Carolina e a literatura: quando a culta cultura é ferramenta de exclusão

Luiza Braga
Lado (B)lack
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3 min readApr 25, 2017

Carolina Maria de Jesus não é literatura.

#Acessibilidade: Retrato em sépia de Carolina Maria de Jesus, vestindo um lenço branco com estampas de folhas em sua cabeça, e um brinco com um pêndulo de cristal. Ela está com o rosto virado para o lado esquerdo, olhando um pouco para baixo, seu lenço passa pelo lado direito do rosto encobrindo levemente seu sorriso de canto de boca.

Causa muito espanto ler uma frase dessa, imagine só como deve ter sido para Elisa Lucinda estar presente na platéia que teve o prazer de ouvir ao vivo. Isso aconteceu semana passada durante uma homenagem na casa da escrita do Rio de Janeiro. Renegaram Carolina. O responsável pela apresentação inicial classificou sua produção de como um relato, um diário que "qualquer um poderia ter escrito". Um olhar sobre uma realidade exótica, estranha à maior parte daqueles senhores. Especial pela unicidade, mas ainda sim um "caso do acaso".

A partir dessa percepção com relação a obra de Carolina é possível refletir o caráter racista e classista dessa tal "literatura" e de outros espaços culturais. Isso é importante pois o conceito de cultura é ideológico e também faz parte da validação de nossa posição enquanto integrantes da sociedade.

Há quem argumente que tal separação serve para proteger a obra da autora, afinal, a "literatura" tem seus critérios, e se submetermos Carolina a esses parâmetros, sua produção certamente não alcançaria os patamares exigidos. Essa compreensão de que sua escrita seja menor por conta de sua origem, da temática da sua produção, ou até mesmo da gramática empregada nos seus textos, é mais um reflexo do caráter elitista dos espaços de conhecimento e cultura que construímos. Fazendo com que estes mesmos espaços sejam usados como ferramenta na manutenção de opressões.

Não é possível esconder sua produção, são cadernos e mais cadernos com seus livros, contos e poemas. Então como diferenciá-la dos grandes? E mais do que isso, por que diferenciá-la?

Nossa estrutura hierárquica da produção artística se apoia num afastamento gradual do "comum". Uma busca pelo extraordinário que vem da técnica, da temática, e do lugar de origem dessa manifestação. Essa classificação opera dentro da lógica estratificada de sociedade em que vivemos, e isso não é um acidente. Classificações são dadas com o propósito de inserir e excluir pessoas em espaços sociais específicos.

Uma sociedade que tem a educação formal como um privilégio de elite (esta formada pela combinação de raça, gênero e renda), transforma o conhecimento em mais um critério de pertencimento da classe. A norma culta é uma forma de certificação dentro dos espaços de conhecimento, comunicação, arte, etc… colocando o conteúdo muitas vezes em um papel secundário na hora de separar quem pode ou não ocupar este lugar social. Acho importante reforçar que a educação foi privilégio da elite branca até a escravatura, e continuou sendo após o fim dela (com suas raras excessões), desta vez apoiada pela exclusão de renda. Isso porque, é a partir desse histórico construído de exclusão que chegamos ao ponto em que um grupo específico de pessoas separam as "obras literárias" do "relato fascinante da ex-catadora". É assim que Carolinas são mantidas em seus devidos lugares: exóticas surpresas sociais, e seguramente longe dos espaços de influência.

Felizmente o tempo passa, várias transformações sociais tornaram a comunidade literária (e a sociedade como um todo) em um lugar um pouco mais plural em suas vozes. Aqueles que veem a mensagem além dos verbos incorretos, assim como beleza do olhar criador que Carolina expressa em suas obras, sabem que seus textos não poderiam ser escritos por qualquer um. A visão é única e a expressividade também, assim como toda sua produção, isso é arte.

Não deixar Carolina Maria de Jesus ser diminuída é se afastar cada vez mais dessa estratificação ilógica, reconhecendo com igualdade aqueles fora da estrutura de privilégios da sociedade. Fazendo também com que essas estruturas façam cada vez menos sentido na renovação ideológica que a pluralização de vozes tem provocado nas dadas comunidades (ainda) de elite.

Eles falava que eu sendo poetisa era para estar entre os fidalgos. Que os poetas são pessoas finas que andam com as unhas esmaltadas e luvas. Sorri. Pórque eles não conhecem os poetas. — O poeta é um infeliz conhece so agruras do roteiro neste hemisfério.

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Luiza Braga
Lado (B)lack

Ela é uma maníaca na pista. Designer, Cantora, Podcaster Produtora Cultural, Intelectual de calçada e Pres. do Conselho Municipal de Cultura de Londrina