imagem de predominância da cor preta, ao fundo a imagem de um policial segurando um fuzil em tons quase em P/B. Sobre a imagem diversas grafias

Porque o aço tingido de preto me traz a sensação de impotência.

Rafael Chino
Lado (B)lack
Published in
8 min readApr 5, 2017

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Hoje, na passagem em direção a minha casa tem um batalhão do choque. Frequentemente vejo policiais com o cano do fuzil para fora do carro, como que prontos para disparar contra a cabeça de cada pedestre que passa ao seu lado. Também percebo a postura dos guardas que montam guarda em frente ao batalhão. Passo com meu fone, mas de ouvidos atentos, com medo de algum dia algum deles me abordar pelo o que for e eu sofrer alguma represália por não ouvir. A um tempo vi um deles correr atrás de um morador de rua e nem quero imaginar o que aconteceu.

A sensação que sempre sinto é de total impotência. Caso algum dia, qualquer um deles quiser me dar um tiro pelas costas, ou me espancar a sensação que tenho é que deixarei de ser eu mesmo pra me tornar um número. Entendam que pra sociedade eu seria isso, talvez eu ganhe o status de suspeito ou tentem criar uma história qualquer pra me incriminar. Toda a minha carreira, todas as pessoas que poderiam depor a meu favor, será que elas serão ouvidas? Será que vou ser julgado pelo meu caráter ou pela cor da minha pele? Você sabe o que é sentir a sensação?

Talvez algum de vocês chegue e pense: “Você está sendo paranoico” “Isso é vitimismo seu” “Cê é classe média, nem sofre tanto assim”. Só que antes de pensar isso, deixa eu te contar uma história.

O Brasil tem uma característica muito peculiares quando falamos do racismo. É preciso compreender qual a visão construída sobre o negro para entender porque hoje ainda são repetidas visões de racismo, mesmo que a intenção do racismo exatamente como preconceito concreto já não seja uma ideologia aceitável e até condenável. Porque o racismo é algo entrelaçado em nossa estrutura, como uma raiz que corrói por dentro as bases de concreto que sustentam os tetos em cima das nossas cabeças.

A invenção do Negro Preguiçosos

Quando falamos sobre criminalidade em locais periféricos, onde cerca de 75% são compostas por pessoas negras, é comum o discurso de que aqueles que se entregam para o crime buscam um caminho fácil para aquisição de bens. Quando discutimos sobre a inserção do negro no mercado de trabalho e nas faculdades, é comum escutarmos que talvez exista uma falta de vontade, ou até mesmo que os mesmos se preocupam mais em se vitimizar do que transformar o esforço em vontade para passar nas provas. Agora será que isto é apenas uma opinião, ou ela é uma herança de nossos antepassados? Vamos voltar um pouco sobre o que pensavam os senhores sobre os negros escravizados. Era comum, a relação aos Bantus, que compõe maioria dos escravizados trazidos ao Brasil, de que os mesmos eram mais preguiçosos do que os chamados Sudaneses ou comumente chamados de Males. Esta associação parecia ignorar o fato de que os mesmos tinham vindo muitas vezes sequestrados de suas terras, em navios amontados, expostos a todo o tipo de doenças, amontoados da forma que coubessem mais pessoas ali ao invés de se pensar no mínimo de condição de sobrevivência, tendo ainda uma viagem mais longa dos que os de origem da região próxima ao Bilad al Sudan.

Diagrama de um navio negreiro mostrando que todos os espaços eram feitos para caber negros amontados, deitados de forma a ocupar todos os espaços possíveis.

Acreditem, quando se vê o que eram os navios negreiros, se percebe que animais são tratados com mais dignidade que isto. E é assim que as pessoas enxergavam os negros, animais de carga que deviam não apenas trabalhar incansavelmente, como também exercer diversas funções, mesmo estando a uma terra estranha de um povo com uma língua desconhecida. Muitos negros nessa época se entregaram ao vício da bebida para suportar viver como escravizado. Por este e outros motivos, os senhores atribuíam aos negros a alcunha de “preguiçosos”. Não é atoa que isso perdure também na questão da visão do negro sobre o trabalho, mesmo após o fim escravidão. Aliado a isto tudo, muitos negros trazem hoje, da filosofia africana, a visão de que o trabalho é uma parte da vida, não seu foco principal. Por isso hoje vemos além de preguiçosos, de que os mesmos não tem foco, mesmo como no texto A invenção da indolência demonstrar que os baianos (onde mais de 70% se declaram pretos ou pardos) que ainda carregam fortemente esta fama, trabalharem bem mais que a média dos brasileiros. Então é preciso perceber que por detrás do discurso da preguiça e falta de esforço do negro, visa atribuir ao mesmo a culpa da classe social a qual pertence ao invés de culpa a nossa sociedade que cria diversos instrumentos de manutenção do negro como classe mais baixa. E isso se estende não apenas para o negro da periferia, mas esse racismo estrutural que é uma repetição do racismo de tempos passados, faz recair sobre todo e qualquer negro uma visão de preguiça, malandragem, de entregue aos vícios e etc… que contraíram a visão da sociedade judaico-cristã ocidental do que é um “cidadão de bem”.

duas mãos negras, para fora das grade de uma prisão, com algemas no pulso.

