É preciso falar sobre o assassinato, abuso e empalamento de Lucía Pérez

Helena Vitorino
Lado M

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Na faculdade, havia um rapaz que usava uma palavra desconcertante para se referir às atividades sexuais dos colegas: “empalar”. Às sextas-feiras, ele fazia uns gestos obscenos enquanto indagava os amigos: “E aí, vai empalar as mina hoje?”. Por mais que esse termo não me fosse completamente estranho, o contexto desumano em que colocava essas palavras me incomodava.

E me incomoda especialmente na data de hoje, com a notícia de assassinato de uma jovem estudante argentina de 16 anos. A causa da morte foi empalamento. Este ato, considerado método de tortura, é causado pela inserção de uma estaca no orifício anal, vaginal ou umbilical da vítima, para que a vítima morra de dores ou hemorragia, atravessada por uma vara.

Pergunto-me: qual a correlação de fatores tão dispersos em tempo e geografia, e ao mesmo tempo tão conectados entre si: um jovem brasileiro de classe média, explodindo virilidade no grito, chamando a atenção pra si, e uma adolescente abandonada na porta de um hospital, cuidadosamente lavada e vestida, com um rompimento vaginal tão profundo que levou o médico às lágrimas?

Além do uso da palavra “empalar” — que, de alegre fetiche dos crianções amancebados, virou causa mortis no relatório de um legista argentino -, o que há de comum nessas duas histórias é a naturalidade. Nós, mulheres, somos mortas diariamente no diálogo, no verbal: aquele gesto obsceno do rapaz, aquela flama no olhar, aquela pergunta, “Vai empalar hoje?” me gelava a espinha. Parecia uma profecia. Nesse instante, eu cristalizei a dura percepção de que o prazer sexual masculino fantasia e verbaliza constantemente sobre a nossa morte.

O feminicídio contra Lúcia Pérez

Lucía Pérez Montero tinha 16 anos, era estudante e vivia em Mar del Plata, na Argentina, com os pais. Quando foi deixada na porta de um hospital, no dia 08 de outubro, os médicos que tentaram reanimá-la julgaram que a causa da morte seria overdose: mesmo com o rosto lavado, Lucía ainda apresentava resquícios de cocaína no nariz.

Aquilo, no entanto, era estranho: o consumo havia sido desesperadamente febril, pois as narinas de Lucía estavam completamente queimadas por dentro. Ninguém conseguiria aspirar tanto pó daquela forma, principalmente uma jovem como ela, que não era usuária de drogas. E a partir dessa suspeita, os médicos descobriram que a verdadeira da morte de Lucía Pérez não era overdose, mas um brutal abuso sexual: os legistas descobriram que Lucia sofreu imposição de consumo de drogas, e que a tortura sexual provocou rompimentos profundos em via vaginal e anal. Os três agressores, que têm entre 23, 41 e 61 anos, são vendedores de drogas.

Um dos suspeitos é Juan Pablo Offidani, de 41 anos. Filho de um famoso notário jurídico da Argentina, Pablo estudou nos melhores colégios, teve acesso aos melhores recursos, mas, mesmo assim teve uma adolescência conturbada, período em que se envolveu com drogas. Viveu no Brasil durante um tempo, hospedado na pousada da madrasta, em Trancoso, e voltou à Argentina, acompanhado de uma mulher e o filho dela, Martín Farias. Martín tem 23 anos, e é o segundo acusado da morte de Lucia.

Todas as mulheres podem ser Lúcia Pérez

A morte de Lucía me revoltou. Quando abri as primeiras notícias, marejei os olhos diante de sua foto. Onde eu estava aos dezesseis anos? Quantas vezes passei perto da morte sem saber, em condições parecidas ou mais perigosas do que a que ela esteve, para estar hoje aqui escrevendo sua história?

A memória de Lucía Pérez segue sendo violada, diariamente: a palavra “empalamento” teve tantas buscas na internet como depois do dia 08 de outubro. Pesquisas como “Lucía empalada” e “imagens do corpo” seguem crescendo, à medida que a impunidade avança, voraz e insolentemente, sobre nossos corpos. E a nossa morte, que é corriqueira, vazia e vulgar, vira pano de devaneio sexual do mundo masculino. Quando meu colega dizia “Hoje eu vou empalar”, ou quando o Biel disse “Eu te quebro no meio”, é tudo isso: é a morte diária, que nos mata intimamente na dignidade quando ouvimos frases desse tipo. E que, no caso de Lucía Pérez, assassinou uma vida em progresso, cessou um respiro, calou um grito.

As agressões sexuais na Argentina aumentaram 78% entre 2008 e 2015, segundo dados do próprio Ministério de Segurança argentino. No Brasil, entre 2009 e 2011, foram registrados 16.993 casos de feminicídio. E nas escolas, nas faculdades, nos almoços de família e nos grupos de whatsapp, nunca morremos tanto. Empaladas, quebradas ao meio, destruídas, aleijadas — tudo isso são termos que os homens usam para descrever seu desejo sexual com as mulheres.

Lutar para que não haja mais nenhum caso como o de Lucia é lutar para que toda essa fantasia assassina morra. Não, não é normal que um homem diga que vai “estropiar” uma mulher; não é normal dizer que vai “aleijá-la”. Não, isso não é engraçado. E não, não vamos nos calar. Devemos isso à Lucia. E devemos isso a nós mesmas.

Originally published at www.siteladom.com.br on October 18, 2016.

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