um facão quando um homem branco se aproxima que o espectador entende o histórico de abuso e violência sexual que ela sofreu. Dee Rees constrói sua família de maneira otimista e possível.

O marido de Florence, Hap Jackson, é um homem inteligente e cauteloso que cria seus filhos para serem independentes e conscientes, os deixando livres para serem o que quiserem ser. Para isso, prefere se humilhar e se submeter aos brancos, do que enfrentá-los e pôr em risco o futuro de sua família. A descrença de um mundo justo está enraizada nas memórias de seus antepassados:

"Meus avôs e tios-avôs, avós e tias-avós, pai e mãe, quebraram, prepararam, derreteram, plantaram, colheram, ergueram, queimaram, quebraram novamente. Trabalharam nesta terra a vida toda, esta terra que nunca seria deles. Trabalharam até suarem, suaram até sangrarem, sangraram até morrerem."

Carey Mulligan é Laura McAllen e é também o que Florence descreve como “nem todo branco é ruim”. Aceita sua condição de mãe e dona de casa por não questionar as barreiras que lhe foram impostas e por não saber como quebrá-las, sentimos sua frustração por se ver presa em uma vida sem perspectivas. É uma mulher solitária, mas ainda sim tem empatia com os injustiçados e encontra em Florence uma cumplicidade importante. Sob o olhar predatório de seu sogro, ela vive também à sombra do marido que nunca a inclui nas decisões. Quando questiona não ter sido informada sobre os novos planos, ouve de seu marido um “eu já tinha te falado”, mas não, não tinha. Ele não faz isso porque esquece, faz porque não se importa, e isso a invisibiliza de forma cruel.

Seu marido, Henry McAllan, é o típico branco que mantém o status quo. Não verbaliza o ódio ao negro, e é possível que nem os odeie de fato, mas não faz nada para mudar a questão racial, inclusive se beneficia dela o tempo todo por acreditar que os negros estão ali a seu dispor. Não é ingênuo. Só pensa em si e acha que se a vida está suficientemente ruim para ele já é motivo para não se importar com os outros.

Mudbound parece estar longe da nossa realidade já que não vivemos em um país segregado por lei, mas as consequências da escravidão duram até hoje e infelizmente não estão perto de acabar. O racismo estrutural atua muitas vezes de forma invisível e inodor, passando despercebido aos desatentos privilegiados. Muitas vezes apontar para o racismo (e para o racista) tem trazido questionamentos muito maiores sobre o ato de apontar do que sobre o próprio racista. O privilégio branco constantemente tenta reduzir a luta antirracista a picuinhas e parece ser incapaz de aprender algo com quem viveu e ainda vive do outro lado da história, mas isso deve ser mudado com urgência. É importante não temer o protagonismo negro, se aproximar e conhecer histórias narradas a partir de pontos de vista e experiência das próprias pessoas negras.

Mudbound — Lágrimas Sobre o Mississipi deve entrar no catálogo da Netflix Brasil em breve mas você já pode ter mais um gostinho assistindo ao trailer (ativa a legenda automática pra ler em Português):

Depois de assistir me conta o que mais te chamou atenção?

Até!

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