A questão das cotas através de camadas ideológicas

Pedro Maciel
Lado (B)lack
Published in
4 min readJan 18, 2017

Em discussões sobre cotas para negros em universidades, frequentemente tanto negros quanto brancos acreditam que estas deveriam ser baseadas em renda e não em etnia.

Eu inclusive já me inclui em um destes mas hoje acredito que não, e o motivo exatamente pela questão das ideologias em camadas, que eu postei outro dia aqui.

Este é um bom tópico para eu explicar o pensamento do artigo anterior.

Quando falamos sobre universidades enquanto primeiramente uma das etapas para se adentrar o mercado de trabalho, estamos operando na lógica do capitalismo.

Neste nível, não vamos discutir até onde ele é justo ou não. Não vamos tentar consertar suas distorções. A única distorção que vamos corrigir é a de distribuição étnica nas várias camadas da sociedade.

Eu entendo se isso soar ilógico para você, mas o que acontece é que o problema do racismo perpassa as questões de desigualdade de renda. Ele é assim amplificado pelas mesmas, mas suas raízes se estendem no núcleo de nossa cultura.

Isso pode ser sintetizado pelo fato de que um branco pobre terá muito mais chances na vida do que um preto pobre.

É mais um sintoma do nosso racismo o fato de que nos valemos de outras pautas para abafar medidas sócio-afirmativas.

Exemplo 1

Pessoa 1: Há poucos negros nas universidades, por isso devem haver cotas.
Pessoa 2: Mas universidade não deveria formar para o mercado de trabalho

Mas ela forma, não forma? É o mundo que está aí e os negros não podem esperar. Essa uma outra discussão (camada). A camada da instrumentalização da universidade pelo mercado. É um problema real, mas por enquanto, é o que tem pra hoje. ¯\_(ツ)_/¯

Além disso, justamente pelo papel de formar pessoas também para além do mercado a universidade proporciona a produção de conhecimento e reflexão cultural.

Os negros brasileiros também precisam exercer o direito de colocar sua história em voga, nos livros, nos estudos, e mais que isso: Ele tem direito de ser o pesquisador com o nome no trabalho.

Exemplo 2

Pessoa 1: Há poucos negros nas universidades, por isso devem haver cotas.
Pessoa 2: Mas as cotas deveriam ser para pobres, certo? Assim não privilegiaríamos negros ricos e nem deixaríamos de lado brancos pobres

Primeiro: se um negro é rico, é porquê na verdade ele deveria ser milionário (lembrando que estamos na esfera ideológica do capitalismo meritocrático), com exceção de alguns pouquíssimos príncipes africanos, ninguém veio pro Brasil à passeio. Com exceção das recentes imigrações (principalmente de haitianos e nigerianos), todo negro no Brasil é descendente de escravas trazidas a força, estupradas e forçadas a trabalhar, certo?

Logo, se ele começou em absurda desvantagem e conseguiu prosperar, qual o problema de se devolver a vantagem à ele?

Porquê que ao negro, só deve ser devolvido desde que ele fique na condição de igual ou pior?

Porquê ao negro não cabe uma posição de vantagem?

Quando o italiano herda posição de vantagem sem fazer muita coisa, tendo uma família próspera onde o paga paga cursinho pré-vestibular, não precisa trabalhar, etc, não parece ser um problema para nossa sociedade.

Se eu roubo R$ 40.000,00 da sua família, morro e passo pros meus filhos, você tem o direito de pedir de volta?

É justo eu falar que eu devolvo, desde que você prove que realmente precisa do dinheiro?

Exemplo 3

Pessoa 1: Há poucos negros na universidades, por isso devem haver cotas.
Pessoa 2: Mas as pessoas não devem ser diferenciados por cor/raça/etnia. Isto é discriminação #somostodoshumanos.

Acredito que aqui estamos discutindo dentro da camada certa.

O objetivo das cotas é exatamente este. Se metade do Brasil é negra, e em 2004 haviam apenas 15% de negros em universidades, significa que o sistema está fazendo basicamente isso, seguindo a lógica social e diferenciando as pessoas por cor.

Logo, concordamos aqui.

Daí, para des-diferenciar, ou melhor, equalizar esta distorção, nós precisamos aplicar um filtro para corrigir os números, certo?

Exemplo 4

Pessoa 1: Há poucos negros na universidades, por isso devem haver cotas.
Pessoa 2: Mas não há critérios para diferenciar negros de brancos, pois isto é muito subjetivo.

Aqui entramos em outra a camada. A camada da arbitrariedade do sistema, suas leis, portarias, decretos e etc.

Como pode um sistema conceder à um indivíduo o direito de operar uma máquina de matar que em 2013, por exemplo, ceifou 43.075 vidas.

Que tipo de teste de habilitação consegue confirmar que de fato aquele alguém não vai atropelar pessoas inocentes, como aconteceu em pinheiros em 2015, onde 3 pessoas que estavam curtindo uma noite agradável num barzinho e subitamente um veículo descontrolado destruiu com a vida destas pessoas?

Mas, shit happens, não é mesmo?

A arbitrariedade está intríseca ao sistema.

Como me dizia um grande amigo:

A gente sabe muito bem o que é braço e o que é mão, mas se tentar buscar onde exatamente termina um e começa outro, começa a ficar complicado

E é exatamente esse o problema. É como a maioridade penal também. Quando determinado como 18, um adolescente com 17 anos, 11 meses e 364 dias de idade pode cometer um crime e ser julgado como menor. E se diminuir pra 12, o mesmo vai acontecer e por aí vai.

Esses critérios estão sendo aperfeiçoados cotidianamente. Estão sujeitos a falhas assim como tudo na vida. Não é possível usar isso como argumento porque a falha esporádica não supera os benefícios da sua boa aplicação.

E não estamos discutindo a camada ideológica da arbitrariedade do sistema. E novamente, se valer disso para abafar a questão, ao meu ver, é no mínimo uma forma de perpetuar o racismo.

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