Eu não estou aqui (só) para sambar

Luiza Braga
Lado (B)lack
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4 min readMar 6, 2017
#Acessibilidade: Foto em preto e branco de Dona Ivone Lara. Ela está centralizada com o rosto virado 3/4 para a esquerda e um belo sorriso no rosto, batendo palmas. Atrás dela podemos ver alguns surdos em cima de prateleiras.

Na minha casa todo mundo é bamba, todo mundo bebe, todo mundo samba.

Isso é uma verdade, cresci com o samba correndo solto, e eu correndo atrás dele. Passei boa parte da vida observando atentamente e falhando miseravelmente em reproduzir a ginga no pandeiro, pequenina aprendendo a tocar tamborim enquanto a bateria da escola ensaiava, cantando com os discos e as rodas de samba.

Não é se de surpreender que daí nasça uma sambista, essa é a historia de qualquer tocador que encontremos por aí.

Apesar do fundo familiar, minha história no samba tem se tornado cada vez mais minha com o passar dos anos. São novas rodas, novos sambas, novos instrumentos (sim, agora eu não falho miseravelmente no pandeiro) e tudo isso é excitante. Quem faz samba sabe. É sobre soltar a voz, colocar o pé no chão e sentir a vibração que sai dos instrumentos. Mas mesmo envolta de tanta alegria, não dá pra se esconder dos momentos: Ah… meu querido machista samba.

O samba das bambas tem seus momentos. Ainda espera-se que a preta chegue para ocupar seu espaço de passista da roda, encantando a quem vê e quem toca. Não me leve a mal, sambar é uma das coisas mais deliciosas de se fazer. É lindo mesmo e quem samba bem sambado (seja homem ou mulher), sabe que é pra encantar a todos, pra se encantar. Mas em dado momento eu peço a licença, também vim aqui pra tocar.

E ai, vai conseguir segurar?

#Acessibilidade: Foto da Nãnan Matos. Ela está sob um fundo branco e aparece apoiada em um tambor de pele, ela está com o braço esquerdo em cima do tambor, rosto apoiado nas mãos. Ela usa um conjunto de brinco o pulseira dourados com ornamentos vazados.

Essa é a primeira pergunta, e você com os braços tremendo diz sim. É inegável que mulheres precisam se provar cotidianamente com um instrumento na mão. Mas o que me deixa mais perplexa é falta de capacidade de sermos entendidas e respeitadas como aquilo que somos: Mulheres sambistas.

Isso parece tão óbvio. Enquanto batuqueira, é bem complicado lidar com as desconfianças, construir sua força, se soltar no baque. Tudo isso pra acabar uma roda, cumprimentar as pessoas e ouvir no pé do ouvido o colega dizendo que fica louco pra te dar uns pegas por causa do jeito que você toca. Enquanto mulher é bem complicado vestir a máscara do parceiro enquanto as beldades da roda são comentadas. Isso acaba te colocando em um eterno não-lugar, um não-conforto, que se esvai só na hora em que sua mão toca o instrumento e tudo se apaga ao redor.

Pior de tudo é saber que samba é resistência da mulher preta. Graças às casas de mulheres pretas que tivemos a oportunidade de florecer compositores, batuqueiros e cantores. Por conta disso, é triste demais ver o papel relegado à maior parte das mulheres pretas que vivem nesse meio. Fomos de produtoras a apoio, de protagonistas a enfeite. Embora algumas consigam merecidamente seu lugar ao sol, mesmo que tardiamente, ainda queremos muito mais.

#Acessibilidade: Foto em preto e branco de Clementina de Jesus. Ela está sentada em uma cadeira, com um turbante branco na cabeça e um vestido branco com bordados floridos no peito. Ela olha para esquerda com a mão levantada enquanto segura um quadro com a mão esquerda.

D. Ivone Lara é um desses casos tardios, compôs seu primeiro enredo em 1947, mas só pode gravar seu primeiro disco solo em 1978 depois de já aposentada. Nessa mesma história temos também Clementina de Jesus, que foi "descoberta" e gravou seu primeiro disco com mais de 60 anos. A falta de reconhecimento enquanto artista é um fardo, mas o não-reconhecimento enquanto indivíduo é maior ainda.

Eu sou mulher, sambista e preta. Assim. Tudo ao mesmo tempo mesmo. Eu sinto o samba como Cartola, as melodias como Zeca e os instrumentos como Ubirany. Então, espero do fundo do meu coração partido, ser respeitada e tratada como tal. Não há nada de singelo em cobiçar o corpo preto, nem em se surpreender com a mulher que toca. E nós obrigatoriamente somos relegadas a esses papeis, nada confortáveis, se quisermos fazer parte dessa coisa linda que chamamos de música, samba. Isso simplesmente não é justo.

Você pode até perguntar: mas porque aturar isso então? Porque não ter um grupo apenas de mulheres?

Sim, ter um grupo apenas de mulheres é uma solução, linda inclusive. Mas não é possível para todas e não muda a realidade das mulheres que estão lá cravando com unhas e dentes seu espaço dentro da música. Eu quero poder tocar com os músicos que admiro, e mais do que isso quero não me sentir enojada por eles fora da roda de samba. Será possível um dia?

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Luiza Braga
Lado (B)lack

Ela é uma maníaca na pista. Designer, Cantora, Podcaster Produtora Cultural, Intelectual de calçada e Pres. do Conselho Municipal de Cultura de Londrina