A criminalização do negro e a visão de Sub-humano

Interligado a isto outro fator importante que precisa ser levado em conta é que além de reduzir o negro, como uma espécie de “sub-humano” menos propenso ao esforço, um instrumento essencial é de que ele seguiria caminhos sociais não aceitos para atingir seus objetivos. Durante as diversas revoltas de libertos e escravizados no período de escravidão, a notícia espalhada era de que os mesmos eram criminosos, estupradores e que visavam apenas deturpar a ordem vigente. Essa também foi uma herança que herdamos sobre a visão do negro. Jogando os mesmos a margem de nossa sociedade, buscamos não apenas formas de criminaliza-los, mas também criamos instrumentos para criminalizar ainda mais os mesmos. Estas medidas são criadas para que a percepção social sobre negros seja de que devemos aprisionar os mesmos fora da sociedade ou até mesmo privar os mesmos da vida, como uma forma de dizer que ele é “merecedor” de tal castigo. A questão é que este pensamento é tão introjetado em nossas mentes, que ao comparar matérias que abordam criminosos brancos e criminosos negros a abordagem é totalmente diferente. Quando se tratam de negros é de: criminoso, bandido porém a mesma matéria sobre pessoas brancas é: suposto, suspeito, possível e qualquer tipo de subjetividade que faça valer a presunção da inocência perante os mesmos. O Brasil então, ainda importa a guerra as drogas no modelo americano, que visava manter o status de escravidão pro negro tendo como justificativa a exploração da mão de obra dos presidiários, já no Brasil, esse sistema apenas serviu para jogar os negros na cadeia e esperar que os mesmos se matassem. As cadeias brasileiras tinham as figuras dos bandidões, que compravam os presos recém chegados de guardas para fazerem o que quiserem. Após as auto-organizações dos próprios presos como PCC e CV as mortes caíram drasticamente. Com a eliminação do instrumento de morte de negros aceito pela sociedade, aceitamos que policiais o eliminem sem qualquer tipo de julgamento ou o jogamos no sistema carcerário que ao invés de recuperar os infratores, apenas faz com que 80% deles retornem para uma nova sentença e uma nova pena em um ciclo perpétuo sem fim. Para se ter uma ideia, no modelo americano as prisões feitas por crack (mais presentes em comunidades negras pelo preço) eram 100x mais severas do que o uso de cocaína (que era usado majoritariamente pelas classes mais ricas). Sendo que muitos usuários de crack era facilmente taxados de traficantes. Esse modelo chega no Brasil como uma punição severa a maconha, mesmo seus efeitos sendo drasticamente menos agressivos que a bebida, o cigarro ou até mesmo outras drogas. Tendo tudo isto, vemos que a argumentação de criminalização das atividades em comunidades negras tem caráter de reafirmar o racismo estrutural, mesmo quando em todo o mundo, quando tais vícios são tratados como assunto de saúde pública e não segurança, os níveis de usuários apresentaram queda e não acréscimo como vem acontecendo na guerra as drogas.

Conclusão

Visto estes dois pontos, é preciso entender que a visão sobre o negro é de bandido e tendencioso a seguir os caminhos fáceis. Aqueles que não são mortos ou presos, são ditos como preguiçosos e por isso moram em favelas e não tem acesso a faculdade. Não raras as vezes fui abordado sem nenhuma justificativa pela polícia, mesmo quando usando uniforme. Não é simplesmente uma paranóia na cabeça dos negros, mas a visão de que a minha vida vale menos está associada na cabeça de cada pessoa na sociedade que aplaude uma ação policial violenta. Na cidade do Rio de Janeiro, isso se torna uma agravante ainda maior porque não raras as notícias de negros que são mortos injustamente em um local onde a violência tanto do tráfico quanto da polícia são alarmantes. A opinião pública sobre negros assassinados injustamente pela polícia é de buscar associações dos mesmos com o tráfico de drogas a qualquer custo para justificar, com uma noção de sub-humanos a ação policial em “autos de resistência”. Chacinas, execuções, assassinatos. Fico com real medo de ser só um número caso algo aconteça algum dia. Que aquele ser postado com um fuzil sabe que pode atirar em minha direção, porque sendo negros a grandes chances de ele sair impune e conseguirem me associar com alguma atribuição de bandido, ou até mesmo que tive uma reação suspeita são grandes. Todos os negros sabem que independente da classe social, eles temem ser a menina de 13 anos na escola que tem uma foto falsa dizendo que a mesma estava com um fuzil, que o garoto espancado no Habib’s morreu em decorrência do uso de drogas e não por ser espancado, que os garotos que foram mortos dentro do carro indo a uma lanchonete reagiram e por isso o carro foi alvejado com mais de 100 tiros, que o morador da favela desaparecido teria tido envolvimento com o tráfico, que o morador de rua com pinho sol era traficante e muitos outros casos. Porque quando a bala sai do aço pintado de preto ela não sabe se sou preto pobre, classe média ou rica, ela só repete o racismo introjetado em nossa sociedade desde os tempos da escravidão.

¹. Exposto no livro Bantos, malês e identidade negra de Nei Lopes

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